sábado, 24 de dezembro de 2011

Merry Christmas

(o video que constava neste post foi retirado porque o ECAD absurdamente cobra direitos autorais de blogueiros que retransmitem videos do youtube. Para quem quiser assistir o video que estava aqui: http://youtu.be/w_PfwVNmckc )




"Silent night, holy night
All is calm, all is bright
Round yon Virgin Mother and Child
Holy Infant so tender and mild
Sleep in heavenly peace
Sleep in heavenly peace


hey Charley I'm pregnant
and living on 9-th street
right above a dirty bookstore
off Cuclid avenue
and I stopped taking dope
and I quit drinking whiskey
and my old man plays the trombone
and works out at the track.

and he says that he loves me
even though its not his baby
and he says that he'll raise him up
like he would his own son
and he gave me a ring
that was worn by his mother
and he takes me out dancing
every Saturday night.

and hey Charley I think about you
everytime I pass a fillin' station
on account of all the grease
you used to wear in your hair
and I still have that record
of little anthony & the imperials
'Goin' out of my head over you
out of my head over you'
but someone stole my record player
how do you like that?

hey Charley I almost went crazy
after mario got busted
so I went back to omaha to
live with my folks
but everyone I used to know
was either dead or in prison
so I came back in minneapolis
this time I think I'm gonna stay.

hey Charley I think I'm happy
for the first time since my accident
and I wish I had all the money
that we used to spend on dope
I'd buy me a used car lot
and I wouldn't sell any of em
I'd just drive a different car every day 
dependin on how I feel.

hey Charley
for chrissakes
do you want to know
the truth of it?
I don't have a husband
he don't play the trombone
and I need to borrow money
to pay this lawyer
and Charley, by the way
they say I'll be eligible for parole
come valentines day. 

Silent night, holy night
All is calm, all is bright
Round yon Virgin Mother and Child
Holy Infant so tender and mild
Sleep in heavenly peace
Sleep in heavenly peace
"

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A Ausência (bala, relógio ou faca)

"Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;


assim como uma bala 
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;


qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo


igual ao de um relógio
submeso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,


relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;


assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;


qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto


de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.


Seja bala, relógio,
ou lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.


Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.


Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.


Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.


Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):


porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,


nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,


que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente."

João Cabral de Melo Neto
(Trecho do poema "Uma faca só lâmina", retirado de "Morte e vida severina - e outros poemas", Objetiva 2007, pg 139-141)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O Nada

"O nada é uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo."

Guimarães Rosa
(No prefácio a "Tutaméia")

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O verdadeiro autor (o tempo)

"Escrevi: 'Minha mãe acabou de morrer'. Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras."

Milton Hatoum
(Em "Os Dois Irmãos", Cia das Letras, 2000, pg 244)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Espírito fraco

"Como já nessa época era sabido, a carne é supinamente fraca, e não tanto por sua culpa, pois o espírito, cujo dever, em princípio, seria levantar uma bandeira contra todas as tentações, é sempre o primeiro a ceder, a içar a bandeira branca da rendição."

José Saramago
(Em "Caim", Cia das Letras, 2009, pg 55)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sem atalhos

"Mas não há serenidade moral que corte uma polegada sequer às abas do tempo, quando a pessoa não tem maneira de o fazer mais curto."

Machado de Assis
(Em "Quincas Borba" , Editora Globo 2008, pg 171)



domingo, 18 de dezembro de 2011

Faça o que eu digo

"Meu bom irmão, não faz como certos pastores impostores, que nos mostram um caminho para o céu, íngreme e escarpado, e vão eles, dissolutos e insaciáveis libertinos, pela senda florida dos prazeres, distante dos sermões que proferiram."

William Shakespeare
(Em "Hamlet", trad. Millôr Fernandes, L&PM 2004, pg 24)

sábado, 17 de dezembro de 2011

O Erro de Descartes

"As ciências naturais não são simples descrições e explicações da natureza; são parte de uma relação entre a natureza e nós mesmos; elas descrevem a natureza enquanto exposta ao nosso método de questionamento. Esta é uma possibilidade que Descartes não foi capaz de vislumbrar e que torna impossível a separação entre o mundo e o Eu."

Werner Heisenberg
(Traduzido livremente de "Physics and Philosophy", Harper and Brothers 1958, pg 81)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A tarde nos olhos

"Olho, para disfarçar, os guris no tobogã. Meu sorriso interior, no entanto, fica em meio. Porque esses guris em breve vão perecer. Isto é, vão perder a infância, a inocência animal, para ganharem em troca, no mínimo, uma sonsice social. E ostentarão esse falso cinismo da adolescência, mais perdoável, aliás que o cinismo rancoroso dos velhos. Mas, por enquanto, ainda estão estragando por aí os fundilhos. E que brilho nas caras de maçãs, acesas na escorregadela a jato! A tarde mira-se nos seus olhos. Repara bem no que te digo: a tarde é que se mira nos seus olhos, que se limitam a refletir as coisas, em vez de refletir sobre as coisas. Eles estão na vida como peixes n'água: sem saber. E no mesmo contínuo movimento."

Mário Quintana
(Em "A Vaca e o Hipogrífio")

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Para sentir é necessário sofrer

"Para sentir dessa maneira é preciso ter sofrido muito, é preciso ser um desses corações que a infelicidade abre e amolece, ao contrário daqueles que ela fecha e endurece."

Charles Baudelaire
(Em "Paraísos Artificiais", trad. Alexandre Ribondi, L&PM 2007, pg 95)

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O Silêncio do Sábio

[Não posso deixar de celebrar quando um amigo próximo vê o mundo com tanta clareza.]

"Vencer dificuldades não deveria dar orgulho e distinção ao homem e fazê-lo um prolixo contador dos seus feitos. Elas devem calá-lo. Elas tem algo de incomunicável e que pesa antes da veracidade de qualquer relato."


Fernando Carlucci
(Em seu blog)

 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Música de lindas lembranças (em uma terra que fundou todas elas)

(o video que constava neste post foi retirado porque o ECAD absurdamente cobra direitos autorais de blogueiros que retransmitem videos do youtube)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Ao poder

"Seu poder constituído para mim é merda, suas instituições para mim são bosta. Vocês chamam dinheiro de verba ou numerário, chamam furto de apropriação, nomeação de eleição, assassinato de execução, vocês se vestem fantasiados e usam palavras que julgam bonitas, assim concluindo que ses atos são legítimos. Podem ser legítimos para vocês, mas não para nós, que nunca fomos nem ouvidos nem cheirados e temos de aceitar o que vocês resolvem por nós e até o que vocês pensam por nós. Então, porque aquele que condena um homem à fome e à miséria tem um papel na mão, isso se torna menos imoral, se torna certo de alguma forma? Para mim vocês são encarnações da mentira e da morte."

João Ubaldo Ribeiro
(Em "Viva o povo brasileiro", Objetiva 4ed, 2007, pg 532)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Maré moral

"Tanto se pode impedir o pensamento de martelar sempre na mesma idéia, como o mar de voltar sempre a mesma praia. Para o marinheiro, chama-se isto maré; para o culpado, chama-se remorso. Deus subleva a alma pelo mesmo modo que o oceano."

Victor Hugo

(Em "Os Miseráveis", trad. Carlos Heitor Cony, Ediouro Clássicos de Bolso, pg129)

domingo, 4 de dezembro de 2011

Farejadores

"Onde está o lucro, lá estão sempre os padres".

Luther Blisset
(Traduzido livremente de "Q", Einaudi 2010, pg 69)

sábado, 3 de dezembro de 2011

Os limites da razão

"Tornamos aos confins do vosso entendimento, lá onde a vós, mortais, o juízo se alucina. Por que é que entraste em comunhão conosco, se és incapaz de sustentá-la? Almejas voar e não te sentes livre da vertigem? Pois fomos nós que a ti nos impusemos, ou foste tu que te impuseste a nós?"


J. W. Goethe
(Em “Fausto”, trad. do alemão por Jenny Klabin Segail, editora 34, 2010, pg 493 - “Dia Sombrio”)

domingo, 27 de novembro de 2011

Biscoitos

"Sabe aquelas caixas de biscoitos sortidos? Há sempre biscoitos que lhe agradam e outros dos quais não gosta. Quando começa a pegar subitamente todos os bons biscoitos, depois sobram somente aqueles que não são do seu agrado. É isso que penso sempre nos momentos de crise. É melhor resolver de uma vez as coisas ruins e depois tudo andará bem. Porque a vida é uma caixa de biscoitos."

Murakami Haruki
(Traduzido livremente da versão italiana de "Norwegian Wood", trad. Giorgio Amitrano, Eunadi 2006, pg 323)

sábado, 26 de novembro de 2011

O silêncio piedoso

"A piedade é um sentimento tão terrível e inútil - você precisa engarrafá-lo e guardá-lo para si. Se tentar expressá-lo só irá piorar ainda mais as coisas."

Paul Auster
(Traduzido livremente de "Invisible", Faber and Faber, 2009, pg 123)

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Anyway is the only way

(o video que constava neste post foi retirado porque o ECAD absurdamente cobra direitos autorais de blogueiros que retransmitem videos do youtube)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Níveis, emergência e reducionismo

"O que se tornou óbvio para a maioria dos físicos é que diferentes níveis de estruturas possuem diferentes tipos de organização com tipos completamente distintos de interação governadas por diferentes leis; e um nível emerge do outro mas não emerge de forma previsível. Isto é verdade até mesmo para algo tão básico quanto o congelamento da água, como o físico Robert Laughlin observou: o gelo possui ao menos 11 fases distintas, e nenhuma delas pode ser prevista por primeiros princípios. As bolas de bilhar na minha sala-de-estar são feitas de átomos que se comportam como previsto pela mecânica quântica; mas quando estes átomos microscópicos reunem-se para formar bolas de bilhar, um novo comportamento emerge governado agora pelas leis de Newton. As leis de Newton não são fundamentais: são emergentes; isto é, elas são o que acontece quando a matéria quântica encontra-se agregada em fluidos macroscópicos e objetos macroscópicos. É um comportamento de organização coletiva. O importante é que você não pode prever as leis de Newton observando o comportamento de átomos, nem o comportamento de átomos a partir das leis de Newton. Novas propriedades emergem, propriedades que os precursores não possuem. Isto definitivamente joga um balde d'água nas pretensões reducionistas, assim como nas hipóteses deterministas. Se lembrarmos bem, o corolário do determinismo é que todo evento, ação, etc são predeterminados e podem ser antecipados (se todos os parâmetros forem conhecidos). Mas mesmo que todos os parâmetros dos átomos individuais sejam conhecidos, eles não podem prever a lei de Newton para os objetos. Não podem prever nem mesmo a estrutura cristalina do gelo quando a água congela."

Michael Gazzaniga
(Traduzido livremente de "Who is in Charge? Free will and the Science of the Brain", Kindle version 2011, Kindle location 2004 - capitulo 4).

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Metafísica, ceticismo e a filosofia

"Eu acho que entendemos melhor esta situação [argumentos de quem pretende ler Wittgenstein como um relativista em relação a outras culturas ditas 'inferiores'] se vermos o relativismo não como uma cura ou um alívio da doença que é 'sentir falta de uma fundação metafísica', mas, ao contrário, se vermos ambos o relativismo E o desejo por fundação metafísica como duas manifestações da mesma doença. O que se deve dizer ao relativista é que algumas coisas são verdades, outras são razoáveis, mas é claro que nós só podemos DIZER verdades e coisas razoáveis se tivermos uma linguagem apropriada. E temos tal linguagem, e podemos dizer - e de fato dizemos - verdades, mesmo que esta linguagem não esteja fundada em garantias metafísicas. Sobre o que então está ela fundada? Wittgenstein dá a resposta simples e chocante: na confiança.
'- Em que posso basear-me?
- Eu realmente quero dizer que um jogo de linguagem só é possível quando se confia em algo (eu não disse 'quando se pode confiar em algo').' [On Certainty - par. 508 e 509]
 "Nossos jogos de linguagem não estão baseados em provas ou na Razão mas em confiança. Algo em nós acha que isto é difícil de engolir. O quanto é difícil e como nos giramos e lutamos em busca de uma garantia transcendental ou uma saída cética é algo que Stanley Cavell magnificamente tratou em uma série de livros. (...) Para Cavell, a pretensão de que há uma grande solução metafísica para todos os nossos problemas e as saídas céticas, relativistas ou niilistas são sintomas da mesma doença. A doença é a inabilidade de aceitar o mundo e de aceitar as outras pessoas, sem pedir por garantias. Algo em nós almeja mais do que podemos ter e ao mesmo tempo foge do que podemos ter. 

"Não é que o relativismo ou o ceticismo sejam irrefutáveis. Ambos são facilmente refutáveis assim que eles são afirmados como posições, mas eles nunca morrem porque a atitude de alienação do mundo e da comunidade não é apenas uma teoria e não pode ser superada puramente por argumentos intelectuais. De fato, não é nem mesmo correto referir a isto como uma doença; pois um dos pontos de Cavell é que desejar estar totalmente livre do ceticismo é também um modo de desejar estar livre da humanidade. Ser alienado é parte da condição humana e o problema é aprender a viver tanto com a alienação quanto com o reconhecimento. 

"Eu dediquei todo este tempo a Ludwig Wittgenstein porque penso que ele nos dá um exemplo de como a reflexão filosófica pode ser outra coisa sem ser criar tempestades novas em velhas xícaras de chá, ou encontrar novas xícaras de chá para criar tempestades dentro delas. Em seu melhor, a reflexão filosófica pode nos dar uma inesperadamente honesta e clara visão da nossa própria situação, não uma 'visão de lugar algum', mas uma visão através dos olhos de um ou outro sábio, imperfeito, profundamente particular ser humano. Se Wittgenstein quer fazer uma fogueira das nossas vaidades filosóficas, isto não é por puro sadismo intelectual; se estou lendo Wittgenstein corretamente, estas vaidades, na sua visão, são o que nos impede de confiar e, talvez ainda mais importante, o que nos afasta da compaixão."


Hilary Putnam
(Traduzido livremente de "Renewing Philosophy", Harvard Univ. Press, 1992, pg 177-179)

domingo, 20 de novembro de 2011

O que é a filosofia?

"O principal objetivo da filosofia é esclarecer, liberar e estender os bens inerentes às funções naturalmente geradas pela experiência humana. Não tem nenhum propósito de criar um mundo de "realidade", nem de desvendar os segredos do Ser que estão escondidos do senso comum e da ciência. Ela não possui uma fonte própria de informação ou um corpo de conhecimento peculiar; se não parece sempre ridícula quando enfrenta a ciência é só porque o filósofo, enquanto ser humano, também é um profeta da ciência. O trabalho do filósofo é aceitar e utilizar para seu propósito o maior conhecimento disponível do seu tempo. E o seu propósito é a crítica de crenças, instituições, costumes, diretrizes com relação ao que é bom. Isto não significa que os filósofos possuem uma relação especial com o bem, considerado como algo que é formulado e atingível de dentro da filosofia. Pois como a filosofia não possui nenhuma fonte própria de informação, não tem acesso privado ao bem. Como ela aceita o conhecimento dos fatos e princípios da ciência e da instigação humana, ela aceita os bens que são difundidos na experiência humana. Não há nenhum autoridade de revelação na filosofia. Mas ela tem a autoridade da inteligência e da crítica destas noções comuns." 

John Dewey
(Traduzido livremente de "Experience and Nature", Open Court 1926, pg 407)

sábado, 19 de novembro de 2011

Democracia e Maioria

"É um profundo equívoco pensar que um governo pela maioria, por si mesmo, implica em democracia. Uma maioria que não escuta as opiniões que a encomodam não é capaz de engajar-se em uma conduta inteligente de investigação social comum, ao menos não mais que uma elite no poder que impede a maioria de decidir; e a conduta inteligente de investigação comum é tudo o que a democracia significa"

Hilary Putnam
(Traduzido livremente de "Renewing Philosophy", Harvard Univ. Press, 1992, pg 200)

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Uma questão de método filosófico: Sartre e Wittgenstein

"Mary Warnock uma vez disse que Sartre não deu nenhum argumento ou prova mas sim 'uma descrição tão clara e vívida que quando penso sobre ela e visto-a na minha própria perspectiva, não posso deixar de ver sua validade'. Parece-me que esta é uma ótima descrição do que o próprio Wittgenstein estava fazendo, não apenas no argumento sobre a linguagem privada, mas repetidamente em sua obra. Suponha que nós simplesmente descrevamos com cuidado e atenção a maneira que usamos a palavra 'verdade', suponha que venhamos a dar sua 'fenomenologia'. Iremos então descobrir que a afirmação que 'verdade' significa a propriedade de 'ser aquilo que eu acreditaria se continuasse a investigar' é simplesmente errada."

Hilary Putnam
(Traduzido livremente de "Renewing Philosophy", Harvard Univ. Press, 1992, pg 75)

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Religião: uma forma de vida

"O discurso religioso só pode ser compreendido em profundidade por aqueles que entendem a forma de vida de quem participa de tal discurso. O que caracteriza esta forma de vida não é a expressão das crenças que a acompanha, mas um modo de viver a vida - um modo que inclui palavras e imagens, mas que está longe de consistir apenas em palavras e imagens - uma maneira de regular todas as decisões durante a vida. O crente, Kierkegaard, diria algo que Wittgenstein não diz, mas com o que, penso, ele iria concordar: a saber, que uma pessoa pode pensar e dizer todas as palavras certas e mesmo assim viver uma vida profundamente não religiosa. De fato, Kierkegaard insiste que uma pessoa pode pensar que ele ou ela está adorando Deus e na realidade não passar de uma adoração a um ídolo. (Eu suspeito que esta seja uma das razões que motivaram tanto ódio dos fundamentalistas contra Kierkegaard. Para este uma vida religiosa autêntica é caracterizada por uma preocupação constante de não cair no erro de susbsituir a idéia de Deus por uma criação própria narcisística; e esta preocupação deve expressar-se em tanta incerteza quanto for a certeza. Para Kierkegaard, estar absolutamente certo que você irá "nascer de novo" [que há o paraíso, que as escrituras estão corretas, ...] é sinal de que você está perdido.) O que Kierkegaard e Wittgenstein têm em comum é a idéia que compreender as palavras de uma pessoa propriamente religiosa é inseparável do entendimento da sua forma de vida, e isto não diz respeito à uma teoria semântica [significado das palavras ditas], mas sim a compreender um ser humano." 

Hilary Putnam
(Traduzido livremente de "Renewing Philosophy", Harvard Univ. Press, 1992, pg154)

O sonho vão do idealista

"Parte do desafio que idealistas como Hegel e Fichte nos propõem é dizer 'Bem, se você afirma que estes dois modos distintos de falar são ambos descrições da mesma realidade, então descreva esta realidade como ela é, independentemente dos nossos modos de usar a linguagem'. Mas quem disse que a realidade pode ser descrita independentemente das nossas descrições? E por que o fato da realidade não poder ser descrita independentemente das nossas descrições deve nos levar a supor que na verdade tudo o que há são descrições? De acordo com nossas próprias descrições, a palavra 'quark' é uma coisa enquanto um quark é uma outra coisa bem diferente. (...) Enquanto continuarmos pensando que a realidade em si mesma, se vista com suficiente seriedade metafísica, irá determinar o modo como nós devemos usar palavras como 'objetos' e 'propriedades', não seremos capazes de ver como o número e tipo de objetos e de suas propriedades podem variar de uma descrição correta da situação a outra descrição correta da mesma situação. Apesar das nossas proposições 'corresponderem à realidade' no sentido de descreverem a realidade, elas não são meras cópias da realidade. A idéia que algumas descrições são 'descrições da realidade em si mesma, independentemente da nossa perspectiva' é uma quimera. Nossa linguagem não pode ser dividida em partes, uma que descreve o mundo 'como ele é' e outra que descreve nossa contribuição conceitual. Mas isto não significa que a realidade está escondida, é 'numenica'; significa simplesmente que você não pode descrever o mundo sem descrevê-lo."

Hilary Putnam 
(Traduzido livremente de "Renewing Philosophy", Harvard Univ. Press, 1992, pg 122-123)

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Caminhos da vida

"O que você pensa de si mesmo? O que você pensa do mundo? Estas são questões com as quais todos têm que lidar da maneira que parece melhor para cada um. São os "enigmas da Esfinge" e de um modo ou outro nós deveremos lidar com eles. Em cada momento importante da vida temos que tomar medidas de consequências imprevisíveis. Se decidirmos deixar os enigmas sem resposta, isto também é uma escolha; mas em qualquer escolha que façamos, somos nós que estamos em risco. Se um homem escolhe voltar as costas ao futuro, ninguém pode impedí-lo. Ninguém pode provar, além de qualquer dúvida razoável, que ele está errado. Se um homem pensa o contrário, e age como pensa, não vejo como qualquer um possa também mostrar que ele está equivocado. Cada um deve agir como pensa que deve agir, e se ele estiver errado, pior para ele. Estamos em uma montanha, no meio da nevasca e da neblina que cega, através da qual vemos vislumbres, hora ou outra, de caminhos que podem ser enganosos. Se permanecermos parados, morreremos congelados. Se pegarmos o caminho errado, seremos esmagados a pedaços. Não sabemos com certeza se há um caminho correto. O que devemos fazer? 'Seja forte e tenha coragem'. Aja pelo melhor, espere o melhor, e encare o que vier. Se a morte nos levará a todos, não poderemos encontrar maneira melhor de recebê-la."


Fitzjames Stephens
(Traduzido livremente de citação por William James em "The Will to Believe", Harvard Univ. Press, 1975, pg 33)

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Os Discursos e a Redução Impossível

"A fisica pode, em princípio, prever a probabilidade de um corpo humano qualquer seguir uma trajetória qualquer, a partir de dados iniciais, assim como ela pode prever a probabilidade de qualquer coisa em qualquer trajetória. Mas tais predições são de fenômenos descritos na linguagem da física, não na linguagem da biologia, psicologia ou economia. Após o aparecimento dos seres vivos e suas sociedades, novas leis de fato surgiram; não são leis que contradizem as leis da física, mas são leis que se aplicam a coisas em uma descrição que não está disponível na física. As leis da economia são um bom exemplo. 'Oferta' e 'demanda' não podem nem mesmo ser definidas na linguagem da física; portanto a questão de como 'explicar a relação entre oferta e demanda' perde completamente o sentido se endereçada a um físico."

Hilary Putnam
(Traduzido livremente de "Renewing Philosophy", Harvard Univ. Press, 1992, pg 83)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A dicotomia fato-valor

"Nossa existência, nossa vida-no-mundo, Murdoch nos diz, não se dá separando de maneira exata "fatos" de "valores"; vivemos em um mundo humano caótico, em que a percepção da realidade e de todas as suas particularidades - a percepção que George Eliot, ou Flaubert, ou Henry James, ou a própria Murdoch, ensinaram-nos - e a formação de "juízos de valores" simplesmente não são habilidades separadas." 

Hilary Putnam
(Traduzido livremente de "Renewing Philosophy", Harvard Univ. Press, 1992, pg 87)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O Maior Desastre de Todos

"O movimento que passa da afirmação que nós realmente percebemos objetos reais à suposição de que nós somente percebemos nossas idéias de objetos é um movimento de importância decisiva na história da filosofia. De fato, eu diria que é o único grande desastre na história da filosofia nos últimos quatro séculos."

John Searle
(Traduzido livremente de "Mind: A Brief Introduction", Oxford Univ. Press 2004, pg 23 )

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Os grandes riscos da escrita filosófica e científica

"Uma das piores coisas que podemos fazer é dar ao leitor a impressão de que eles entendem algo que na verdade não entendem, que algo foi explicado quando de fato não foi explicado, e que um problema foi resolvido quando na verdade não foi resolvido."

John Searle
(Traduzido livremente de "Mind: A Brief Introduction", Oxford Univ. Press 2004, pg 10)

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Adaptação

"O que é extraordinário sobre o ser humano é a nossa capacidade de adaptação às mais diversas demandas; é a enorme dependência da adaptação ao aprendizado e consequentemente à cultura. A variabilidade de linguagens humanas pode não ser maior que a variabilidade das asas de borboletas, mas estas são determinadas geneticamente entre diferentes tipos de borboletas, enquanto qualquer criança de qualquer lugar do mundo pode aprender qualquer língua humana. Este fato é ainda mais extraordinário que a própria linguagem."

Kenneth Kaye
(Traduzido livremente de "The Mental and Social Lifes of Babies", Chicago Univ. Press 1982, pg 27)

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

A mente de Searle e dois sentidos de redução

"O fato de que o poder causal dos estados de consciência  e o poder causal de suas bases neurais são exatamente os mesmos mostra-nos que não estamos tratando de coisas independentes. Se duas coisas no mundo real possuem uma existência independente elas devem ter efeitos causais distintos. Mas o poder causal da consciência é exatamente o mesmo do seu substrato neural. Esta sistuação é como aquela que relaciona o poder causal dos objetos sólidos e o poder causal de seus constituintes moleculares: não estamos falando de duas entidades distintas, mas do mesmo sistema em níveis distintos. A consciência difere da solidez, liquidez, etc., porque a redução causal não leva a uma redução ontológica. Isto, como vimos, se dá por uma razão óbvia e trivial. A consciência possui uma ontologia de "primeira-pessoa", os processos neurais possuem uma ontologia de "terceira-pessoa". Por este motivo você não pode reduzir ontologicamente um ao outro. Consciência é um aspecto do cérebro, aquele que consiste em experiências ontologicamente subjetivas. Mas não há dois reinos metafísicos na sua cabeça, um físico e um neural. Ao contrário, há apenas processos acontecendo no seu cérebro e alguns destes são experiências conscientes."

John Searle
(Traduzido livremente de "Mind: A Brief Introduction", Oxford Univ. Press 2004, pg 128)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Uma outra lição

"Girei-me no meu leito sorrindo, porque tinha recém compreendido uma verdade desoladora e bizarra: o discernimento é a consolação dos fracos. Certo, filas de filósofos tinham percebido isto antes de mim. Mas o bom senso dos outros nunca serviu a ninguém. Quando chega o ciclone - a guerra, a injustiça, o amor, a doença, o vizinho - está-se sempre só, só, é-se um recém nascido e órfão!". 

Amélie Nothomb
(Traduzido livremente de "Le Catilinarie", trad para o italiano por Biancamaria Bruno, Voland 1998, pg 79)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Os sinais da falência

"As pessoas gostam de apanhar. Gostam, não: precisam. Estou em casa, a TV ligada, concursos vários em todos os canais. Cozinheiros amadores em busca do prato perfeito. Cantores do chuveiro em busca da carreira musical perfeita. Comedores pantagruélicos em busca do corpo perfeito. 

E, em todos os concursos, os jurados gritam e humilham os concorrentes. Os concorrentes choram, desesperam, alguns desistem. Mas existe em cada choro, desespero ou desistência a marca do alívio e do prazer. Aquela gente nunca se sentiu tão viva e tão válida. Mesmo os perdedores. Como explicar o masoquismo? 

Não é masoquismo. Apenas a comprovação empírica da falência da educação moderna. Antigamente, educar era um processo violento que implicava destruir, em casa ou na escola, os instintos de cada ego. 

Aprender a comer à mesa; a conversar; a estudar; a imaginar; e até a criar, tudo isso pressupunha - e pressupõe - uma disciplina imposta, feita de estímulos e desafios, derrotas e vitórias. 

Hoje, com as teorias "românticas" que dominam as cartilhas pedagógicas das escolas ou das famílias, não há estímulos ou desafios. Precisamente para que ninguém saia derrotado ou vitorioso. 

Uma sociedade radicalmente igualitária é isso: uma sociedade mediana, de seres medianos, com vidas e obras medianas. 

Não admira que muitos desses náufragos do paternalismo sintam necessidade de participar em concursos públicos para terem o que nunca tiveram na vida. Um pouco de violência instrutiva." 

João Pereira Coutinho
(Em sua coluna na Folha de S. Paulo desta segunda-feira)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Uma lição

"Verde que te quero verde me quedo sozinho. O homem tem de resolver sozinho todos os problemas importantes. Nem mesmo a experiência alheia ajuda: como é a morte, quem é Deus?"

Carlos Heitor Cony
(Em "Tijolos de Segurança", pg 45)

domingo, 30 de outubro de 2011

O solitário na metrópole

"Não é a distância que mede o afastamento. O muro de um jardim de nossa casa pode encerrar mais segredos que as muralhas da China, e a alma de uma simples mocinha é melhor protegida pelo silêncio do que o oásis do Saara pela extensão das areias."

Antoine de Saint-Exupéry
(Em "Terra dos Homens", trad. Rubem Braga, Nova Fronteira 2006, pg 57)

sábado, 29 de outubro de 2011

O sonho acordado de Descartes

"Agora, vamos dar uma olhada no que o argumento de fato diz. Ele começa, você irá lembrar, com uma afirmação supostamente de um fato  - a saber, que 'não há nenhuma diferença de qualidade entre as percepções que são verídicas na apresentação de coisas materiais e aquelas que são ilusórias', que 'não há nenhuma diferença qualitativa entre sense-data normais e anormais'. Bom, deixando de lado, tanto quanto possível, as numerosas obscuridades nesta maneira de falar, perguntemos se o que está sendo afirmado aqui é de fato verdade. É o caso que experiências verídicas e ilusórias não são qualitativamente diferentes? Bem, ao menos parece perfeitamente extraordinário dizer algo assim de tal forma tão superficial. Considere alguns exemplos. Eu posso ter a experiência (dita presumivelmente ilusória) de sonhar que estou sendo apresentado ao Papa. Poderíamos levar a sério que ter esse sonho é 'qualitativamente' indistinguível de ser verdadeiramente apresentado ao Papa? É claro que não. Afinal de contas, temos a expressão 'dream-like experience' (experiência do tipo sonho); algumas experiências normais são ditas ter esta qualidade 'tipo sonho', e alguns artistas e escritores ocasionalmente tentam retratar isto em suas obras. Mas é claro, se o fato aqui fosse de fato um fato, a expressão seria completamente sem sentido, porque seria aplicada a tudo. Se sonhos não fossem 'qualitativamente' diferentes de experiências reais, então toda experiência durante vigília seria como um sonho; a qualidade 'tipo-sonho' seria impossível de ser evitada. É verdade que sonhos são narrados nos mesmos termos de experiências reais: estes termos, no final das contas, são os melhores termos que temos; mas seria um grande erro concluir disso que o que é narrado nos dois casos é exatamente igual. Quando nós somos atingidos na cabeça, dizemos por vezes ter 'visto estrelas'; mas mesmo assim, ver estrelas quando você é atingido na cabeça não é qualitativamente indistinguível de ver estrelas quando você olha para o céu."

John Austin
(Traduzido livremente de "Sense and Sensibilia", Oxford 1962, pg 49)

Nostalgia Intelectual

Dois excertos do diário de Jean-Paul Sartre durante a segunda guerra mundial ("Diario de uma Guerra Estranha", trad. Aulyde Soares Rodrigues, Nova Fronteira, 2nd ed., 2005):


Quarta-feira, 29 de novembro de 1939 (Caderno III)

"Desde 2 de setembro, li ou reli:

O castelo, de Kafka
O processo, de Kafka
A colônia penal, de Kafka
Journal, de Dabit
Journal, de Gide
Journal, de Green
Les Enfants du limon, de Queneau
Un rude hiver, de Queneau
Mars ou la guerre jugée, de Alain
Prélude à Verdun, de Romains
Verdun, de Romains
Quarante-huit, de Cassou
La Cavalière Elsa, de Mac Orlan
O coronel Jack, de Defoe
Segundo volume das obras de Shakespeare (Pléiade)
Terra dos homems, St. Exupéry
Un testament espagnol, de Koestler"


Terça-feira, 19 de dezembro de 1939 (Caderno V)

"Li - desde o último recenseamento das minhas leituras:

Mac Orlan: Sous la lumière froide
Paul Morand: Ouvert la nuit
Marivaux: Théâtre choisi
Mérimée: Mosaïque
Mérimée: Colomba
Flaubert: A educação sentimental
Kierkegaard: Le concept d'angoisse
Dorgelès: Les Croix de bois"



[Progredimos nesses 70 anos! A vida é tão mais fácil! Hoje basta ler meia dúzia de livros e está-se já autorizado a vestir a carapuça de "intelectual".]

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Uma canção para quem tem (ou teve) que ir embora e sente falta (do que nunca possuiu)

(o video que constava neste post foi retirado porque o ECAD absurdamente cobra direitos autorais de blogueiros que retransmitem videos do youtube)


"It's not time to make a change
Just relax, take it easy
You're still young, that's your fault
There's so much you have to know.
Find a girl, settle down
If you want, you can marry
Look at me, I am old
But I'm happy.

"I was once like you are now
And I know that it's not easy
To be calm when you've found
Something going on.
But take your time, think a lot
I think of everything you've got
For you will still be here tomorrow
But your dreams may not.

"How can I try to explain
When I do he turns away again
And it's always been the same,
Same old story.
From the moment I could talk
I was ordered to listen
Now there's a way and I know
That I have to go away
I know I have to go.

"It's not time to make a change
Just sit down and take it slowly,
You're still young that's your fault
There's so much you have to go through.
Find a girl, settle down,
If you want, you can marry,
Look at me, I am old
But I'm happy.

"All the times that I've cried
Keeping all the things I knew inside
And it's hard, but it's harder
To ignore it.
If they were right, I'd agree
But it's them, they know, not me
Now there's a way and I know
That i have to go away,
I know I have to go."

Cat Stevens

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A solidão da vida

"Pouco a pouco a confiança se dissolvia. Difícil é crer em algo quando se é só, e não se pode falar com ninguém. Próprio nestes dias Drogo deu-se conta de como os homens, por mais que possam querer bem uns aos outros, permanecem sempre separados uns dos outros; se um sofre, a dor é completamente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte que seja; se um sofre, os outros por isto não se sentem mal, mesmo que o amor seja grande, e isto provoca a solidão da vida."

Dino Buzzatti
(Traduzido livremente de "Il Deserto dei Tartari", Mondatori, pg 168) 

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Os maus hábitos dos (maus) filósofos

"'Realidade' é uma palavra absolutamente normal, não há nada técnico ou especializado por trás dela. É, como se diz, bem estabelecida e frequentemente usada na linguagem comum que todos nós empregamos diariamente. Então, neste sentido, é uma palavra que já possui um sentido fixo e não pode, não mais que qualquer outra palavra já firmemente estabelecida, ser usada ao bel prazer. Os filósofos frequentemente pensam que podem simplesmente determinar qualquer sentido de qualquer palavra. (...) Mas devemos sempre ficar particularmente desconfiados diante ao hábito dos filósofos de ignorar alguns (se não todos) os usos ordinários das palavras como se eles fossem 'irrelevantes', um hábito que faz com que as distorções no argumento sejam praticamente inevitáveis. (...)  Agora, palavras desse tipo [o real, a realidade] foram responsáveis por muita perplexidade. Considere as expressões 'bola de cricket', 'bastão de cricket', 'pavilhão de cricket', 'tempo de cricket'. Considere alguém que não soubesse nada sobre cricket e fosse obcecado com o uso de palavras 'normais' como 'amarelo': ele poderia olhar para a bola, o bastão, o prédio, as condições do tempo, tentando detectar uma 'qualidade comum' que (ele assume) é atribuído a todas essas coisas pela qualificação 'de cricket'. Mas nenhuma tal qualidade é encontrada; e então talvez ele conclua que 'cricket' deve designar uma qualidade não-natural, uma qualidade a ser detectada não através de algum modo normal mas pela 'intuição'. Se esta história parece absurda, lembre-se o que os filósofos dizem sobre palavras como 'bem'; e reflita sobre o modo que muitos filósofos, por não detectarem nenhuma qualidade comum a um pato real, leite real e progresso real, decidiram que realidade deveria ser um conceito a priori apreendido pela razão."

John Austin
(Traduzido livremente de "Sense and Sensibilia", Oxford 1962, pg 63-64)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Reductio ad 'ridiculum'

"Em 'The Modularity of Mind' Jerry Fodor chama os 'outputs' dos assim supostos 'módulos da percepção' de aparências. Assume portanto que quando uma dessas rotinas de reconhecimento de padrões produz um 'output' o evento é, ipso facto, um evento consciente. Mas isto é difícil de engolir. Se, por exemplo, dizemos que os módulos de experiência visual estão no córtex visual, onde por hipótese eles se encontram, então esquecemos que o córtex visual pode ser dissociado de outras áreas, como o módulo da linguagem. Diríamos então que nestes casos há um 'sense data' visual do qual não se é consciente? E o que aconteceria se nossa tecnologia avançasse ao ponto de podermos remover do cérebro o módulo envolvido na recognição visual de, digamos, cadeiras e mantê-lo vivo e funcionando em um recipiente? Diríamos então que há "aparências de cadeira" sem ninguém a experimentar tais aparências? Se "sense data" ou aparências podem ser produzidas em um número pequeno de neurônios, por que não falar então das aparências do termostato? This way madness lies!"

Hilary Putnam
(Traduzido livremente de "The threefold cord: mind body and world", Columbia Univ. Press 1999, pg 30-31)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A ficção da ciência da consciência

"O ponto chave dos meus argumentos contra as 'teorias da identidade' (incluindo a minha antiga teoria funcionalista) é que a noção de identidade não possui nenhum sentido neste contexto. Não podemos, por exemplo, aplicar o modelo de identificação teórica, como aquele da famosa redução da termodinâmica à mecânica estatística, porque este modelo assume que ambas, a entidade reduzida e a teoria que reduz, obedeçam leis físicas bem estabelecidas (tal que a proposta identidade, por exemplo, 'temperatura é energia cinética média', possa ser testada monstrando-se que se a assumirmos, as leis da teoria reduzida - termodiâmica - poderão ser derivadas das leis da teoria que reduz - mecânica estatística). Não podemos perguntar se as leis da 'folk psychology' são ou não são derivadas de algum conjunto de identidades entre os atributos da psicologia e algumas propriedades computacionais, porque a noção de uma 'propriedade computacional' depende essencialmente de qual formalismo o 'programa' é escrito, e ninguém tem a menor idéia sobre qual formalismo poderia fazer esse tipo de redução. Enquanto não dermos um sentido preciso para uma 'propriedade computacional' neste contexto, todo esse papo de funcionalismo é ficção científica. Nenhuma discussão séria e científica foi levantada."

Hilary Putnam
(Traduzido livremente de "The threefold cord: mind body and world", Columbia Univ. Press 1999, pg 85)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Camus, senhores, Albert Camus!

"Existem portanto para o homem uma ação e um pensamento possíveis no nível médio que é o seu. Qualquer empreendimento mais ambicioso revela-se contraditório. O absoluto não é alcançado, nem muito menos criado através da história. A política não é a religião; do contrário, não passa de inquisição. Como a sociedade definiria um absoluto? Talvez cada qual busque, por todos, esse absoluto. Mas a sociedade e a política têm apenas o encargo de ordenar os negócios de todos para que cada qual tenha o lazer e a liberdade dessa busca comum. A história não pode mais ser erigida como objeto de culto. Ela não é mais que uma oportunidade, que deve ser tornada profícua por uma revolta vigilante.

'A obsessão pela colheita e a indiferença em relação à história', escreve admiravelmente René Char, 'são as duas extremidades de meu arco'. Se o tempo da história não é feito do tempo da colheita, a história não é mais que a sombra fugaz e cruel onde o homem não encontra mais seu quinhão. Quem se entrega a essa história não se entrega a nada e, por sua vez, nada é. Mas quem se dedica ao tempo de sua vida, entrega-se à terra, dela recebendo a colheita que semeia e nutre novamente. São enfim aqueles que sabem, no momento desejado, revoltar-se também contra a história que a fazem progredir. Isso supõe uma interminável tensão e a serenidade crispada de que nos fala o mesmo poeta. Mas a verdadeira vida está presente no coração dessa dicotomia. Ela é o próprio dilaceramento, o espírito que paira acima dos vulcões de luz, a loucura pela equidade, a intransigência extenuante da medida. Para nós, o que ressoa nos confins dessa longa aventura revoltada não são fórmulas de otimismo, que não têm utilidade no extremo de nossa desgraça, mas sim palavras de coragem e de inteligência, que, junto ao mar, são até mesmo virtude.


Nenhuma sabedoria atualmente pode pretender dar mais. A revolta confronta incansavelmente o mal, do qual só lhe resta tirar um novo ímpeto. O homem pode dominar em si tudo aquilo que deve ser dominado. Deve corrigir na criação tudo aquilo que pode ser corrigido. Em seguida, as crianças continuarão a morrer sempre injustamente, mesmo na sociedade perfeita. Em seu maior esforço, o homem só pode propor-se uma diminuição aritmética do sofrimento do mundo. Mas a injustiça e o sofrimento permanecerão e, por mais limitados que sejam, não deixarão de ser um escândalo. O 'por quê?' de Dimitri Karamazov continuará a ecoar; a arte e a revolta só morrerão com a morte do último homem.


Há sem dúvida um mal que os homens acumulam em seu desejo apaixonado de unidade. Mas um outro mal está na origem desse movimento desordenado. Diante desse mal, diante da morte, o homem, no mais profundo de si mesmo, clama por justiça. O cristianismo histórico só respondeu a esse protesto contra o mal pela anunciação do reino e, depois, da vida eterna, que exige a fé. Mas o sofrimento desgasta a esperança e a fé; ele continua então solitário e sem explicação. As multidões que trabalham, cansadas de sofrer e morrer, são multidões sem deus. Nosso lugar, a partir de então, é a seu lado, longe dos antigos e dos novos doutores. O cristianismo histórico adia para além da história a cura do mal e do assassinato, que, no entanto, são sofridos na história. O materialismo contemporâneo julga, da mesma forma, responder a todas as perguntas. Mas, escravo da história, ele aumenta o domínio do assassinato histórico, deixando-o ao mesmo tempo sem justificação, a não ser no futuro, que, ainda uma vez, exige a fé. Em ambos os casos, é preciso esperar e, enquanto isso, os inocentes não deixam de morrer. Há vinte séculos, a soma total do mal não diminuiu no mundo. Nenhuma parúsia, quer divina ou revolucionária, se realizou. Uma injustiça continua imbricada em todo sofrimento, mesmo o mais merecido aos olhos dos homens O longo silêncio de Prometeu diante das forças que o oprimem continua a gritar. Mas, nesse ínterim, Prometeu viu os homens se voltarem também contra ele, ridicularizando-o. Espremido entre o mal humano e o destino, o terror e o arbítrio, só lhe resta sua força de revolta para salvar do assassinato aquilo que ainda pode ser salvo, sem ceder ao orgulho da blasfêmia.


Compreende-se então que a revolta não pode prescindir de um estranho amor. Aqueles que não encontram descanso nem em Deus, nem na história estão condenados a viver para aqueles que, como eles, não conseguem viver: para os humilhados. O corolário do movimento mais puro da revolta é então o grito dilacerante de Karamazov: se não forem salvos todos, de que serve a salvação de um só? Dessa forma, condenados católicos, nas masmorras da Espanha, recusam hoje a comunhão, porque os padres do regime tornaram-na obrigatória em certas prisões. Também eles, únicas testemunhas da inocência crucificada, recusam a salvação, se seu preço é a injustiça e a opressão. Essa louca generosidade é a da revolta, que oferta sem hesitação sua força de amor, e recusa peremptoriamente a injustiça. Sua honra é de não calcular nada, distribuir tudo na vida presente, e aos seus irmãos vivos. Desta forma, ela é pródiga para os homens vindouros. A verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo no presente.


Com isso, a revolta prova que ela é o próprio movimento da vida e que não se pode negá-la sem renunciar à vida. Seu grito mais puro, a cada vez, faz com que um ser se revolte. Portanto, ela é amor e fecundidade ou então não é nada. A revolução sem honra, a revolução do cálculo, que, ao preferir o homem abstrato ao homem de carne e osso, nega a existência tantas vezes quanto necessário, coloca o ressentimento no lugar do amor. Tão logo a revolta, esquecida de suas origens generosas, deixa-se contaminar pelo ressentimento, ela nega a vida, correndo para a destruição, fazendo sublevar-se a turba zombeteira de pequenos rebeldes, embriões de escravos, que acabam se oferecendo hoje, em todos os mercados da Europa, a qualquer servidão. Ela não é mais revolta nem revolução, mas rancor e tirania. Então, quando a revolução, em nome do poder e da história, torna-se esta mecânica assassina e desmedida, uma nova revolta é consagrada, em nome da moderação e da vida. Estamos neste extremo. No fim destas trevas, é inevitável, no entanto, uma luz, que já se adivinha - basta lutar para que ela exista. Para além do niilismo, todos nós, em meio aos escombros, preparamos um renascimento. Mas poucos sabem disso.


E já a revolta, na verdade, sem pretender tudo resolver, pode pelo menos tudo enfrentar. A partir deste instante, a luz jorra sobre o próprio movimento da história. Em torno dessa fogueira devoradora, combates e sombras agitam-se por um momento, depois desaparecem, e cegos, tocando suas pálpebras, exclamam que isto é a história. Os homens da Europa, abandonados às sombras desviaram-se do ponto fixo e reluzente. Eles trocam o presente pelo futuro, a humanidade pela ilusão do poder, a miséria dos subúrbios por uma cidade fulgurante, a justiça cotidiana por uma verdadeira terra prometida. Perdem a esperança na liberdade das pessoas e sonham com uma estranha liberdade da espécie; recusam a morte solitária e chamam de imortalidade uma prodigiosa agonia coletiva. Não acreditam mais naquilo que existe, no mundo e no homem vivo; o segredo da Europa é que ela não ama mais a vida. Os seus cegos acreditaram de modo pueril que amar um único dia da vida equivalia a justificar séculos inteiros de opressão. Por isso, quiseram apagar a alegria do quadro do mundo, adiando-a para mais tarde. A impaciência dos limites, a recusa da vida na duplicidade, o desespero de ser homem levaram-nos, finalmente, a uma desmedida desumana. Ao negarem a justa grandeza da vida, precisaram apostar na sua própria excelência. Na falta de coisa melhor, eles se divinizaram e sua desgraça começou: estes deuses têm olhos vazados. Kaliayev e seus irmãos do mundo inteiro recusam, pelo contrário, a divindade, já que rejeitam o poder ilimitado de matar. Eles escolhem, e nos dão como exemplo, a única regra original em nossos dias: aprender a viver e a morrer e, para ser homem, recusar-se a ser deus.
"
("O Homem Revoltado", trad. Valerie Rumjanek, Record 2010, pg 346-350)



Albert Camus  
7/11/1913 - 4/1/1960

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Ser humano ( = revolta) : algo além dos determinismos da História

"A liberdade mais extrema, a liberdade de matar, não é compatível com as razões da revolta. A revolta não é, de forma alguma, uma reivindicação de liberdade total. Ao contrário, a revolta ataca sistematicamente a liberdade total. Ela contesta, justamente, o poder ilimitado que permite a um superior violar a fronteira proibida. Longe de reivindicar uma independência geral, o revoltado quer que se reconheça que a liberdade tem seus limites em qualquer lugar onde se encontre um ser humano, já que o limite é precisamente o poder de revolta desse ser. Nisto reside a razão profunda da intransigência revoltada. Quanto mais a revolta tem consciência de reivindicar um limite justo, mais ela é inflexível. O revoltado exige sem dúvida uma certa liberdade para si mesmo; mas em nenhum caso, se for consequente, reivindicará o direito de destruir a existência e a liberdade do outro. Ele não humilha ninguém. A liberdade que reclama, ele a reivindica para todos; a que recusa, ele a proíbe para todos. Não se trata somente de escravo contra senhor, mas também de homem contra o mundo do senhor e do escravo, algo além, graças à revolta, da relação entre domínio e escravidão na história. Aqui, o poder ilimitado não é a única lei. É em nome de outro valor que o revoltado afirma ao mesmo tempo a impossibilidade da liberdade total e reclama para si mesmo a liberdade relativa, necessária para reconhecer essa impossibilidade. Toda liberdade humana, em sua essência, é dessa forma relativa. A liberdade absoluta, ou seja, a liberdade de matar, é a única que não reclama ao mesmo tempo que a si mesma aquilo que a limita e oblitera. Ela se desvincula então de suas raízes, erra ao acaso, sombra abstrata e malévola, até que imagina encontrar um corpo na ideologia. É possível dizer portanto que a revolta, quando desemboca na destruição, é ilógica. Ao reclamar a unidade da condição humana, ela é força de vida, não de morte. Sua lógica profunda não é a da destruição; é a da criação. "

Albert Camus
(Em "O Homem Revoltado", trad. , Valerie Rumjanek, Record 2010, pg 326-327)

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Memória seletiva

"É curioso como se recordam mais as palavras ditas do que aqueles sentimentos que não chegaram a sacudir o ar"

Italo Svevo
(Traduzido livremente de "La Coscienza di Zeno", Mondatori 1988, pg 198)

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A solução de quem cala

"Acreditava que, ao nomear os problemas, eles se materializavam e já não era possível ignorá-los; por outro lado, se ficam no limbo das palavras não ditas, podem desaparecer sozinhos, com o decorrer do tempo."

Isabel Allende
(Em "A Casa dos Espíritos", Trad. Carlos Martins Pereira, Bertrand Brasil 2005, pg 180)

domingo, 16 de outubro de 2011

Lama

"Há sempre um pouco de lama, em certas horas, em determinadas datas, se esquece a lama. Mas ela paira por cima de tudo: ao menor pretexto rompe os diques e emporcalha tudo. Ódios velados, amores recalcados, palavras amargas, gestos apressados, formam um mundo amargo que se arrasta com cada um"

Carlos Heitor Cony
(Em "Tijolos de Segurança")

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Hegel e a filosofia

"Sem dúvida, tudo se reconcilia na dialética, e não se pode colocar um extremo sem que surja o outro; em Hegel, como em todo grande pensamento, há material para contrariar Hegel. Mas os filósofos raramente são lidos apenas com a inteligência, mas, muitas vezes, com o coração e suas paixões, que nada reconciliam."

Albert Camus
(Em "O Homem Revoltado", trad. , Valerie Rumjanek, Record 2010, pg 149)

domingo, 9 de outubro de 2011

O deus desencarnado dos filósofos

"Princípios eternos comandam a nossa conduta: a Verdade, a Justiça, a Razão, enfim. Eis o novo deus. O Ser supremo que legiões de moças vêm adorar, ao festejarem a Razão, não é mais que o deus antigo, desencarnado, bruscamente cortado de quaisquer amarras com a terra, e que foi solto, como um balão, no céu vazio dos grandes princípios. Privado de seus representantes, de qualquer intercessor, o deus dos filósofos e dos advogados tem apenas o valor de demonstração. Na realidade, ele é bem fraco e compreende-se por que Rousseau, que pregava a tolerância, achava contudo que era preciso condenar à morte os ateus. Para adorar por muito tempo um teorema, não basta a fé, é preciso ainda uma polícia."

Albert Camus
(Em "O Homem Revoltado", trad. , Valerie Rumjanek, Record 2010, pg 149)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Força!

"Força! Vá! Vá! Quem se acontenta de ser feliz não pode ser feliz, lembre-se!"

Ohram Pamuk
(Traduzido livremente de "Neve", trad. Marta Bertolini, Einaudi 2007, pg 377)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A razão de ser da literatura

"Eu conto histórias para me tornar eu mesmo"

Ohram Pamuk.
(Traduzido livremente de "The Black Book", trad. Maureen Freely, Faber & Faber 2006, pg 417)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A flecha que não alçou vôo

" No meio-dia do pensamento, a revolta recusa a divindade para compartilhar as lutas e o destino comuns. Nós escolheremos Ítaca, a terra fiel, o pensamento audacioso e frugal, a ação lúcida, a generosidade do homem que compreende. Na luz, o mundo continua a ser nosso primeiro e último amor. Nossos irmãos respiram sob o mesmo céu que nós, a justiça está viva. Nasce então a estranha alegria que nos ajuda a viver e a morrer e que, de agora em diante, nos recusaremos a adiar para mais tarde. Na terra dolorosa, ela é o joio inesgotável, o amargo alimento, o vento forte que vem dos mares, a antiga e a nova aurora. Com ela, ao longo dos combates, iremos refazer a alma deste tempo e uma Europa que nada excluirá. Nem esse fantasma, Nietzsche, que, durante doze anos após sua derrocada, o Ocidente ia evocar como a imagem arruinada de sua mais elevada consciência e de seu niilismo; nem esse profeta da justiça sem ternura, que descansa, por um erro, na quadra dos incréus no cemitério de Highgate; nem a múmia deificada do homem de ação em seu caixão de vidro; nem nada do que a inteligência e a energia da Europa forneceram incessantemente ao orgulho de uma época desprezível. Todos, na verdade, podem reviver junto aos mártires de 1905, mas com a condição de compreender que eles se corrigem uns aos outros e que, sob o sol, um limite refreia todos. Um diz ao outro que não é Deus; aqui se encerra o romantismo. Nessa hora em que cada um de nós deve retesar o arco para competir novamente e reconquistar, na e contra a história, aquilo que já possui, a magra colheita de seus campos, o breve amor desta terra, no momento em que, finalmente, nasce um homem, é preciso renunciar à época e aos seus furores adolescentes. O arco se verga, a madeira geme. No auge da tensão, alçará vôo, em linha reta, uma flecha mais inflexível e mais livre."

Albert Camus
(Em "O Homem Revoltado", trad. , Valerie Rumjanek, Record 2010, pg 350-351)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Um nada reservado para tudo

"Por vezes, fico chocado, viro uma esquina, vejo o oceano, e meu coração dispara com felicidade - sinto-me tão livre! Então vem-me a idéia de que, assim como observo, posso também ser observado do acolá, não sou um objeto discreto mas estou incorporado com o resto, com esta safira universal, de um azul púrpura. Pois o que este mar, esta atmosfera, está fazendo com as 8 polegadas de diâmetro da sua cabeça? (Não digo nada do sol e da galáxia que também estão lá). No centro do observador deve haver espaço para o todo, e este espaço-nada não é um nada vazio mas um nada reservado para tudo"

Saul Bellow
(Em "Humboldt's Gift", traduzido livremente da citação em "Out of our Heads" de Alva Noë, Hill and Wang, 2009, pg 171.)

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O caráter encontra-se nos feitos

"É de fato um ato vão tentar descrever a natureza de algo. Notamos os seus efeitos e a consideração completa de seus efeitos compreende a natureza deste algo. Tentamos em vão descrever o caráter de um homem; mas é uma descrição de seus feitos e de suas ações que gera em nós a imagem de seu caráter."

Goethe
(Em "The Theory of Colors", traduzido livremente a partir de citação em "Action and Perception", de Alva Noë, MIT Press, 2004, pg xi)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Maturidade

"Uma concha forma-se por sobre a alma, suave, nacarada, lustrosa, e nela as sensações golpeiam seus bicos em vão. Em mim formou-se mais cedo do que na maioria. Logo eu estaria cortando minha pêra, quando os outros tivessem terminado sua sobremesa. E conseguia concluir minha frase num silêncio absoluto. É também nessa estação que a perfeição nos atrai como um chamariz. Pensamos poder aprender espanhol amarrando uma cordinha ao pé e acordando mais cedo. Enchemos os pequenos compartimentos de nossa agenda com jantares às oito; almoços à uma e trinta. Temos camisas, meias, gravatas expostas sobre a cama. Mas é um erro, essa precisão extremada, esse avanço ordenado e militar; uma conveniência, uma mentira. Por debaixo, bem no fundo, mesmo quando chegamos pontualmente na hora marcada, com nossos coletes alvos e cortesias formalizadas, há sempre uma torrente rápida de sonhos desmoronados, cantigas de criança, gritos na rua, frases inconclusas e suspiros, que se alteia e baixa mesmo quando levamos uma dama para jantar. Enquanto colocamos o garfo tão precisamente sobre a toalha, mil rostos fazem caretas. Não há nada que se possa pescar com a colher; nada que se possa chamar de acontecimento."

Virginia Woolf
(Em "As Ondas", Tradução de Lya Luft, Nova fronteira 2004, pg 191)

sábado, 24 de setembro de 2011

Abre!

"Sou o melhor aluno do colégio. Mas, quando a noite chega, saio desse corpo inviável e habito os espaços. Então faço-me companheiro de Platão e de Virgílio. Sou o último descendente das grandes casas de França. Contudo, sou também aquele que se obrigará a abandonar esses territórios enluarados e varridos pelo vento, esses passeios à meia-noite, e se defrontará com ásperas portas de carvalho. No correr de minha vida - os Céus permitam que não seja longa -, farei o gigantesco amálgama das discrepâncias tão cruelmente óbvias em mim. Conseguirei isso à força de tanto sofrer. Vou bater. Vou entrar."

Virginia Woolf
(Em "As Ondas", Tradução de Lya Luft, Nova fronteira 2004, pg 39)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A servidão é coletiva...

"Ah! Os sonsos, atores, hipócritas, e ainda por cima tão comoventes! Acredite-me, todos o são, mesmo quando ateiam fogo no céu. Quer sejam ateus ou devotos, moscovitas ou bostonianos, são todos cristãos, de pai para filho. Mas precisamente, já não há pai, já não há regra! Somos livres, é preciso, então, se virar, e como, sobretudo, eles não querem liberdade, nem suas sentenças, pedem para ser repreendidos, inventam regras terríveis, correm para fazer fogueiras em substituição às igrejas. É como eu lhe digo, são uns Savonarolas. Mas só crêem no pecado; na graça, nunca. Pensam nela, é bem verdade. A graça, eis o que eles querem, o sim, o abandono, a felicidade de ser e, quem sabe, porque eles também são sentimentais, o noivado, a moça em flor, o homem direito, a música. Eu, por exemplo, que não sou sentimental, quer saber com o que sonhei? Com um amor total, de corpo e alma, dia e noite, em um abraço sem fim, de prazer e de exaltação, durante cinco anos seguidos e, depois disso, a morte. Ai de mim!
 
E então, não é assim, à falta de noivado ou do amor incessante, resta o casamento, brutal, com a força e o chicote. O essencial é que tudo se torne simples, como para a criança, que cada ato seja comandado, que o bem e o mal sejam designados de maneira arbitrária, portanto evidente. E eu estou de acordo com isso, por mais siciliano e javanês que seja, e além de tudo sem nada de cristão, se bem que tenha amizade pelo primeiro que me apareça. Mas, nas pontes de Paris, eu também compreendi que tinha medo da liberdade. Viva, pois, o senhor; qualquer que ele seja, para substituir a lei do céu. 'Pai nosso que estais provisoriamente aqui... Nossos guias, nossos chefes deliciosamente severos, ó condutores crués e bem-amados...' Enfim, como se vê, o essencial é não mais ser livre e sim obedecer, no arrependimento, a quem for mais malandro do que nós. Quando formos todos culpados, será a democracia. Sem contar, caro amigo, que é preciso nos vingarmos de ter de morrer sozinhos. A morte é solitária, ao passo que a servidão é coletiva. Os outros também têm a sua conta, e ao mesmo tempo que nós, eis o que importa. Todos reunidos, enfim, mas de joelhos e de cabeça baixa."

Albert Camus
(Em "A Queda", tradução Valerie Rumjanek, Record 2004, pg 102)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

On Certainty

"Aí está, não se tem certeza, nunca se tem certeza. Senão, haveria uma saída, poderíamos, finalmente, fazer com que nos levassem a sério. Os homens só se convencem das nossas razões, da nossa sinceridade e da gravidade de nossos sofrimentos, com a nossa morte. Enquanto estivermos vivos, o nosso caso é duvidoso, só temos direito ao seu ceticismo. Se houvesse, então, uma única certeza de podermos gozar o espetáculo, valeria a pena provar-lhes o que eles não querem crer e deixá-los assombrados. Mas uma pessoa se mata, e que importa se eles acreditam ou não? Não estamos presentes para colher os frutos do seu espanto e de sua contrição, aliás efêmera; assistir, enfim, segundo o sonho de cada homem, ao próprio funeral. Para deixar de ser duvidoso é preciso, pura e simplesmente, deixar de ser."

Albert Camus
(Em "A Queda", tradução Valerie Rumjanek, Record 2004, pg57)

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Os Cães

"O sentimento do direito, a satisfação de ter razão, a alegria de nos estimarmos a nós próprios são, meu caro senhor, impulsos poderosos para nos manter de pé ou nos fazer avançar. Pelo contrário, privar os homens desses impulsos é transformá-los em cães raivosos. Quantos crimes cometidos, simplesmente porque o seu autor não podia suportar o fato de estar errado!"

Albert Camus
(Em "A Queda", tradução Valerie Rumjanek, Record 2004, pg 16)

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Homens-bestas

"Quando se recusa a se servir alguém, basta-lhe um grunhido: ninguém insiste. Ser senhor de seu próprio estado de espírito é privilégio dos grandes animais."

Albert Camus
(Em "A Queda", tradução Valerie Rumjanek, Record 2004, pg 1)

domingo, 18 de setembro de 2011

É tudo feito da mesma merda

"Todos são do mesmo barro. Todos são do mesmo barro - sobem em dignidades, entram nos cabidos, regem os seminários, dirigem as consciências envoltos em Deus como numa absolvição permanente, e têm no entanto, numa viela, uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das atitudes devotas e da austeridade do ofício, fumando cigarros de estanco e palpando uns braços rechonchudos!"

Eça de Queirós
(Em "O Crime do Padre Amaro", Editora Moderna 2002, pg 76)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

"Não há lugar para a cultura no ambiente das resenhas"

"A família que não se envolve no jogo dos filhos, que empresta o smartphone para os rebentos em restaurantes e que liga o vídeo no carro para que não importunem, está criando cidadãos autistas e egoístas, cujo consumo de informação tenderá a ser pragmático, pornográfico, indiferente. Não há lugar para a cultura no ambiente das resenhas."

Luli Radfahrer
(Em sua coluna indignada - mais um indignado e com razão - desta quarta-feira na Folha)

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Ignorância que salva

"A salvação e o suplício do homem estão em que, quando ele vive de maneira errada, pode enevoar-se, a fim de não ver a miséria de sua condição".

Lev Tolstoi
(Em "A Sonata a Kreutzer", Trad. Boris Schnaiderman, Editora 34, 2007, pg 60)

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Revoltar-se, agindo ou não!

"Fazer. Fazer algo. Fazer o bem, fazer mais, fazer tempo, a ação em todas suas formas. Mas por trás de toda ação havia um protesto, porque todo fazer significa um sair de para chegar a, ou  mover algo para que esteja aqui e não ali, ou entrar nessa casa em vez de não entrar ou entrar na casa ao lado, em todo ato havia a admissão de uma carência, de algo ainda não feito e que era possível de ser feito, o protesto tácito frente à contínua evidência de falta, da escassez do presente. Crer que a ação podia culminar, ou que a soma das ações podia realmente equivaler a uma vida digna deste nome, isto sim era uma ilusão de moralista. Mais valia renunciar, pois a renuncia à ação era o próprio ato de revolta e não sua máscara."

Julio Cortazar
(Traduzido livremente de "Rayuela", Sudamericana 1963, pg 18)

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Faculdades de educação? Humpf.

"A rigor, a escola de aplicação da USP deveria estar entre as primeiras do Brasil se soubesse aproveitar as infindáveis possibilidades de seu campus e experimentando métodos inovadores. De resto, sua clientela nem de longe se assemelha com a de Parelheiros. É por fatos desse tipo que, entre educadores, cresce a visão de que as faculdades de educação estão longe da realidade e não sabem preparar professores para resolver os desafios de sala de aula, perdendo-se em teorias pedagógicas."

Gilberto Dimenstein
(Indignado - e com razão - em sua coluna desta segunda-feira na Folha)

domingo, 11 de setembro de 2011

Vida (morte) na cidade

"Na cidade, um homem pode viver cem anos e nem perceber que já morreu e apodreceu há muito. Não há tempo para alguém examinar a si mesmo, está tudo ocupado."

Lev Tolstoi
(Em "A Sonata a Kreutzer", Trad. Boris Schnaiderman, Editora 34, 2007, pg 62)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

"Olhar o" x "Estar em"

"- Não podias - disse -. Pensas demais antes de fazer nada.
- Parto do princípio que a reflexão deve preceder a ação, bobinha.
- Partes do princípio... Que complicado! És como uma testemunha, és como aquele que vai ao museu e olha os quadros. Quero dizer, os quadros estão aí e tu no museu, próximo e longe ao mesmo tempo. Eu sou um quadro. Rocamandour é um quadro. Etienne é um quadro, este quarto é um quadro. Acreditas que estás neste quarto, mas não estás. Estás olhando o quarto, não estás no quarto.
- Esta guria falaria mal de São Tomás - disse Oliveira.
- Por que São Tomás? Esse idiota que queria ver para crer?
- Sim, querida - disse Oliveira, pensando que no fundo a Maga tinha encontrado o verdadeiro santo. Feliz dela que podia crer sem ver, que ganhava corpo com a duração, o continuo da vida. Feliz dela que estava dentro do quarto, que encontrava cidadania em tudo o que tocava e com tudo que convivia, era peixe no rio abaixo, folha na árvore, nuvem no céu, imagem no poema."

Julio Cortazar
(Traduzido livremente de "Rayuela", Sudamericana 1963, pg 21)

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A andorinha e os rios metafísicos

"Em rios metafísicos, ela nada como essa andorinha está nadando no céu, girando alucinada em torno ao campanário, deixando-se cair para levantar-se melhor com o impulso. Eu descrevo e defino e desejo esses rios, ela neles flutua. Eu busco-os, encontro-os, olho-os de cima da ponte, ela neles nada. E não sabe, assim como a andorinha. Não necessita saber como eu necessito, pode viver em desordem sem que nenhuma consciência de ordem a retenha. Essa desordem que é sua ordem misteriosa, essa boemia do corpo e alma que a ela abre as verdadeiras portas." 

Julio Cortazar
(Traduzido livremente de "Rayuela", Sudamericana 1963, pg 79)

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Nas viradas do acaso

"O mundo não é eterno e tudo tem um prazo
Nossas vontades mudam nas viradas do acaso;
Pois esta é uma questão ainda não resolvida:
A vida faz o amor, ou este faz a vida?
Se o poderoso cai, somem até favoritos;
Se o pobre sobe surgem amigos irrestritos.
E até aqui o amor segue a fortuna, eu digo;
A quem não precisa nunca falta um amigo.
Mas quem, precisado, prova um falso amigo
Descobre, oculto nele, um inimigo antigo."

William Shakespeare
(Em "Hamlet", trad. Millôr Fernandes, L&PM 2004, pg 74)

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A consciência é um atravessar coisas em direção a outras

"Eu não apreendo minha mão no ato de escrever, somente a caneta com a qual estou escrevendo; isto significa que eu uso minha caneta de modo a formar letras mas não minha mão de modo a segurar a caneta. Não estou em relação com a minha mão do mesmo modo que estou em relação com a caneta. Eu sou minha mão."

Jean-Paul Sartre
(Traduzido livremete de "Being and Nothingness", trad. H. Barnes, Methuen, 1943 pg 426)

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Quando o silêncio e a obscuridade são necessários

"As tarefas que se baseiam sobre uma tenacidade interior devem ser silentes e obscuras; assim que um as declara ou delas se vangloria, tudo parece fajuto, sem sentido e até mesmo mesquinho."

Italo Calvino
(Traduzido livremente de "Il Barone Rampante", Oscar Mondadori, 2002, pg 50)

terça-feira, 30 de agosto de 2011

O acaso debaixo do sol

"Eu vi ainda debaixo do sol que a corrida não é para os mais ligeiros, nem a batalha para os mais fortes, nem o pão para os mais sábios, nem as riquezas para os mais inteligentes, mas tudo depende do tempo e do acaso"

Eclesiastes 9: 11.

domingo, 28 de agosto de 2011

Leite derramado

"Chorar o leite derramado não é tão inútil quanto se diz, é de alguma maneira instrutivo porque nos mostra a verdadeira dimensão da frivolidade de certos procedimentos humanos, porquanto se o leite derramou, derramado está e só há que limpá-lo."

José Saramago
(Em "Caim", Cia das Letras, 2009, pg 40)

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Pense, mas não sempre!

"É um truísmo profundamente errôneo, repetido em tantos livros e por eminentes discursantes, aquele que nos convida a cultivar o hábito de pensar sempre sobre o que estamos fazendo. Devemos fazer precisamente o oposto. A civilização avança justamente ao estender o número de operações que podemos efetuar sem que a respeito delas necessitemos pensar. Operações que envolvem pensamento são como cargas de cavalaria em uma batalha - elas são estritamente limitadas em número, requerem cavalos descansados, e devem ser montadas somente em momentos decisivos."

Alfred North Whitehead
(Em "Introduction to Mathematics", Holt 1911, pg 55)

domingo, 21 de agosto de 2011

Profissionais da experiência?

"(...) O doutor tem experiência. É um profissional da experiência: os médicos, os padres, os magistrados e os oficiais conhecem os seres humanos como se os tivessem feito.  (...) Como gostaria de lhe dizer que o enganam, que ele faz o jogo dos importantes. Profissionais da experiência? Arrastaram suas vidas num torpor, meio adormecidos, se casaram precipitadamente, por impaciência, e fizeram filhos ao acaso. Encontraram os outros homens nos cafés, nos casamentos, nos enterros. De quando em quando, apanhados num rodamoinho, se debateram sem compreender o que lhes acontecia. Tudo que ocorreu à sua volta começou e terminou fora de sua vista; longas formas obscuras, acontecimentos que vinham de longe roçaram-nos rapidamente e, quando eles quiseram olhar, tudo já terminara. E depois, por volta dos quarenta anos, batizam suas pequenas obstinações e alguns provérbios com o nome de experiência, começam a se fazer de distribuidores automáticos: dois níqueis na fenda da esquerda e eis que saem anedotas embrulhadas em papel prateado; dois níqueis na fenda da direita e recebem-se preciosos conselhos que grudam nos dentes como caramelos pegajosos."

Jean-Paul Sartre
(Em "A Náusea", trad. Rita Braga, Nova Fronteira, RJ, pg 106)

sábado, 20 de agosto de 2011

Depois de curar a ânsia do saber...

"Não penso em alegrias, já to disse.
Entrego-me ao delírio, ao mais cruciante gozo,
Ao fértil dissabor como ao ódio amoroso.
Meu peito, da ânsia do saber curado,
A dor nenhuma fugirá do mundo,
E o que a toda a humanidade é doado,
Quero gozar no próprio Eu, a fundo,
Com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito,
Juntar-lhe a dor e o bem-estar no peito,
E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser,
E, com ela, afinal, também eu perecer."


JW Goethe
(“Fausto”, trad. do alemão por Jenny Klabin Segail, editora 34, 2010, pg 175 - “Quarto de Trabalho”)

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O significado da pergunta

"Perguntava a si mesmo qual era o seu dever, mas quando se começa a questionar isso (dizia Baudolino) já é um sinal de que não há dever que nos motiva."

Umberto Eco
(Em "Baudolino", Record 2001, pg 246)

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Opostos

"Uma porta não é uma porta se não tem um palácio ao seu redor... Um vazio sem um cheio que o circunde não é sequer um buraco."

Umberto Eco
(Em "Baudolino", Record 2001, pg 102)

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O horror das mulheres

"Embora as mulheres se queixem tanto de serem mal-amadas e incompreendidas pelos homens, ainda assim, gostam muito pouco daqueles cujas almas têm certas qualidades femininas. Toda a sua superioridade consiste em fazer os homens acreditarem que são inferiores a elas na capacidade de amar; abandonam assim sem grande hesitação um amante jovem, quando ele é inexperiente o bastante para querer privá-las dos temores com que gostam de se enfeitar, esses deliciosos tormentos dos ciúmes falsos, esses torvelinhos da esperança enganada, as esperas vãs, enfim, todo o cortejo de desventuras femininas tão bem cultivadas; elas tem horror aos homens virtuosos."

Honoré de Balzac
(Em "Ferragus", trad. William Lagos, L&PM, 2006, pg 43)

sábado, 13 de agosto de 2011

Tempo que amolece

"As mãos formam manchas brancas sobre o pano, parecem poeirentas e inchadas. Continuam a cair outras cartas, as mãos vão e vêm. Que ocupação estranha: não parece um jogo, nem um rito, nem um hábito. Acho que fazem isso simplesmente para encher o tempo. Mas o tempo é muito longo, não se deixa encher. Tudo o que mergulha nele amolece e se estira. Por exemplo, esse gesto da mão vermelha que recolhe as cartas vacilando: é inteiramente frouxo. Seria preciso descosê-lo e cortar por dentro para reduzi-lo."

Jean-Paul Sartre
(Em "A Náusea", trad. Rita Braga, Nova Fronteira, RJ, pg 41)

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O narrador solitário

"Quando se vive sozinho, já nem mesmo se sabe o que é narrar: a verossimilhança desaparece junto com os amigos."

Jean-Paul Sartre
(Em "A Náusea", trad. Rita Braga, Nova Fronteira, RJ, pg 22)

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Lições de Urtiga

"Um dia contemplava uma porção de gente ocupada em arrancar urtiga de um campo, olhou para o montão de plantas, já arrancadas e secas e disse: -Então inutilizadas. Não obstante seriam aproveitáveis se soubessem servir-se delas. Quando a urtiga é nova, a sua folha é um legume excelente; depois de velha, tem filamentos e fibras como o cânhamo, o linho. O tecido de urtiga vale bem o de linho. Migada a urtiga, é excelente para a criação; moída é boa para o gado vacum. A baga da urtiga misturada com a forragem torna lustroso o pêlo dos animais; a raiz misturada com sal, produz exclente cor amarelada. No fim de tudo é muito bom feno, e que pode ceifar-se duas vezes. E o que exige a urtiga? Pouca terra, nenhum cuidado, e menos cultura ainda. Com algum trabalho tornar-se-ia útil a urtiga; despezam-na, torna-se nociva, e então destroem-na. Quantos homens se assemelham à urtiga! E depois de um certo silêncio acrescentou: Meus amigos, não se esqueçam nunca de que não há más plantas, nem maus homens. O que há são maus cultivadores."

Victor Hugo
(Em "Os Miseráveis", trad. Carlos Heitor Cony, Ediouro Clássicos de Bolso, pg 95)

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Tarde demais

"Onde li que neste momento final, quando a vida, superfície sobre superfície, incrustou-se de experiência, sabes tudo, o segredo, o poder e a glória, por que nasceste, por que estás morrendo, e como tudo poderia ter sido diverso?  És sábio. Mas a maior sabedoria, naquele momento, é saber que tudo soubeste demasiadamente tarde. Compreende-se tudo quando de nada mais serve compreender."

Umberto Eco
(Traduzido livremente de "Il Pendolo di Foucault", Bompiani 2006, pg. 678)

sábado, 6 de agosto de 2011

Entre as percentagens

"Somos finos como papel. Existimos por acaso entre as percentagens, temporariamente. E esta é a melhor e a pior parte, o fator temporal. E não há nada que se possa fazer sobre isso. Você pode sentar no topo de uma montanha e meditar por décadas e nada vai mudar. Você pode mudar a si mesmo para ser aceitável, mas talvez isso também esteja errado. Talvez simplesmente pensemos demais."

Charles Bukowski
(Em "O Capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio", trad. Bettina Becker, L&PM 1999, pg 82)

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Falácia da terceira idade

" - É o corpo que está velho. Por vezes temo quebrar um dedo assim como se quebra um graveto. Mas o espírito não envelheceu nem está tão mais sábio. 
- Você é sábio.
- Não, esta é uma grande falácia; a sabedoria dos velhos... Eles não envelhecem mais sábios. Eles só envelhecem mais cuidadosos."

Ernest Hemingway
(Traduzido livremente de "A Farewell to Arms", Scribner 2003, pg 261)

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Sexo e Representação

"Ele se pergunta se as palavras não são um elemento essencial do sexo, se falar não é um modo mais sútil de tocar e se as imagens dançando nas nossas mentes não são tão importantes quanto os corpos que seguramos em nossos braços."


Paul Auster
(Traduzido livremente de "Invisible", Faber and Faber, 2009, pg 181)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Simplicidade

"... O coronel Aureliano Buendía arranhou durante muitas horas, tentando rompê-la, a dura casca da sua solidão. Os seus únicos momentos felizes, desde a tarde remota em que seu pai o levara para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina de ourivesaria, onde passava o tempo armando peixinhos de ouro. Tivera que promover 32 guerras, e tivera que violar todos os seus pactos com a morte e fuçar como um porco na estrumeira da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade".

Gabriel Garcia Márquez
(Em "Cem anos de Solidão", Record ed. 51, pg 166)

terça-feira, 26 de julho de 2011

I Benedetti Affari

"Son que' benedetti affari, che imbroglian gli affetti"
("São aqueles benditos negócios, que atrapalham os sentimentos")

Alessandro Manzoni
(Em "I Promessi Sposi", Garzanti 2007, pg 537)

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Drogas e Abutres

"As drogas não se "apanham", como se apanha uma gripe; não se "pegam", como se pega um doença venérea; e não são o resultado de uma mutação maligna das células, como uma doença oncológica. As drogas não "acontecem"; escolhem-se. 

 O drogado pode ficar doente; mas ele não é um doente - é um agente moral.

Mais: como explica Dalrymple, que durante décadas foi psiquiatra do sistema prisional britânico, o uso de drogas implica um voluntarismo e uma disciplina que são a própria definição de autonomia pessoal. E, muitas vezes, o uso de drogas é o pretexto para que vidas sem rumo possam encontrar um. Por mais autodestrutivo que ele seja.

Moralizar o cadáver de Amy Winehouse? Não contem comigo, abutres."

João Pereira Coutinho
(Em sua coluna no Estadão desta segunda-feira)

domingo, 24 de julho de 2011

Filosofia e Literatura

"A filosofia parece ocupar-se da verdade, mas talvez só conte fantasias; e a literatura parece ocupar-se somente de fantasias, mas talvez diga toda a verdade."

Antonio Tabucchi
(Traduzido livremente de "Sostiene Pereira", Feltrinelli 2005, pg 30)

sábado, 23 de julho de 2011

Pois é tempo de complicar

"Nunca se deve fazer um trabalho com facilidade, todo trabalho deve ser difícil, custoso, complicado e sacrificado, embora nunca tampouco se deva fazer queixa, mas somente mostrar muita dedicação diante de tanta dificuldade, quer se tenha essa dedicação, quer não se tenha. Todo 'deixe comigo' deve ser dito com firmeza e determinação, mas tem de vir acompanhado de um suspiro silencioso. Simplificar tem que ser somente para uso próprio e complicar é para todos os outros usos."

João Ubaldo Ribeiro
(Em "O Albatroz Azul", Nova Fronteira 2009, pg 194)

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Just...

"Em processos complicados, uma das respostas mais sábias é a do comercial de televisão: Keep walking."

Fernando Gabeira
(Em sua coluna no Estadão)

quinta-feira, 21 de julho de 2011

A Solução para a Crise da Grécia

"Os gregos nos deram a lógica. Temos uma dívida com eles por isso. Foi Aristóteles quem propôs o grande 'logo'. 'Você não me ama mais, logo...'. Ou, 'encontrei você na cama com outro homem, logo...'. Usamos essa palavra milhões de vezes para tomar nossas decisões mais importantes. É hora de começarmos a pagar por ela. Pois, se formos obrigados a pagar dez euros à Grécia cada vez que usarmos a palavra 'logo', a crise acabará em um dia, e os gregos não precisarão vender o Partenon aos alemães. Temos no Google a tecnologia para rastrear todos esses 'logos'. Podemos até cobrar das pessoas pelo iPhone. A cada vez que Angela Merkel disser aos gregos 'nós emprestamos todo esse dinheiro a vocês, logo vocês precisam nos pagar de volta com juros', ela será obrigada, logo, a pagar primeiro aos gregos pelos royalties." 

Jean-Luc Godard
(Em entrevista, irônica, a Fiachra Gibbons do "Guardian" traduzido por Clara Allain da Folha de São Paulo)