sábado, 29 de outubro de 2011

O sonho acordado de Descartes

"Agora, vamos dar uma olhada no que o argumento de fato diz. Ele começa, você irá lembrar, com uma afirmação supostamente de um fato  - a saber, que 'não há nenhuma diferença de qualidade entre as percepções que são verídicas na apresentação de coisas materiais e aquelas que são ilusórias', que 'não há nenhuma diferença qualitativa entre sense-data normais e anormais'. Bom, deixando de lado, tanto quanto possível, as numerosas obscuridades nesta maneira de falar, perguntemos se o que está sendo afirmado aqui é de fato verdade. É o caso que experiências verídicas e ilusórias não são qualitativamente diferentes? Bem, ao menos parece perfeitamente extraordinário dizer algo assim de tal forma tão superficial. Considere alguns exemplos. Eu posso ter a experiência (dita presumivelmente ilusória) de sonhar que estou sendo apresentado ao Papa. Poderíamos levar a sério que ter esse sonho é 'qualitativamente' indistinguível de ser verdadeiramente apresentado ao Papa? É claro que não. Afinal de contas, temos a expressão 'dream-like experience' (experiência do tipo sonho); algumas experiências normais são ditas ter esta qualidade 'tipo sonho', e alguns artistas e escritores ocasionalmente tentam retratar isto em suas obras. Mas é claro, se o fato aqui fosse de fato um fato, a expressão seria completamente sem sentido, porque seria aplicada a tudo. Se sonhos não fossem 'qualitativamente' diferentes de experiências reais, então toda experiência durante vigília seria como um sonho; a qualidade 'tipo-sonho' seria impossível de ser evitada. É verdade que sonhos são narrados nos mesmos termos de experiências reais: estes termos, no final das contas, são os melhores termos que temos; mas seria um grande erro concluir disso que o que é narrado nos dois casos é exatamente igual. Quando nós somos atingidos na cabeça, dizemos por vezes ter 'visto estrelas'; mas mesmo assim, ver estrelas quando você é atingido na cabeça não é qualitativamente indistinguível de ver estrelas quando você olha para o céu."

John Austin
(Traduzido livremente de "Sense and Sensibilia", Oxford 1962, pg 49)