segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Existência vazia

"Sabina sentia o vazio em torno de si. E se este vazio fosse precisamente o objetivo de todas as suas traições? Até aqui, é claro, não tinha consciência disso, o que é compreensível: o objetivo que perseguimos é sempre velado. Uma jovem que quer se casar quer uma coisa que lhe é de todo desconhecida. O jovem que corre atrás da glória não tem nenhuma idéia do que seja a glória. O que dá sentido à nossa conduta sempre é totalmente desconhecido para nós."

Milan Kundera
("A Insustentável Leveza do Ser", Companhia de Bolso, 2008, pg 122)

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O Autor e seus Possíveis

"Mas não se costuma dizer que o autor só pode falar de si mesmo? Olhar o pátio, imponente, e não conseguir tomar uma decisão; ouvir o ruído obstinado do próprio ventre num momento de exaltação amorosa; trair e não saber parar na estrada tão bela das traições; erguer o punho no desfile da Grande Marcha; demonstrar humor diante dos microfones escondidos pela polícia: conheci e eu mesmo vivi todas essas situações; de nenhuma delas, no entanto, saiu o personagem que eu mesmo sou no meu curriculum vitae. Os personagens de meu romance são minhas próprias possibilidades, que não foram realizadas. É o que me faz amá-los, todos, e ao mesmo tempo a todos temer. Uns e outros atravessaram fronteiras que me limitei apenas a contornar. O que me atrai é essa fronteira que eles atravessaram. E é somente do outro lado que começa o mistério que o romance interroga. O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a sua vida na armadilha que se tornou o mundo."

Milan Kundera
("A Insustentável Leveza do Ser", Companhia de Bolso, 2008, pg 217)


domingo, 12 de setembro de 2010

Parte e Todo

"A unicidade do 'eu' se esconde exatamente no que o ser humano tem de inimaginável. Só podemos imaginar o que é idêntico em todos os seres, o que lhes é comum. O 'eu' individual é o que se distingue do geral, portanto o que não se deixa adivinhar nem calcular antecipadamente, o que precisa ser desvendado, descoberto, conquistado no outro."

Milan Kundera
("A Insustentável Leveza do Ser", Companhia de Bolso, 2008, pg 88)

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Robespierre laranja

"Se a Revolução Francesa devesse se repetir eternamente, a historiografia francesa se mostraria menos orgulhosa de Robespierre. Mas como ela trata de algo que não voltará, os anos sangrentos não passam de palavras, teorias, discussões, são mais leves que uma pluma, já não provocam medo. Existe uma diferença infinita entre um Robespierre que aparece uma só vez na história e um Robespierre que voltaria eternamente para cortar a cabeça dos franceses. Digamos portanto que a idéia do eterno retorno designa uma perspectiva em que as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas parecem para nós sem a circunstância atenuante de sua fugacidade. Com efeito, essa circunstância atenuante nos impede de pronunciar qualquer veredicto. Como condenar o que é efêmero? As nuvens alaranjadas do crepúsculo douram todas as coisas com o encanto da nostalgia; até mesmo a guilhotina."

Milan Kundera
("A Insustentável Leveza do Ser", Companhia de Bolso, 2008, pg 10)