terça-feira, 29 de maio de 2012

A (nossa) Fuga

"Cada vez que Pedro raciocinava dessa maneira, essa hipocrisia geral, aceita por todos, o enchia de estupefação, malgrado o hábito, como se a descobrisse pela primeira vez. 'Sinto essa hipocrisia, esse dédalo moral em que nos perdemos - dizia a si mesmo - mas como explicar aos outros tudo quanto sinto? Tentei e sempre verifiquei que no fundo de suas almas eram de minha opinião, mas recusavam-se ver essa mentira. Sem dúvida será preciso ser assim? Mas eu, onde encontrarei eu um refúgio?' 

Tinha o triste privilégio, comum a muita gente e particularmente aos russos, de crer na possibilidade do verdadeiro e do bem, mas ao mesmo tempo de ver demasiado distintamente o mal e a mentira espalhados em torno de si e isso o impedia de tomar seriamente parte da vida. Todo gênero de atividade estava a seus olhos maculado de mal e de mentira. Empreendesse o que empreendesse, o mal e a mentira logo o faziam desgostar-se; todas as estradas se achavam assim fechadas diante dele. E, no entanto, era bem preciso viver, era preciso ainda assim ocupar-se. Essas questões insolúveis eram tão opressivas que se entregava a seus antigos arrebatamentos, unicamente para esquecê-las. Frequentava toda a qualidade de pessoas, bebia bastante, colecionava quadros e, sobretudo, mergulhava-se na leitura. 

Lia tudo quanto lhe caía nas mãos; de volta à sua casa, ainda bem não havia seu criado acabado de tirar-lhe a roupa, já estava ele de livro na mão, a ler. Da leitura passava ao sono, do sono às tagarelices dos salões e do clube, das tagarelices às orgias, e das orgias de novo às tagarelices, à leitura e ao vinho. Beber tornou-se cada vez mais para ele uma necessidade física e moral. Debalde lhe advertiam os médicos que, com a sua corpulência, o vinho lhe era perigoso; continuava a beber muito. Só se sentia realmente à vontade depois de ter, quase inconscientemente, derramado na sua vasta boca alguns copos de vinho; experimentava então por todo o corpo um agradável calor, um sentimento de ternura para com seu próximo, uma disposição a aflorar todas as questões sem aprofundar nenhuma. Depois de haver ingerido uma ou duas garrafas, percebia vagamente que esse nó tão complicado da existência, que comumente o enchia de terror, não era tão terrível quanto o imaginava. Porque, em meio das tagarelices, como no curso de suas leituras após as refeições, esse nó fatal enchia-lhe sempre a cabeça latejante. E só a influência do vinho o levava a dizer a si mesmo: 'Não é nada. Hei de desmanchá-lo. Eu mesmo tenho uma explicação prontinha; mas o momento está mal-escolhido; pensarei nisso mais tarde.' Mas esse 'mais tarde' não vinha nunca. 

No dia seguinte de manhã, quando os fumos do vinho se haviam dissipado, as mesmas questões se lhe apresentavam da mesma maneira insolúveis, da mesma maneira temíveis; apressava-se então em pegar dum livro e mostrava-se encantado quando aparecia alguma visita. 

Por vezes lembrava-se de lhe terem contado que os soldados nos postos avançados, sob o fogo do inimigo, tratam de arranjar uma ocupação, a fim de esquecer mais facilmente o perigo. E todos os homens lhe pareciam então agir como esses soldados: escapavam à vida uns pela ambição, outros pelo jogo, outros pelas mulheres, outros pelas diversões, outros pelos cavalos, outros pela caça, outros pelo vinho, estes elaborando as leis e aqueles ocupando-se com negócios públicos. 'Em definitivo - pensava Pedro, - nada é negligenciável, nada tampouco é importante, tudo é indiferente. Pudesse eu ao menos subtrair-me à mentira da vida, furtar-me a essa odiosa visão!' "

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz", tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 585)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Felicidade em armas

"Pretende a tradição bíblica que a felicidade do primeiro homem antes de sua queda consistia na ausência de trabalhos; isto é, na ociosidade. O homem decaído conservou o gosto da ociosidade, mas a maldição divina pesa sempre sobre ele, não somente porque deve ganhar seu pão com o suor de seu rosto, mas também porque sua natureza moral lhe interdiz de comprazer-se na inação. Uma voz secreta nos diz que seríamos culpados abandonando-nos à preguiça. Se o homem pudesse reencontrar um estado em que, conservando-se ocioso, sentisse que é útil e que cumpre seu dever, encontraria nesse estado uma das condições da felicidade primitiva. Ora, toda uma classe social, a dos militares, goza precisamente desse estado de ociosidade imposta e não censurável. Essa inação forçada, legal, sempre foi e sempre será o principal atrativo do serviço das armas."

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz", tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 505)

domingo, 27 de maio de 2012

As melhores águas

"Sempre se pesca melhor em águas turbulentas"


Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 4332 - Cap. 7: "The Seducer Diary")

sábado, 26 de maio de 2012

Chatice

"O quão destrutivo é o tédio todos podem reconhecer ao observarem as crianças. Enquanto as crianças estão se divertindo, elas são sempre bem comportadas. Isto pode ser dito no sentido estrito, já que se elas por vezes saem do controle deve-se de fato a já começarem a sentir o tédio; ele já está presente, apenas em um modo distinto. Então, ao escolhermos uma babá devemos prestar atenção não somente em sua confiabilidade e decência; mas também devemos considerar, esteticamente, a sua habilidade em divertir as crianças. E não se hesitaria aqui em demitir uma babá que carecesse de qualificação neste último quesito, mesmo se ela possuísse todas as outras virtudes desejáveis. De fato, o princípio é claramente reconhecido; mas quão notáveis são os meios do mundo: tanto ganharam domínio, o tédio e o hábito, que justiça é feita à estética somente no emprego de babás. Se alguém tentasse separar-se da esposa porque ela é entendiante, ou destronar um rei porque ele tem uma fisionomia maçante, ou expulsar um padre porque seu discurso é enfadonho, ou demitir um ministro, ou um jornalista, porque eles são terrivelmente chatos - qualquer destas tentativas iria a mal grado. Não nos espantemos então com o regresso do mundo, com o mal que ganha cada vez mais terreno, já que o tédio só tem aumentado e ele é a raiz de todo mal.


E podemos traçar este mal desde o início do mundo. Os deuses estavam entediados então eles criaram o homem. Adão estava entediado porque vivia só, então Eva foi criada. Do momento em que o tédio entrou no mundo ele cresceu na exata proporção do crescimento da população. Adão estava entediado sozinho, depois Adão e Eva estavam entediados juntos, então Adão e Eva e Caim e Abel estavam entediados em família, e depois a população aumentou e as pessoas ficaram entediadas em massa. Para se divertirem eles conceberam a ideia de construir uma torre tão alta que atingisse o céu. Até mesmo a ideia desta torre é tão maçante quanto alta era a construção, e ela é uma prova terrível das alturas atingidas pelo tédio humano. Então as nações foram espalhadas pela terra, do mesmo modo que as pessoas agora viajam para o exterior, mas todos continuaram entediados. E pense nas consequências desse tédio! O homem esteve no alto e caiu às profundezas primeiro com Eva e depois com a torre de Babel. E mesmo assim o que é mesmo que  causou o declínio de Roma? Foi panis et circenses. E o que fazem as pessoas hoje em dia? Elas pensam em modos para se divertirem? Ao contrário, aceleram a ruína. Elas pensam, por exemplo, em chamar uma assembléia constitucional. Pode algo mais maçante ser imaginado, tanto para os senhores que tomam parte quanto para aqueles que têm de ler e ouvir sobre eles? Há uma proposta para melhorar a economia do Estado através do hábito de poupar. Pode algo mais entediante ser pensado? Ao invés de aumentar o débito nacional, propõe-se a pagá-lo! Ora, do pouco que sei de política, seria muito fácil para a Dinamarca conseguir um empréstimo de 15 milhões. Por que então não se pensa nisso? Que algum gênio tenha decidido não pagar suas dívidas, isto é algo que se ouve com certa frequência; por que então não deveria um estado ser capaz de fazer o mesmo se todos concordassem? Então peguemos um empréstimo de 15 milhões e usemo-no não para pagar as dívidas e sim para o prazer público! Vamos celebrar o reino de mil anos com alegria! Assim como há caixas em todo lugar para se colocar dinheiro dentro, então que haja caixas cheias de dinheiro para que todos possam pegar. Tudo seria livre, as pessoas iriam ao teatro de graça, teriam acesso livre a prostitutas, passeios grátis pelo parque, seriam enterradas sem ter que pagar nenhuma taxa, o sermão do padre seria livre de cobranças; pois quando se tem dinheiro sempre em mãos, tudo é em certo sentido grátis. Ninguém precisaria de propriedade própria. Uma exceção porém deveria ser feita no meu caso. Eu pessoalmente reservaria 100 dólares por dia permanentemente no Banco de Londres, em parte porque não posso viver com menos, em parte porque fui eu quem veio com a ideia, e finalmente, porque nunca se sabe se não posso ter uma nova ideia quando os 15 milhões acabarem."

"O jovem autor de 'Either'" (pseudônimo de Soren Kierkegaard)
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 3768)

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Realidade ameaçada a fogo

"Mais que em qualquer outro período histórico, nosso senso de realidade está gravemente ameaçado. É a Internet, o Photoshop, são os efeitos digitais no cinema, os videogames - ferramentas que surgiram com impacto imediato. É como nas batalhas militares. Durante séculos, as batalhas foram iguais: o cavaleiro medieval em combate, com uma espada. De repente, ele se deparou com armas de fogo, e da noite para o dia tudo mudou. Estamos passando agora por um momento de igual magnitude."

Werner Herzog
(Em entrevista à revista Piauí, edição 11)

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Salvação secreta

"Talvez nada enobreça mais um ser humano do que guardar um segredo. Tal ato é capaz de conceder a toda sua vida um significado, apesar de ser um significado que serve somente a ele próprio. É capaz de salvá-lo de toda sua vã preocupação pelo meio onde vive; e, suficiente em si mesmo, ele permanece abençoado em seu segredo - mesmo que este seja o mais sinistro de todos."

Sore Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 2657)

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Maricas

"Meu pai tinha um casal de filhos no início da Grande Depressão. Não havia emprego. Não havia previdência social. Mal se conseguia sobreviver. Naquele tempo as pessoas eram mais duronas. Vivemos numa geração meio mariquinha, todo mundo diz: 'Vamos lidar psicologicamente com isso?' Naquela época, você simplesmente sentava o pau e resolvia na porrada. Mesmo que o cara fosse mais velho e fortão, pelo menos você era respeitado por encarar a briga, e te deixavam em paz. Não sei se dá para dizer exatamente quando começou essa geração mariquinha. Talvez tenha sido quando as pessoas começaram a se perguntar sobre o sentido da vida."

Clint Eastwood
(Em entrevista à revista Piauí edição 68)

terça-feira, 22 de maio de 2012

A trágica perda da tragédia

"Assim como com a culpa trágica, devemos aqui mostrar o que é o verdadeiro sofrimento estético e o que é a verdadeira dor estética. Ora, obviamente a dor mais amarga é a do remorso, mas remorso tem uma realidade ética, não estética. É a dor mais amarga porque possui toda transparência da culpa, mas justamente por tal transparência não tem nenhum interesse estético. O remorso tem uma santidade que obscurece o estético. (...)  Esta é parte da evidente confusão que se faz em nossa época: procuramos por uma coisa onde não deveríamos procurá-la; e, pior, encontramo-na onde não deveríamos encontrá-la. Queremos ser educados no teatro, influenciados esteticamente na igreja, convertidos por novelas, e queremos desfrutar livros escritos para devoção; queremos a filosofia no púlpito e o pregador na cadeira de professor. Esta dor não é portanto estética, mas é ela que a época moderna busca como de maior interesse trágico. O mesmo ocorre com a culpa trágica. Nossa época perdeu todas as categorias substanciais relacionadas à família, ao estado e à raça. Ela deixou o indivíduo completamente a si mesmo, de tal modo que, em um sentido estrito, o indivíduo tornou-se seu próprio criador. Sua culpa é portanto seu pecado, sua dor é seu remorso. Mas assim o trágico é perdido. E o que é, em sentido estrito, o sofrimento da tragédia realmente perdeu todo interesse trágico, pois o poder de onde o sofrimento vem perdeu seu significado e o espectador grita: 'Deus ajuda aquele que ajuda a si mesmo!'. Em outras palavras, o espectador perdeu sua compaixão. E a compaixão é, tanto no sentido objetivo quanto subjetivo, a expressão autêntica da tragédia."

Soren Kierkegaard,
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 2522)

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O sensível e os meios da arte

"Como meio, a linguagem é absolutamente espiritual; é portanto o meio apropriado para a ideia. Elaborar este ponto em maiores detalhes levar-me-ia além tanto da minha competência quanto do escopo deste pequeno ensaio. Mas reservo-me uma observação que me levará de volta à música. Na linguagem o sensível é, enquanto meio, reduzido ao nível de um mero instrumento, é constantemente negado. Tal não é o caso com outras artes. Nem na escultura, nem na pintura o sensível é mero instrumento, mas é, em ambas, parte integrante; nem é constantemente negado, pois deve ser continuamente parte do que é visto. Seria um modo peculiarmente perverso de olhar para uma estátua ou pintura aquele que consiste em tentar ignorar o aspecto sensível e assim completamente rescindir sua beleza. Na escultura, arquitetura, pintura, a ideia está emaranhada ao meio; mas este fato de a ideia não reduzir o meio a mero instrumento, nem constantemente negá-lo, é ao mesmo tempo a expressão de que o meio em si não é capaz de falar. Assim também é com a natureza. Por isso dizemos corretamente que a natureza é muda, e a arquitetura e escultura e pintura; dizemos corretamente apesar de todos aqueles ouvidos sensitivos e sintonizados, capazes de ouvi-los falar. É portanto uma idiotice falar da língua da natureza, assim como se é inepto ao dizer que o que é mudo é vocal, já que o mudo não é nem mesmo uma língua no sentido em que um símbolo o é. Mas com a linguagem é diferente. O sensível é reduzido a mero instrumento e portanto é rescindido. Se quando um homem falasse ele ouvisse os movimentos de sua língua, ele falaria mal; se quando ele escutasse, ouvisse as vibrações de ar e não as palavras, escutaria mal; se quando ele lesse um livro, visse constantemente as letras individuais, ele leria mal. A linguagem torna-se o meio perfeito justamente no momento em que tudo o que é sensível é negado nela mesma. Assim também é com a música; o que de fato deve ser ouvido constantemente na música emancipa-se do sensível."


Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 1293)

domingo, 20 de maio de 2012

Sem pecados

"Que os outros se queixem da maldade de nossa época; minha queixa é que ela é trivial. Pois não há paixão. Os pensamentos das pessoas são finos e leves como rendas, e elas mesmas são tão insignificantes como rendeiras. Os pensamentos em seus corações são muito triviais para serem pecaminosos. Para um verme talvez  pudessem assim ser considerados, mas não para seres humanos moldados à imagem de Deus. Os seus desejos são estúpidos, suas paixões preguiçosas. Eles cumprem seus deveres, estes mercenários, mas como os Judeus, eles pensam que por melhor que o bom Deus mantiver Sua palavra, eles ainda podem se safar enganando-O um pouquinho. Vergonha! É por isto que minha alma sempre se volta ao Velho Testamento e a Shakespeare. Lá ao menos fala-se de seres humanos. Lá as pessoas odeiam, amam, matam seus inimigos e amaldiçoam seus descendentes por todas as próximas gerações. Lá as pessoas pecam!"


Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 807)
 


sábado, 19 de maio de 2012

O carvalho russo

"À beira do caminho, erguia-se um carvalho. Sem dúvida dez vezes mais velho que as bétulas, era dez vezes mais grosso e se elevava dez vezes mais alto. Era um carvalho enorme, de duas braças de diâmetro, com galhos quebrados desde muitos anos e uma casca esburacada, costurada de bossas e de escaras. Seus largos braços nodosos e desgraciosos, estendidos sem a menor simetria, davam-lhe entre as jovens bétulas sorridentes, o aspecto dum velho monstro encolerizado, desdenhoso. Só ele se recusava abandonar-se ao encantamento da rebrotação e recusava ver a primavera e o sol.

'Primavera, amor, felicidade! - parecia dizer aquele carvalho. - Não estais cansados dessa eterna burla? Não vedes que tudo isso não passa de tolice e de burla? Não há nem primavera, nem sol, nem felicidade. Olhai esses abetos, mortos, abafados, sempre semelhantes; e eu também, muito tentei estender meus braços tortos e retalhados, saíram de meu dorso, de meus flancos, de toda parte donde podiam, e eu fico aqui, agora, e não creio nem em vossas esperanças, nem em vossas mentiras.'

Várias vezes, enquanto atravessava a floresta, o Príncipe André se voltou para olhar aquele carvalho, como se dele esperasse alguma coisa. Sob sua sombra, havia flores e relva, mas ele, o velho monstro, erguia obstinadamente sua massa sombria e intratável.

'Sim, ele tem razão, mil vezes razão, aquele carvalho - pensava André. - Que outros, os jovens, se deixem ludibriar por essa burla, mas nós, nós sabemos a que nos ater: nossa vida está acabada, bem acabada!'

A vista daquela árvore provocou nele uma eclosão de novos pensamentos desesperados, mas cheios dum encanto melancólico. No curso dessa viagem, submeteu sua maneira de viver a novo exame aprofundado e chegou, uma vez mais, a esta conclusão desencantada mas acalmante, que nada devia empreender, mas acabar simplesmente sua vida sem fazer o mal, sem se amofinar, sem nada desejar."

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz", tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 438)

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Qual felicidade?

"Tudo está em permanente mudança na Terra. Nada retem imutável a sua forma, e nossas afecções, estando vinculadas a coisas fora de nós, necessariamente mudam e se vão... Então nossas alegrias mundanas são quase sem exceção as criaturas do momento... Pois como podemos dar o nome de felicidade a um estado fugaz que deixa nossos corações vazios e cheios de ansiedade, seja arrependidos de algo que passou ou desejosos de algo que ainda não chegou?"

Jean-Jacques Rousseau
(Traduzido livremente de "Reveries of a Solitary Walker", Peter France (trad.), Harmondsworth 1979, pg 88)

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Filosofia e História

"A filosofia exige sempre alguma coisa a mais, exige o eterno, o verdadeiro, frente ao qual mesmo a existência mais sólida é, enquanto tal, o instante afortunado. Ela se relaciona com a história como o confessor com o penitente, e deve, como um confessor, ter um ouvido afinado, pronto para seguir as pistas dos segredos daquele que confessa; mas ela também está em condições de, após ter escutado toda a série de confissões, fazê-las aparecer diante do que confessa como uma coisa diferente. Pois assim como o indivíduo que se confessa pode muito bem ter condições não só de recitar analiticamente os feitos de sua vida mas também de relatá-los de maneira amena e agradável, e no entanto não consegue ele mesmo ver sua vida como um todo, assim também a história pode muito bem proclamar pateticamente, em alta voz, a riqueza da vida do gênero humano, mas tem de deixar à mais velha (à filosofia) a tarefa de explicá-la, e pode então desfrutar da alegre surpresa: no primeiro instante quase não quer reconhecer a versão elaborada pela filosofia, mas vai se familiarizando pouco a pouco com esta concepção filosófica, até chegar finalmente a encará-la como a verdade autêntica, e o outro lado como mera aparência."

Soren Kirkegaard
(Em "O conceito de Ironia", Álvaro Luiz Montenegro Valls (trad.), Editora Vozes, Petrópolis 1991, pg 24)

terça-feira, 15 de maio de 2012

Carlos Fuentes, você sobreviverá


"Você sobreviverá: tornará a sentir o toque dos lençóis e saberá que sobreviveu, apesar do tempo e do movimento que a cada instante encurtam-lhe a sorte: entre a paralisia e o desenfrear está a linha da vida: a aventura; imaginará a maior das seguranças, não mexer nunca: imaginar-se-á imóvel, resguardado do perigo, do acaso, da incerteza; sua quietude não deterá o tempo que corre em você, apesar de você inventá-lo e medi-lo, o tempo que nega a sua imobilidade e submete você a seu próprio perigo de extinção: aventureiro, medirá a sua velocidade com a do tempo:

o tempo que inventará para sobreviver, para fingir a ilusão de uma permanência maior na terra: o tempo que seu cérebro criará à força de perceber essa alternância de luz e de trevas no quadrante do sonho; à força de reter essas imagens da placidez ameaçada pelos cúmulos concentrados das nuvens, o anúncio do trovão, a posteridade do raio, a descarga torrencial da chuva, a aparição certa do arco-íris; à força de escutar as chamadas cíclicas dos animais na montanha; à força de gritar os sinais do tempo: ganido do tempo da guerra, ganido do tempo do luto, ganido do tempo da festa; à força, por fim, de dizer o tempo, de falar o tempo, de pensar o tempo inexistente de um universo que não o conhece porque nunca começou e jamais terminará: não teve princípio, não terá fim e não sabe que você inventará uma medida do infinito, uma reserva de razão:

você inventará e medirá um tempo que não existe

você saberá, discernirá, julgará, calculará, imaginará, preverá, acabará pensando que não terá outra realidade senão a criada por seu cérebro e aprenderá a dominar sua violência para dominar seus inimigos: aprenderá a esfregar duas madeiras até incendiá-las porque precisará jogar uma teia à entrada de sua cova para espantar os animais que não o distinguirão, que não diferenciarão a sua carne da carne de outros animais e terá que construir mil templos, ditar mil leis, escrever mil livros, adotar mil deuses, pintar mil quadros, fabricar mil máquinas, dominar mil povos, romper mil átomos para tornar a jogar sua teia acesa na entrada da caverna, 

e fará tudo isso porque pensa, porque terá desenvolvido uma congestão nervosa no cérebro, uma rede espessa capaz de obter informação e transmiti-la de frente para trás: sobreviverá, não por ser o mais forte, mas por esse acaso escuro de um universo cada vez mais frio, no qual só sobreviverão os organismos que saibam conservar a temperatura do corpo ante as mudanças do meio, os que concentrarem essa massa nervosa frontal e possam predizer o perigo, buscar o alimento, organizar seu movimento e dirigir seu nado no oceano redondo, proliferante, atestado das origens; ficarão no fundo do mar as espécies mortas e perdidas, suas irmãs, milhões de irmãs que não emergiram na água com suas cinco estrelas contráteis, seus cinco dedos cravados na outra margem, na terra firme, nas ilhas da aurora; emergirá com a ameba, o réptil e o pássaro atravessados: as aves que se atirarão dos novos cumes para estatelar-se nos novos abismos, aprendendo com o fracasso, enquanto os répteis voam e a terra esfria; sobreviverá com as aves protegidas pelas penas, vestidas pela velocidade de seu calor, enquanto os répteis frios dormem, hibernam, e por fim morrem e você fincará as garras na terra firme, nas ilhas da aurora, e suará como um cavalo, e trepará nas árvores novas com sua temperatura constante e descerá com suas células cerebrais diferenciadas, suas funções vitais automatizadas, suas constantes de hidrogênio, açúcar, cálcio, água, oxigênio: livre para pensar além dos sentidos imediatos e das necessidades vitais 

descerá com seus dez milhões de células cerebrais, com sua pilha elétrica na cabeça, plástico, mutável, para explorar, satisfazer sua curiosidade, propor-se metas, realizá-las com o mínimo esforço, evitar as dificuldades, prever, aprender, esquecer, lembrar, unir idéias, reconhecer formas, somar pontos à margem deixada livre pela necessidade, subtrair sua vontade às atrações e rejeições do meio físico, buscar condições favoráveis, medir a realidade com o critério do mínimo, desejar secretamente o máximo, não expor-se, apesar de tudo, à monotonia da frustração; 

acostumar-se, moldar-se às exigências da vida em comum: 

desejar: desejar que seu desejo e o objeto desejado sejam a mesma coisa; sonhar com a realização imediata, na identificação sem separações do desejo e do desejado: 

reconhecer-se a si mesmo: 

reconhecer os outros e desejar que eles o reconheçam: e saber que se opõe a cada indivíduo, porque cada indivíduo é mais um obstáculo para alcançar seu desejo: 

escolherá, para sobreviver escolherá, escolherá entre espelhos infinitos um só, somente um que refletirá irrevogavelmente, que encherá de uma sombra negra os outros espelhos, você os matará antes de dar-se, mais uma vez, esses caminhos infinitos para a escolha: 

decidirá, escolherá um desses caminhos, sacrificará os outros: sacrificar-se-á ao escolher, deixará de ser todos os outros homens que poderia ter sido, quererá que outros homens - outro - cumpra por você a vida que mutilou ao escolher: ao escolher sim, ao escolher não, ao permitir que não seu desejo, idêntico à sua liberdade, mas seu interesse, seu medo, seu orgulho, lhe indicassem um labirinto: 

temerá o amor, nesse dia: 

mas poderá recuperá-lo: descansará com os olhos fechados, mas não deixará de ver, não deixará de desejar, porque assim fará sua a coisa desejada: 

a memória é o desejo satisfeito
hoje que sua vida e seu destino são a mesma coisa"



Carlos Fuentes  (11/11/1928 - 15/05/2012)
(Em "A morte de Artemio Cruz", Inez Cabral (trad.), Record 1964, pg 156-159)

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O que se requer é uma coragem equilibrada

"Pois para que o pensamento, a subjetividade, adquira sua plenitude e verdade, é preciso que se deixe nutrir, precisa mergulhar na profundidade da vida substancial, abrigar-se ali, em parte com angústia, em parte com simpatia, em parte recuando, em parte se entregando, é preciso que se deixe tragar pelas ondas do mar substancial, assim como no instante do entusiasmo o sujeito quase se perde diante de si, mergulha e afunda naquilo que o entusiasma, e contudo sente um suave arrepio, porque se trata da sua vida. Há que ter coragem, pois todo aquele que quiser salvar a sua alma perdê-la-á. Mas não é a coragem do desespero; pois como Tauler diz, de maneira tão bela, a propósito de uma situação muito mais concreta: 'Pois este perder, este desaparecer, é justamente o verdadeiro encontrar'."

Soren Kierkegaard
(Em "O conceito de Ironia", Álvaro Luiz Montenegro Valls (trad.), Editora Vozes, Petrópolis 1991, pg 237)

domingo, 13 de maio de 2012

Tédio e Vaidade

"O ser humano é tão infeliz que ele ficaria entediado mesmo se não tivesse nenhum motivo para  tal, simplesmente pela própria natureza do seu temperamento; e ele é tão vaidoso que, apesar de ter mil e uma razões para estar entediado, a coisa mais estúpida, como empurrar uma bola com um taco de bilhar, é suficiente para diverti-lo."

Blaise Pascal
(Traduzido livremente de "Pensèes", A. J.Krailsheimer (trad.), Harmondsworth, 1966, pg 135)

sábado, 12 de maio de 2012

O Valor do humano

"O ser humano é apenas uma gramínea. Mas uma gramínea pensante. O universo não tem nenhuma necessidade de pegar em armas e destruí-lo: um vapor, uma gota d'água é suficiente para matá-lo. E, apesar de tudo, se o universo fosse de fato destruí-lo, o ser humano anda assim seria mais nobre que seu assassino, pois ele é consciente da sua morte, bem como da vantagem que o universo tem sobre ele. Enquanto que o universo disso nada sabe."

Blaise Pascal
(Traduzido livremente de "Pensèes", A. J.Krailsheimer (tradutor do alemão), Harmondsworth, 1966; pg 136)

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Os cegos e o elefante

Todos conhecem a história dos cinco cegos e do elefante. Cada cego apalpa uma parte do elefante e identifica um animal diferente. E se os cinco cegos fossem Homero, Jorge Luis Borges, Ray Charles, Mr. Magoo e James Joyce, que não era totalmente cego mas enxergava pouco? Cada um apalpando uma parte do elefante. 

Homero: "Não sei que bicho é, mas cabem muitos gregos nesta barriga..." 

Joyce: "É um animalegórico bucefálico simbioselizando a androginergia da raçumanancial primEva, e estas bolas são decididamente irlandesas." 

Borges: "Este deve ser um dos 87 troncos que sustentam o Palácio dos Pavões em Samarkand, onde está a biblioteca circular do príncipe Rham'apu, onde há um único códice, que contém a única imagem conhecida do Palácio dos Pavões em Samarkand, onde está a biblioteca circular do príncipe Rham'apu, onde há um único códice que contém a única imagem conhecida do Palácio dos Pavões em Samarkand, onde está a biblioteca circular do príncipe Rham'apu, onde há um único códice que contém... estranho, a imagem de um elefante!" 

Mr. Magoo (que entrou na boca do elefante pensando que era o banheiro): "Help!" 

Ray Charles (acariciando a cauda peluda do elefante): "Georgia!" 


Luis Fernando Veríssimo
(em sua coluna desta quinta-feira no Estadão)

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Sonhos contemporâneos

"Noites que seguem dias de uma obrigatória rotina são preenchidas com sonhos de fuga da prisão. Noites que seguem dias de escolhas livres são preenchidas com sonhos de fuga da responsabilidade."

Zygmunt Bauman
(Traduzido livremente de "Does Ethics have a chance in a world of consumers?", Harvard Univ. Press 2008, pg 47)

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Corra!

Para não desperdiçar o tempo dos seus clientes, ou prejudicar as suas futuras, porém imprevisíveis, felicidades, o mercado consumidor oferece produtos feitos para consumo imediato, de preferência descartáveis, e de rápida circulação e substituição, de tal modo que o espaço dos consumidores não seja obstruído quando os produtos admirados de hoje caírem fora da moda. Os clientes, confusos pelo ciclone de produtos, variedades de ofertas e pelo ritmo vertiginoso de mudança, não podem mais confiar nas suas próprias habilidades de aprendizado e memória - e portanto precisam (e o fazem agradecidamente) aceitar as garantias do mercado de que o produto em oferta atual é "the thing", "the hot thing", "the must-have". É a fantasia centenária de Lewis Carroll tornada realidade: 'É preciso correr tudo o que você puder para conseguir ficar no mesmo lugar. Se você quiser sair para algum outro lugar, deverá correr no mínimo duas vezes mais rápido que isso!'.

Zygmunt Bauman
(Traduzido livremente de "Does Ethics have a chance in a world of consumers?", Harvard Univ. Press 2008, pg 218)


terça-feira, 8 de maio de 2012

A grandeza

"Por que - disse a si mesmo André, contemplando-a, - não é tudo tão claro, tão simples como crê Maria? Que consolação seria saber onde encontrar socorro nesta vida e o que vos aguarda além-túmulo! Que alegria, que apaziguamento experimentaria eu se pudesse dizer: 'Senhor, tende piedade de mim...' Mas a quem farei esta prece? Esta força indefinível, inconcebível, a que não me posso dirigir e que não saberia exprimir mesmo com palavras, será ela o grande todo, será ela o nada? Ou será por acaso esse Deus que vejo aqui encerrado dentro deste bentinho pela mão de Maria? Não há nada, nada decerto, senão o pouco de valor de tudo quanto posso compreender e a grandeza desse não sei quê que me é incompreensível, mas que nem por isso deixa de ser a única coisa importante."

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz", tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 315)

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O parafuso

"Cada qual por sua vez, o chefe da posta, sua mulher, o criado de quarto, um negociante de marroquinarias vieram oferecer-lhe seus serviços. Pedro, de pernas no ar, olhava um e outros através de seus óculos, sem mudar de posição e sem compreender nem o que eles desejavam, nem como tinham podido viver sem resolver os problemas que o atormentavam a ele. Estes não tinham, de resto, variado desde que, de volta do duelo no parque dos Falcoeiros, se lhe tinham posto durante sua primeira e cruel noite de insonia; o isolamento da viagem tinha-os somente tornado mais prementes. Por qualquer atalho que procurasse escapar-lhes, voltavam à carga, sem que pudesse jamais encontrar solução para eles. Era como se, na sua cabeça, tivesse afrouxado o parafuso principal que coordenava sua existência. Aquele parafuso, não penetrando mais adiante, não saía, mas girava, sempre no mesmo lugar, sem nada aferrar e era impossível detê-lo.

O chefe da posta veio pedir humildemente a Sua Excelência que tivesse a bondade de esperar duas pequenas horas, depois das quais procuraria, a seus riscos e perigos, cavalos de correio para Sua Excelência. Era aquela uma mentira evidente; o sujeito sonhava antes de tudo em arrancar do viajante o mais de dinheiro possível.

'Age ele mal ou bem?' - perguntou a si mesmo Pedro. - 'No que me diz respeito, tem razão; mas se vier outro viajante, não a terá. Quanto a ele, não saberia conduzir-se diferentemente, porque nada tem a comer. A crer nele, um oficial, ao qual recusara cavalos, tê-lo-ia espancado; se isso era verdade, é que o oficial tinha necessidade de ir depressa. É verdade que atirei em Dolokhov porque me acreditava ofendido por ele. E Luís XVI, não o executaram porque o consideravam um criminoso? Um ano mais tarde guilhotinaram aqueles que o tinham feito perecer; sem dúvida tinham igualmente razões para isso. Que é o mal, que é o bem? Que é preciso amar, que é preciso odiar? Por que é preciso viver e que é o eu? Que é a vida, que é a morte? E qual é a força que dirige tudo?'

Só encontrava para todas essas perguntas uma resposta, que não era uma, aliás. 'Morrerás um dia e tudo acabará. Morrerás e saberás de tudo, ou cessarás de fazer perguntas a ti mesmo'. Mas morrer era também uma coisa terrível.

Com sua voz estridente, a boa mulher propunha sua mercadoria e principalmente pantufos de couro de cabrito. 'Tenho centenas de rublos com os quais não sei que fazer, e essa mulher de peliça rasgada está aí a implorar-me timidamente - pensava Pedro. - Mas tem ela verdadeiramente necessidade de dinheiro? Poderá o dinheiro obter-lhe uma onça de felicidade, de tranquilidade moral? Não. Nada no mundo pode fazer que ela ou eu sejamos menos submetidos ao mal ou à morte, essa morte que terminará tudo, que virá hoje ou amanhã, pouco me importa. Será apenas um instante em relação com a eternidade'. De novo, tropeçava no parafuso que girava em vão e que prosseguia na sua rotação inútil."

Leon Tolstoi,
(Em "Guerra e Paz", tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 370)



sexta-feira, 4 de maio de 2012

Lições do Tempo

"Quando fores golpeado pelo tédio, encara. Deixa-te ser esmagado por ele; submerge, bate no fundo do poço. (....) O tédio é a tua janela para o tempo, para aquelas propriedades do tempo que tendem a ser ignoradas, malgrado o provável dano no próprio equilíbrio mental daí decorrente. É a tua janela para a infinidade do tempo, o que significa dizer, para a tua total insignificância. É isto que talvez justifique aquela ansiedade diante à solidão, os tórpidos entardeceres, o fascínio com que se olha uma partícula de poeira girando em um raio de sol, e em algum lugar um tique-taque do relógio, o dia está quente, e a vontade de qualquer coisa é nula. Uma vez que esta janela abrir-se, não tentas fechá-la; ao contrário, escancara-a. Pois o tédio fala a língua do tempo e ele ensina a mais valiosa das lições de tua vida - a lição da tua absoluta insignificância. É importante para ti, assim como para aqueles que estão do teu lado. "És finito", o tempo diz com sua voz de tédio, "e qualquer coisa que fizeres é, do meu ponto de vista, fútil". Como música para teus ouvidos, isto, é claro, pode não soar; porém o senso de futilidade, da limitada significância mesmo das tuas mais ardentes ações, é muito melhor do que a ilusão de importantes consequências e auto-engrandecimento. Pois o tédio é a invasão do tempo no teu conjunto de valores. Ele põe tua existência em perspectiva e o resultado líquido é precisão e humildade. A primeira, deve ser notado, causa a segunda. Quanto mais aprenderes sobre o teu próprio tamanho, mais humilde e mais simpático tornar-te-ás a teus semelhantes, àquela partícula de poeira girando em um raio de sol ou já imóvel sobre tua mesa. Ah, quanta vida foi-se naqueles corpúsculos! Não do teu ponto de vista, mas do deles. És para eles o que o tempo é para ti; e é por isso que eles parecem tão pequenos. E sabes o que a partícula de pó diz quando está sendo varrida da mesa?

'Lembre-se de mim', sussurra a poeira."


Joseph Brodsky
(Traduzido livremente de "In praise of Boredom", em "On Grief and Reason", pg 110)

quinta-feira, 3 de maio de 2012

"O melhor modo de sair é, sempre, atravessar."

Robert Frost
(Em "Servant to Servents", traduzido livremente de como citado por Joseph Brodsky em "In Praise of Boredom")

O vício universal

"Em geral, um homem despejando heroína em suas próprias veias o faz pelos mesmos motivos pelos quais você compra um vídeo: para evitar a redundância do tempo. A diferença é que ele gasta mais do que tem e usa uma estratégia de fuga que, muito mais rapidamente do que a sua, adquire a mesma redundância daquilo do qual ele tentava fugir."

Joseph Brodsky
(Traduzido livremente de "In Praise of Boredom" em "On Grief and Reason", pg 108) 

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Morte em tempos de ignorância

"A morte não está
na impossibilidade de comunicar,
mas em não mais poder ser compreendido."

Pier Paolo Pasolini
(Traduzido livremente de "Poesia in forma di rosa", 1974 )