terça-feira, 30 de abril de 2013

Nostalgia juvenil

"No fundo, no fundo, quem deseja que a vida seja uma adolescência permanente nunca deixou verdadeiramente a adolescência."

João Pereira Coutinho
(Em sua coluna de hoje na Folha)

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Lacaios da razão

"O niilismo é uma lacaiagem do pensamento. O niilista é um lacaio do pensamento".

Fiódor Dostoíéviski
(Em nota aos manuscritos de "Crime e Castigo", como citado em nota do editor em "Os Demônios", Paulo Bezerra (trad.), Editora 34, 4a edição, 2004, pg 145)

terça-feira, 23 de abril de 2013

Diálogo com o primeiro niilista

"- Já eu me limito a procurar a causa pela qual os homens não se atrevem a matar-se; eis tudo. E isso é indiferente.
- Como não se atrevem? Por acaso há poucos suicídios?
- Muito poucos.
- Não me diga, você acha isso?
Ele não respondeu, levantou-se e ficou a andar para a frente e para trás com ar meditativo.
- A seu ver, o que impede as pessoas de cometerem o suicídio? - perguntei.
Ele olhou distraído, como se tentasse se lembrar do que estávamos falando.
- Eu... ainda sei pouco... dois preconceitos o impedem, duas coisas; só duas; uma, muito pequena, a outra, muito grande. Mas até a pequena também é muito grande.
- Qual é a pequena?
- A dor.
- A dor? Será que isso é tão importante... neste caso?
- De primeiríssima importância. Há duas espécies de suicida: aqueles que se matam ou por uma grande tristeza ou de raiva, ou por loucura, ou seja lá por que for... esses se matam de repente. Esses pensam pouco na dor, se matam de repente. E aqueles movidos pela razão - estes pensam muito.
- E por acaso há esse tipo que se mata por razão?
- Muitos. Se não houvesse preconceito esse número seria maior; muito maior; seriam todos.
- Mas todos mesmo?
Ele fez silêncio.
- E porventura não há meios de morrer sem dor?
- Imagine - parou ele diante de mim -, imagine uma pedra do tamanho de uma casa grande; ela está suspensa e você debaixo dela; se lhe cair em cima, na cabeça, sentirá dor?
- Uma pedra do tamanho de uma casa? É claro que dá medo.
- Não estou falando de medo; sentirá dor?
- Uma pedra do tamanho de uma montanha, milhões de puds? É claro que não há dor nenhuma.
- Mas se você realmente ficar debaixo, e enquanto ela estiver suspensa, vai ter muito medo de sentir dor. O primeiro cientista, o primeiro doutor, todos, todos sentirão muito medo. Cada um saberá que não sentirá e cada um terá muito medo de sentir dor.
- Bem, e a segunda causa, a grande?
- É o outro mundo.
- Ou seja, o castigo?
- Isso é indiferente. O outro mundo; só o outro mundo.
- Por acaso não há ateus que não acreditam absolutamente no outro mundo?
Tornou a calar-se.
- Você não estará julgando por si?
- Ninguém pode julgar senão por si mesmo - pronunciou ele enrubescendo. - Haverá toda a liberdade quando for indiferente viver ou não viver. Eis o objetivo de tudo.
- Objetivo? Neste caso é possível que ninguém queira viver?
- Ninguém - pronunciou de modo categórico.
- O homem teme a morte porque ama a vida, eis o meu entendimento - observei -, e assim a natureza ordenou.
- Isso é vil e aí está todo o engano! - os olhos dele brilharam. - A vida é dor, a vida é medo, e o homem é um infeliz. Hoje tudo é dor e medo. Hoje o homem ama a vida porque ama a dor e o medo. E foi assim que fizeram. Agora a vida se apresenta como dor e medo, e nisso está todo o engano. Hoje o homem ainda não é aquele homem. Haverá um novo homem, feliz e altivo. Aquele para quem for indiferente viver ou não viver será o novo homem. Quem vencer a dor e o medo, esse mesmo será Deus. E o outro Deus não existirá.
- Então a seu ver o outro Deus existe mesmo?
- Não existe, mas ele existe. Na pedra não existe dor, mas no medo da pedra existe dor. Deus é a dor do medo da morte. Quem vencer a dor e o medo se tornará Deus. Então haverá uma nova vida, então haverá um novo homem, tudo novo... Então a história será dividida em duas partes: do gorila à destruição de Deus e da destruição de Deus...
- Ao gorila?
- À mudança física da terra e do homem. O homem será Deus e mandará fisicamente. O mundo mudará, e as coisas mudarão, e mudarão os pensamentos e todos os sentimentos. O que você acha, então o homem mudará fisicamente?
- Se for indiferente viver ou não viver, todos matarão uns aos outros e eis, talvez, em que haverá mudança.
- Isso é indiferente. Matarão o engano. Aquele que desejar a liberdade essencial deve atrever-se a matar-se. Aquele que se atrever a matar-se terá descoberto o segredo do engano. Além disso não há liberdade; nisso está tudo, além disso não há nada. Aquele que se atrever a matar-se será Deus. Hoje qualquer um pode fazê-lo porque não haverá Deus nem haverá nada. Mas ninguém ainda o fez nenhuma vez.
- Houve milhões de suicidas.
- Mas nunca com esse fim, tudo com medo e não com esse fim. Não com o fim de matar o medo. Aquele que se matar apenas para matar o medo imediatamente se tornará Deus.
- Talvez não consiga - observei.
- Isso é indiferente - respondeu baixinho, com uma altivez tranquila, quase com desdém. - Lamento que você pareça estar rindo - acrescentou meio minuto depois.
- Acho estranho que pela manhã você estivesse tão irritadiço mas agora esteja tão tranquilo, embora falando com ardor.
- Pela manhã? Pela manhã foi ridículo - respondeu com um sorriso -, não gosto de injuriar e nunca rio - acrescentou com ar triste.
- É, é triste o seu jeito de passar as noites tomando chá. - Levantei-me e peguei o quepe.
- Você acha? - sorriu ele com certa surpresa. - E por quê? Não, eu... eu não sei - atrapalhou-se subitamente -, não sei como fazem os outros, mas sinto que não posso fazê-lo como qualquer um. Qualquer um pensa, e logo depois pensa em outra coisa. Não posso pensar em outra coisa, pensei na mesma coisa a vida inteira. Deus me atormentou a vida inteira - concluiu de súbito com uma surpreendente expansividade."

Fiódor Dostoiéviski
(Em "Os Demônios", Paulo Bezerra (trad.), Editora 34, 4a edição, 2004, pg 118-121)

ps.: Estas linhas foram escritas em 1871. Doze anos antes de Nietzsche iniciar a escrever seu "Assim falou Zaratustra".

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Lição de vitória

"Se queres vencer o mundo inteiro, vence a ti mesmo."

Fiódor Dostoiévski
(Em "Os Demônios", Paulo Bezerra (trad.), Editora 34, 4a edição, 2004, pg 128)

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Para se aprender que fogo queima

"Houve época em que a idade era tida como qualidade, mas, de uns tempos para cá, caiu em descrédito. Nos anos 1960, tornou-se comum dizer-se que não se devia confiar em ninguém que tivesse mais de 30 anos. Descobriu-se, então, que ser jovem era o único valor real e que a chamada sabedoria dos mais velhos era simples balela. Os que diziam isso, naquela época, hoje têm mais de 50 anos e não sei se continuam a afirmar a mesma coisa ou se ensinam a seus filhos o que aprenderam com a idade.Por exemplo, que o consumo de drogas, a que se entregavam entusiasticamente naquela época, levou muitos amigos seus à loucura ou à morte precoce. Mas, se o fizerem, correm o risco de ouvir deles que não confiam em ninguém que tenha mais de 30 anos de idade, pois foi o que aprenderam com os próprios pais. De fato, aos 20 anos, a gente não sabe muito da vida. Tampouco os mais velhos sabem tudo. Se aquela frase irreverente expressava a necessidade de uma geração de romper com os valores estabelecidos e entregar-se ao desvario beatnik, há que levar em conta que cabe aos jovens inventar a própria vida e, para isso, têm que, às vezes, não ouvir os conselhos dos pais. É que nem sempre a sabedoria dos mais velhos ajuda os mais jovens. E mais que isso, o jovem quer errar, precisa errar, porque é errando que se aprende. Não adianta a mãe advertir o filhinho de não tocar o dedo na chama da vela, pois fogo queima. Ele só acreditará depois de queimar o dedo."

Ferreira Gullar
(em sua coluna no Estadão de ontem)

terça-feira, 9 de abril de 2013

Um sopro de idealismo ao nascer do dia

"Argemiro viu o dia nascer de cor vermelha e púrpura e escarlate e nuvens nacarinas esfiapadas, sangues aéreos, voos de romãs, estrias de lacre, rendas de flores rosadas, cabeças de cardeais, tições ardentes, umas coisas rosicleres. Pensou que o dia ia pegando fogo, porque antes também via tudo assim, mas não sentia a mesma coisa. Viu que o céu tinha mais cores do que a fogueira e até imaginou que talvez todos os objetos tivessem tantas cores quanto estas, só que escolhemos aqueles que devemos matizar e aqueles que devemos ter como chapados. Pode ser mesmo que nada exista a não ser o nosso olhar e as coisas que ele traz para dentro de nós, que podemos não ser nós, podemos ser uma solidão. Pode ser, enfim, que somente exista uma pessoa espigada diante do horizonte e tudo mais sejam perguntas e pedidos. Não há em toda vida a morte?"

João Ubaldo Ribeiro
(Em "Vila Real", Objetiva (3.ed), 2012, pg. 106)

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Certezas de vitória

"É por não ser ambicioso que não tenho convicções, como as entendem as pessoas ambiciosas. Não há em mim nenhuma base para uma convicção. Só os aventureiros têm convicções. De quê?... De que têm de vencer. E como as pessoas são covardes, os que têm convicções vencem."

Charles Baudelaire
(Como citado no programa "Provocações" da Tv Cultura em 2/4/2013)

domingo, 7 de abril de 2013

Navegação moral

"Quando cometemos um erro, nem sempre devemos tratá-lo como se este fosse una mácula moral em nosso espírito. Pode ter sido simplesmente o caso de estarmos justificadamente confusos, pois a navegação moral em um mundo complexo e que muda rapidamente é algo realmente difícil. Deveríamos então combinar o compromisso ao pensamento rigoroso com a disposição de perdoar nossos próprios escorregões. E deveríamos lembrar, pensando holisticamente, da gratidão por vivermos em um tempo que permite este tipo de confusão."

Emrys Westacott
(Traduzido livremente de "The Virtues of our Vices", Princeton Press, 2012, pg 12)


sábado, 6 de abril de 2013

Onde estais?

"Quando se ganha o que se pensa difícil, o pensamento se desorienta. Assim ficou o povo de Argemiro, dando-se conta de como tudo se aquietou em tão pouco tempo. Todos tinham lutado menos do que esperavam, até mesmo Alarico, que viu sumirem da frente, engolidos pelo ar e pelo chão, os inimigos. Então era isso o que acontecia, quando se tinha companhia para a luta e se tinha o equipamento. Então era assim a face do vitorioso de antes, agora confundida com a poeira do chão e pronta a ser esquecida. É verdade que todo homem que já viveu nunca se apaga de todo, porque aqui e ali há uma grama que ele pisou e lá o ar se agitou com a sua falta ou seu gesto. Cada um pois deixa qualquer marca, mas também deixam marcas as plantas e as pedras e tudo o que já modificou a paisagem. Louvado seja Deus, disse o padre Bartolomeu, sentindo arrepios e a carne fazendo ondas nos músculos da barriga. Devia vomitar e estrabar todas as dúvidas e devia estar longe e fazendo penitência e não devia estar aqui com as bochechas bolsadas pela náusea da violência e pela comida que o corpo enjeitou. Mas não se achava melhor homem do que os outros e então buscou rezar em companhia de todos os outros e maldisse o livre-arbítrio que lhe tinham dado, desde quando possuía consciência. Pois seria melhor que houvesse cordões que mexessem seus braços e todo o seu corpo e que houvesse um livro onde olhasse as respostas completas. Entretanto, não era assim, porque o livro que existe tem muitos discursos e cada olho que se assenta sobre ele vê uma luz diversa. Padre Bartolomeu quis que existisse uma resposta, mas, sabendo que ela não estava a seu alcance, lembrou que as sementes do chão hão que render frutos para todos os viventes. Recordou que no livro são contadas mortes e batalhas. Exurge, quare obdormis, Domine? - pensou o padre, com vontade de chorar. Na sebe de tiriricas, os corpos de sangue empedrado. Em toda parte, um cheiro de defuntos frescos. E aqui uma solidão, nesta cabeça sem cabelos. Onde estais, Senhor? A coisa mais difícil é escolher."

João Ubaldo Ribeiro
(Em "Vila Real", Objetiva (3.ed), 2012, pg. 94)