sábado, 30 de junho de 2012

A vida é uma linha

"A vida é uma linha. Ela começa no nascimento, passa por um longo período de consolidação física e ética; segue para uma aliança conjugal cuja consequência é geralmente a criação de novas vidas e a responsabilidade de transformá-las em pessoas e, finalmente, ela nos leva a um ponto sem futuro (toda mudança na velhice é problemática porque não se mexe em time que está ganhando), que antecede a saída deste dramalhão barato e belo do qual tomamos parte sem termos sido convidados. 

 Não obstante essa implacável linearidade, cada fase da vida tem seus impulsos, seus dilemas e suas regressões. Uma nova etapa não acaba automaticamente com a outra. Exceto nos rituais, e, por isso, eles são tão importantes, essas fases todas se confundem e criam dilemas dentro de dilemas e regressões (bem como saltos e rompimentos) em meio aos retornos. Continuar crescendo (dizendo não a nós mesmos) ou voltar à irresponsabilidade da infância? Caminhar sozinho na tempestade ou desistir? Como saber se o Brasil vai dar certo se ele continua e nós, um dia, partiremos? 

 No meio do jardim podado da velhice encontramos o menino inseguro ou o adolescente moleque; na juventude tentamos viver o idoso que fala pausadamente e imagina que sabe tudo. As fases da vida seguem como um trem de ferro, mas a composição não é fixa. Muitas vezes a locomotiva é empurrada por vagões vazios..."

Roberto DaMatta
(Em sua coluna desta última quarta-feira no Estadão)

sexta-feira, 29 de junho de 2012

A ilusão causada pela necessidade de exteriorizar o que pertence ao interior

"O fato de um homem, agindo de modo deplorável, usar a máxima de que no futuro ele espera mudar - isto na verdade indica que não há muita chance de mudança. A urgência que ele possa sentir por uma mudança não possui poder sobre ele precisamente porque ele constantemente a proclama - de tal forma que, no fim, tudo que permanece é a urgência de proferi-la uma vez ou outra, enquanto suas ações continuam sendo contrárias àquilo que ele diz."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "The Book on Adler", em "Fear and Trembling and The Book on Adler", Walter Lowrie (trad.), Alfred Knopf 1994, pg 259)

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Que liberdade política é a nossa?

"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos de seu governo. Pertencer a uma nação livre torna livre o homem que, nesse caso, pode transformar-se em cidadão. As linhas acima esboçam um ideal. Destinam-se a servir como critério de apreciação e estímulo de ação. A realidade é diferente. A vida pública de uma nação não é simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua auto-educação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca auto-educação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers
(Em "Introdução ao Pensamento Filosófico", Leonidas Hegenberg (trad.), Cultrix 1976, cap IX, item 4)

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Requentado

"Dizem que o mundo está aquecido. Eu afirmo que é pior: vivemos num mundo requentado. Servir uma comida requentada é sinal de preguiça; melhor seria fazer um prato novo. É como ensinar a quem acha que sabe - essa multidão que povoa o mundo. O que singulariza um universo globalizado é o excesso de meios e uma enorme carência de fins. Nele, o velho tende a retornar como novo. No mundo diário, isso surge com os homens de cabelo pintado da cor de burro quando foge."

Roberto DaMatta
(Em sua coluna de hoje no Estadão)

terça-feira, 26 de junho de 2012

A necessidade de acordar deste pesadelo de liberdade

"Até o 11 de setembro, tínhamos liberdade para desejar o quê? Bagatelas, mixarias. Uma liberdade vagabunda para nada, para o exercício de um narcisismo ilusório, o fetiche de uma liberdade transformada em produto de mercado. A gente pode se drogar, se suicidar, sofrer, mas repensar o mundo na prática, essa 'macroliberdade' é impossível; ela é privilégio das grandes corporações, que podem planejar o Sistema, eliminando regras nacionais, podem se fundir em megaconglomerados, pois elas têm a desculpa de não terem rosto. Aliás, até o Mal ficou difuso. Onde está o mal, hoje? Entre os terroristas, no meio da miséria, entre fezes? O Mal ficou arcaico. Por isso, o mal dos terroristas consiste em injetar o arcaico no moderno, esse inferno 'clean' que o capital inventou. E não adianta tentar a "beleza do Mal" como busca invertida do Bem. Já foi tentado: o culto à perversão, à violência ideológica, à crueldade por 'bons' motivos, tudo. Nada deu em nada.

[...]

Precisamos de uma forma nova de "transcendência", abolida pelo consenso tecnocientífico; precisamos de um novo "holismo". Uma nova liberdade se tornou urgente, a liberdade de não ser moderno, de não ser tão 'livre' assim como quer o mercado. Precisamos de um ideário que acrescente alguma inutilidade ao mundo, pois o futuro foi apossado pelo marketing dos novos produtos. Precisamos de fatos, e não de expectativas, precisamos de um conjunto orgânico de verdades (ou de crenças mesmo) que espiritualize nosso vazio. Osama, como um profeta de cabeça para baixo, nos lembrou que a vida real é um mistério."

Arnaldo Jabor
(Em sua coluna de hoje no Estadão) 

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Profundidade

"Hoje em dia julga-se fato esplêndido quando alguém é tão sortudo a ponto de observar profundamente, de escrever, em um instante, algo profundo que será porém por ele mesmo repudiado na própria existência. Não, assim como a perseverança (ao contrário da fugaz decepção do momento) é a verdadeira virtude, também a profundidade não pode ser exibida em um discurso, uma frase, mas somente na maneira de existir."  

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "The Book on Adler", em "Fear and Trembling and The Book on Adler", Walter Lowrie (trad.), Alfred Knopf 1994, pg 152)


quarta-feira, 20 de junho de 2012

Para os pseudo-rebeldes de plantão

"Um homem deve ou querer servir o universal, a ordem estabelecida, exprimindo isto em sua vida, e neste caso seus méritos serão medidos pela fidelidade e pontualidade com que ele sabe como subordinar a si mesmo ao universal, como fazer de sua vida uma reprodução bela e rica e fiel da ordem estabelecida ao moldar-se através dela - ou então ele deve encarar seriamente a tarefa de ser um extraordinário, e, enquanto extra ordinem, ele deve sair das linhas, das posições, dos cargos, aos quais ele não pertence. Mas na nossa época tudo é confundido. Um funcionário público, por exemplo, quer ao mesmo tempo ser algo extraordinário, descontente. Uma lamentável, imortal confusão! Se ele é verdadeiramente descontente, ele deve ter algo novo para nos trazer; então, fora dos cargos! "com uma corda no pescoço"; e deixemo-no falar, pois esta é a situação de que um verdadeiro extraordinário precisa para ser capaz de gesticular livremente e iniciar a nova música. Mas se ele não tem nada de novo para nos trazer, não se deve de nenhum modo assumir em sua vantagem o fato de ele ser descontente - e ao mesmo tempo funcionário público. Porém, a indolência e a falta de caráter dos nossos tempos acaba por considerar um tipo de estreiteza mental ser o contrário de tal lamentável combinação: ou um funcionário fiel de corpo e alma; ou um reformador com a espada pendurada sobre a cabeça em perigo mortal, em auto-sacrifício."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "The Book on Adler", em "Fear and Trembling and The Book on Adler", Walter Lowrie (trad.), Alfred Knopf 1994, pg 141)


terça-feira, 19 de junho de 2012

Sucesso espiritual

"Atualmente está-se sempre ocupado somente com a vitória, vive-se com o conceito vão de que se ao menos se pudesse conquistar, não faria nenhuma diferença como se daria tal conquista - como se os meios não fossem importantes, enquanto que, se há qualquer questão sobre tal situação no mundo espiritual, são os meios o fator determinante ou, de modo mais claro, os meios e a vitória são um e o mesmo. É claro, em relação a dinheiro, títulos, cavalos e carruagens, aclamações públicas e outra indecências, os meios são de fato de nenhuma relevância, não são eles os mesmos que a possessão do que visam. Então pode-se realmente possuir dinheiro de muitas podres maneiras. Pode-se realmente conseguir uma aclamação em própria honra de muitas podres maneiras. Mas em relação ao espírito não há tais realidades extrínsecas, palpáveis e indecentes. A característica profunda e elegante do espírito é o fato de que o modo de aquisição e a posse são um só. Então aquele que desconhece este fato da esfera espiritual, mas regozija-se no conceito vão de ser vitorioso, apesar de os meios utilizados serem totalmente desprezíveis, não percebe com que elegância a profundidade do espírito diverte-se com ele pois ele não conquistou nada, apenas escreveu uma sátira de si mesmo."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "The Book on Adler", em "Fear and Trembling and The Book on Adler", Walter Lowrie (trad.), Alfred Knopf 1994, pg 147)

A frase interrompida que fundamenta o valor de uma vida

"Fais ce que dois, adv..."


Leon Tolstoi
(sua última frase, assim interrompida, em seu diário pessoal. Do ditado francês "Fais ce que dois, advienne que pourra": "faz o que deves, aconteça o que acontecer").

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Autores-premissas e a constipação espiritual do nosso tempo

"Já que, como diz o barbeiro [...] 'nosso século é o século do movimento', não é improvável que as vidas de muitos homens sigam de tal maneira que eles tenham de fato diversas premissas para viver mas não cheguem a nenhuma conclusão - exatamente como esta época que coloca em movimento muitas premissas mas também não atinge nenhuma conclusão. A vida de um tal homem segue até que a morte põe-lhe um fim, mas sem trazer consigo um fim no sentido de firmar uma conclusão. Pois uma coisa é a vida se acabar e outra bem diferente que ela tenha terminado por atingir uma conclusão. [...] Considerar a morte como uma conclusão é uma evasão traiçoeira, pois a morte é completamente indiferente às premissas de uma vida, e portanto de modo algum pode ser a sua conclusão. 

Mas quanto maior a falta de tempo para o desenvolvimento interior, e maior o número de indivíduos sem conclusões, tanto mais ativos os homens se encontram em multiplicar as premissas. E disto resulta que atingir uma conclusão torna-se ainda mais e mais difícil, pois, ao invés da determinação de uma conclusão, segue-se uma interrupção que, entendida espiritualmente, é como a constipação no organismo animal. Assim, o aumento das premissas é tão perigoso quanto a sobrecarga de comida quando se sofre de constipação, por um momento pode parecer um alívio, mas gradualmente o passar do tempo transforma-o em mórbida fermentação. Então os indivíduos cujas vidas contêm apenas premissas podem fazer uso desta doença dos nossos tempos para se tornarem autores, e suas obras serão precisamente aquilo que os nossos tempos demandam. Em tais circunstâncias porém, um verdadeiro autor iria naturalmente prescrever uma dieta, mas os autores-premissas julgam-se em boa situação.


E como a oportunidade faz o ladrão, também esta fermentação faz o autor 'desvairado', pois a falta de conclusões na nossa época obscurece o fato de que os autores não as possuem. As diferenças relativas dos autores-premissas entre si, com relação ao talento e coisas do tipo, podem ser enormes, mas todos têm em comum esta marca essencial, ou seja, que eles não são autores verdadeiros. Na superfície de tal fermentação pode haver um bom número de espertos, mas mesmo o mais insignificante deles poderá aspirar a escrita de ao menos uma pequena contribuição-premissa para algum jornal. É assim que há expectativa de avanço para o mais insignificante e, consequentemente, há um grande número, uma multidão de autores: por razão de seu número, é melhor compará-los a estes fósforos que são vendidos em feixes. Um tal autor, cuja cabeça possui sobre ela depositada alguma coisa fosforescente (a insinuação de um projeto, um palpite), deve ser pego pelas pernas e riscado sobre um jornal, e assim emerge três ou quatro colunas... E o autor-premissa tem mesmo uma grande semelhança com fósforos, ambos explodem com um sopro.


Mas apesar desta explosão, e talvez precisamente por culpa dela, todos autores-premissas, sejam quais forem suas diferenças, têm em comum uma coisa: todos eles têm um propósito, todos desejam produzir um efeito, todos desejam que suas palavras tenham uma extraordinária difusão e possam ser lidas por toda a humanidade. Este traço curioso é reservado para os homens em tais tempos de fermentação: ter um propósito, por tal propósito estar em movimento com o suor de seu rosto, sem realmente saber em si mesmo para onde este propósito leva. [...] Ao invés de ter, cada homem por si mesmo, uma concepção clara do que se quer in concreto antes de começar a expressar suas próprias opiniões, têm-se uma superstição sobre a utilidade de se começar uma discussão, uma superstição de que, enquanto os indivíduos não sabem o que querem, o espírito do século será capaz de, por sua própria dialética, deixar claro o que eles realmente desejam. [...] O autor-premissa pensa que o clamor em si, a discussão em si mesma, é um tipo de salvação - e ele não observa que quase todos saem por aí a clamar sobre qualquer coisa. Foge à atenção do autor-premissa que seria muito mais razoável em tais tempos, tempos de clamor, que um homem pensasse assim: O clamor será certamente feito de qualquer modo, portanto é melhor abster-me de fazê-lo e concentrar-me em uma reflexão mais concreta. [...] A aparente modéstia de desejar simplesmente fazer um protesto ou levantar uma discussão não é em nenhum sentido louvável, a repetição desta experiência deveria imprimir em todos nós o pensamento de que se deve antes procurar por ajuda real em resposta a este protesto, ou então abster-se de fazer qualquer coisa que aumente a confusão." 

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente da introdução de "The Book on Adler", em "Fear and Trembling and The Book on Adler", Walter Lowrie (trad.), Alfred Knopf 1994, pg 114-117)

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O cinema imita a vida

"Antigamente, sofríamos durante a trama, esperando que os heróis ou amantes fossem felizes no fim. Hoje, sabemos que tudo vai acabar bem, mas nos fascinam mais os infernos que eles terão de atravessar, para chegar a um desfecho fatalmente bom. A catarse chegará, mas antes temos amputações, temos bazucas estourando peitos, bombas e vemos que, mais importantes que as personagens, são as "coisas" em volta. Sim, as coisas. Personagem é só um pretexto para mostrar o décor. E o décor é um grande showroom dos produtos americanos, que são as verdadeiras personagens: maravilhosos aviões, os supercomputadores, a genialidade tecnológica. Neste neocinema épico século 21, as personagens não fogem de um conflito; fogem dos produtos. E pior: não adianta se refugiar na arte. O cinema de autor ficou mirrado diante de tanta homérica violência. A arte pressupõe uma imperfeição qualquer, uma fragilidade que evoca a natureza perdida; a arte inclui a morte ou o medo, mesmo no triunfo das estátuas perfeitas. 

A destruição que vemos na vida, a sordidez mercantil, a estupidez no poder, o fanatismo do terror, a destruição ambiental, em suma, toda a tempestade de bosta que nos ronda está muito além de qualquer crítica. O mal é tão profundo que denunciá-lo ficou inútil. Pela influência insopitável do avanço técnico da informação, turbinado pelo mercado global, foram se afastando do grande público as criações artísticas e literárias, as ideias filosóficas, os valores. Em suma, toda aquela dimensão espiritual chamada antigamente de 'cultura' que, ainda que confinada nas elites, transbordava sobre o conjunto da sociedade e nela influía, dando um sentido à vida e uma razão de ser para a existência. Na arte atual, não há vestígios de esperança. Vivemos diante de um futuro que não chega e de um presente que nos foge sem parar. Isso nos faz saudosos do presente como se ele fosse um passado."

Arnaldo Jabor
(Em sua coluna desta terça-feira no Estadão)

domingo, 10 de junho de 2012

Contingências irrevogáveis da História

"Os atos de Napoleão e de Alexandre, dos quais uma simples palavra podia, na aparência, soltar ou conter o acontecimento, tinham, com efeito, tão pouco peso quanto os do simples soldado que a sorte ou o recrutamento obrigava a fazer a campanha. Não podia ser de outro modo, porque, para que a vontade de Napoleão ou de Alexandre, árbitros aparentes da sorte, se cumprisse, era preciso o concurso de inúmeras circunstâncias uma vez que, excluída uma delas, nada podia acontecer. Era indispensável que milhões de homens, entre cujas mãos se encontrava a força operante - soldados para atirar, para transportar os víveres e os canhões - consentissem todos em cumprir a vontade daqueles dois indivíduos fracos e isolados e que fossem determinados por uma quantidade inúmera de causas diversas e complexas.

Diante de certos fenômenos históricos, desnudados de sentido, ou antes, cujo sentido nos escapa, o recurso ao fatalismo é indispensável. Com efeito, quanto mais nossa razão se esforça por explicá-los, tanto mais nos parecem desarrazoados, incompreensíveis. 

Todo homem vive para si mesmo, utiliza sua liberdade para atingir fins particulares, sente em todo o seu ser que pode ou não realizar tal ou qual ato; mas, desde que age, seu ato realizado em tal momento da duração torna-se irrevogável e pertence doravante à História, onde ele não mais parece livre, mas regido pela fatalidade.

A vida humana tem duas faces. Há de uma parte a vida individual, que é tanto mais livre quanto seus interesses são mais abstratos; há por outra parte a vida elementar, gregária, em que o homem deve inevitavelmente submeter-se às leis que lhe são prescritas.

O homem vive conscientemente por si mesmo, mas participa inconscientemente na prossecução dos fins históricos da humanidade inteira. O ato realizado é irrevogável e, por sua concordância com milhões de outros atos realizados por outrem, assume um valor histórico. Quanto mais alto está colocado o homem na escala social, mais importantes são os personagens com os quais entretém relações, maior também é seu poder sobre o próximo, mais cada um de seus atos se reveste dum caráter evidente de necessidade, de predestinação.

'O coração dos reis estão na mão de Deus'.

O rei é escravo da História.

A História, isto é, a vida inconsciente, geral, gregária da humanidade, faz cada minuto da vida dos reis servir à realização de seus desígnios."

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz" - volume II, tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 11)

sábado, 9 de junho de 2012

O embalo de si mesmo

"Deve-se controlar a si mesmo, esta é a principal condição de todo gozo.  Não me parece que possa esperar obter tão cedo qualquer informação sobre aquela mulher que enche minha alma e pensamentos de tal maneira que mantem a todos eles vivos. Mas agora devo permanecer quieto, calmo, pois este estado no qual estou, esta obscura e indefinível mas intensa agitação, tem o seu lado doce. Sempre amei, em uma noite de luar, permanecer deitado em um barco sobre um dos nossos adoráveis lagos. Puxo os remos para dentro, removo o leme, estico-me inteiro no interior e olho para o vazio do céu. Quando o barco balança nas cristas das ondas, quando as nuvens correm sopradas por fortes ventos, de modo que a lua desaparece por momentos e então reaparece, então nesta inquietude encontro o descanso. O movimento das ondas embala-me, lapidando contra o barco uma monótona canção de ninar. O rápido voo das nuvens, a mudança entre a luz e a sombra inebriam-me, fazendo-me sonhar acordado. Assim também é agora, deixo-me estar, recolho os remos e o leme; com a saudosa e impaciente expectativa por me atirar em seus braços; expectativa que se torna cada vez mais e mais quieta, mais e mais cheia de felicidade, ela acaricia-me como a uma criança; o céu da esperança arqueia-se sobre mim; sua imagem flutua como a da lua, indistinta, cegando-me ora com sua luz, ora com sua sombra. Que agradável é rebater-se de um lado para outro em um lago tempestuoso - que agradável é permanecer agitado em si mesmo!"

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 4390)

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Reflexo

"O que desperta interesse sempre contem uma reflexão sobre si mesmo; assim como a obra de arte interessante sempre exibe-nos o próprio artista."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 4618)

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Verdade brasileira verdadeira

"A verdade verdadeira só pode nascer por fé ou apoiada em critérios externos. Os meios de reprodução da vida seriam provas da verdade. Mas as coisas se complicaram porque tudo é possível por meio de montagens, de modo que se pode duvidar da prova fotográfica ou sônica. Um governador é filmado recebendo uma bolada; um sujeito é televisionado saindo com uma cesta de dólares de um elevador; uma senhora, esposa de um ilustre deputado, vai a um banco e é filmada pegando um dinheiro; ouvimos conversas fraternais entre um senador, um contraventor e seus associados; vemos fotos de um governador com um empresário com o qual se fizeram contratos de milhões. Em Júpiter e no Inferno, tudo isso seria um testemunho. Mas no Brasil do "tu é nosso e nós somo teu" - o velho Brasil do toma lá dá cá que transformou o governo numa casa-grande e a sociedade numa senzala -, isso é versão! A coisa mais inefável no Brasil de hoje é provar algo contra alguém que seja "nosso". 

 Temos fé ao contrário: acreditamos que a verdade não existe e que os fatos são fabricações. Pergunta-se: a bomba atômica e a goiabada cascão existem? O homem foi mesmo à Lua? Existe morte? Tivemos escravidão?  

Falarei apenas sobre o homem na Lua. Sobre isso, ouvi do meu pai uma negação impetuosa: seria um truque dos americanos! Prova cabal: eles desceram na Lua e nela, conforme sabemos, não se desce, sobe-se. Ela está no céu, acima de todos nós!"

Roberto DaMatta
(Em sua coluna no estadão desta quarta-feira).

terça-feira, 5 de junho de 2012

Por onde se deve começar (quando se quer mudar o mundo)

"O desvio cultural que reforça o individualismo em detrimento da sociedade e promove a inovação às custas da tradição é uma distorça do que significa ser humano. Este desvio serve - e é servido por - a busca do crescimento [econômico]. Mas aqueles que esperam que o crescimento leve à utopia materialística estão destinados à frustração. Nosso mundo simplesmente não tem a capacidade ecológica para atingirmos esse sonho. No final do século, nossos filhos e netos irão encarar a face hostil do clima, recursos esgotados, a destruição do ambiente, a dizimação das espécies, escassez de comida, migração em massa e, quase inevitavelmente, a guerra. Nossa única chance é lutar por mudança. Transformar as estruturas e instituições que moldam a sociedade. Articular uma visão mais credível de uma prosperidade duradoura. 

As dimensões desta tarefa são ambas pessoais e sociais. E o potencial para a ação pessoal - ou comunitária - é claro. A mudança pode ser expressa no modo como vivemos, nas coisas que compramos, em como viajamos, em onde investimos nosso dinheiro, em como gastamos nosso tempo de lazer. Ela pode ser atingida através do nosso trabalho. Pode ser influenciada pelo modo como votamos e pela pressão democrática que exercemos em nossos líderes. Pode ser expressa através do ativismo e do engajamento comunitário. E em como travamos a busca de uma frugalidade individual, de uma simplicidade voluntária."

Tim Jackson
(Traduzido livremente de "Prosperity Without Growth", Earthscan 2009, pg 203)

segunda-feira, 4 de junho de 2012

O labirinto do consumo

"É perverso falar de pessoas florescendo quando não se tem comida ou abrigo. E este ainda é o caso de bilhões vivendo nos países em desenvolvimento. Mas é também óbvio que equacionar de modo simplista quantidade com qualidade, mais com melhor, é falso em geral. As coisas, em si mesmas, não nos ajudam a florescer. E algumas vezes elas podem inclusive nos impedir de fazê-lo. 

Uma vida próspera está relacionada, em parte, com nossa capacidade de dar e receber amor, de desfrutar do respeito de nossos amigos, de ser útil à sociedade, de ser parte de uma comunidade, de ajudar a criar a esfera social e encontrar nela um local seguro. Em resumo, uma componente importante da prosperidade é a habilidade de participar com sentido na vida da sociedade. Estas são tarefas primordialmente sociais e psicológicas. A dificuldade que se apresenta hoje é que a sociedade de consumo apropriou-se de muitos bens materiais e processos colocando-os em serviço de questões que não são materiais. A nossa certamente não é a primeira sociedade a dar significado simbólico a coisas. Mas somos os primeiros a entregar tanto do nosso funcionamento social e psicológico à causa materialista. Nosso sentimento de identidade, nossas expressões de amor, nossa busca por significado e propósito; mesmo nossos sonhos e desejos são articulados com a linguagem do consumo. As questões mais fundamentais que fazemos sobre o mundo e nosso lugar nele são feitas através do consumismo. O acesso ilimitado a bens materiais está por nossos sonhos de liberdade. E por vezes mesmo por sonhos de imortalidade. 

'O animal humano é uma besta que morre e se ele tem dinheiro ele compra e compra e compra,' diz Big Daddy na peça de Tennessee Williams de 1955, 'Gato em Telhado de Zinco Quente'. 'E eu acho que o motivo de ele comprar tudo que pode é que dentro de sua cabeça ele tem essa esperança maluca de que uma dessas compras lhe dará vida eterna'. Aqui também a ilusão governa. É claro que os bens materiais trazem novidades em nossas vidas. É claro que eles nos confortam e dão-nos esperança. É claro que eles conectam-nos com aqueles que amamos e com quem tentamos nos relacionar. Mas estas conexões são, no melhor dos casos,  passageiras. Elas são tão capazes de nos impedir a prosperar do que de a facilitar-nos nesta busca. Com o tempo, elas evanescem e são distorcidas. A sua promessa no fim mostra-se embasada em nada. Esta é a sabedoria que sábios de tempos imemoráveis tentaram nos passar. E não enfraqueceu ao longo dos anos. Apenas foi diluída por nosso bem-estar material. E é cada vez mais e mais difícil ver-se onde está o verdadeiro bem-estar. Distinguir o que importa do que brilha. Estamos presos em um labirinto de abundância, destinados a permanecer lá até que o feitiço seja quebrado. Quando ele for, estaremos perdidos."

Tim Jackson
(Traduzido livremente de "Prosperity Without Growth", Earthscan 2009, pg 189-190)


domingo, 3 de junho de 2012

As nacionalidades e seus motivos

"Pfull era uma dessas criaturas que uma confiança desesperada em suas ideias pode levar até o martírio, e que só se encontram na Alemanha, porque somente os alemães baseiam sua segurança sobre uma ideia abstrata, a ciência, isto é, o pretenso conhecimento da verdade absoluta. O francês está seguro de si porque imagina que exerce , quer pelo seu espírito, quer pelo seu físico, uma sedução irresistível, tanto sobre os homens como sobre as mulheres. O inglês está seguro de si porque se crê o cidadão do Estado mais policiado do mundo: na qualidade de inglês sabe que tudo quanto faz é indiscutivelmente bem feito. O italiano está seguro de si porque sua natureza facilmente emotiva fá-lo esquecer-se de si mesmo e dos outros. O russo está seguro de si mesmo porque não sabe de nada e de nada quer saber e porque não crê que se possa conhecer perfeitamente o que quer que seja. A suficiência do alemão é a mais obstinada e a mais odiosa de todas, porque afigura-se conhecer a verdade, ou melhor, a ciência que ele próprio fabricou, mas que tem como a verdade absoluta."

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz" - volume II, tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 43)