segunda-feira, 18 de junho de 2012

Autores-premissas e a constipação espiritual do nosso tempo

"Já que, como diz o barbeiro [...] 'nosso século é o século do movimento', não é improvável que as vidas de muitos homens sigam de tal maneira que eles tenham de fato diversas premissas para viver mas não cheguem a nenhuma conclusão - exatamente como esta época que coloca em movimento muitas premissas mas também não atinge nenhuma conclusão. A vida de um tal homem segue até que a morte põe-lhe um fim, mas sem trazer consigo um fim no sentido de firmar uma conclusão. Pois uma coisa é a vida se acabar e outra bem diferente que ela tenha terminado por atingir uma conclusão. [...] Considerar a morte como uma conclusão é uma evasão traiçoeira, pois a morte é completamente indiferente às premissas de uma vida, e portanto de modo algum pode ser a sua conclusão. 

Mas quanto maior a falta de tempo para o desenvolvimento interior, e maior o número de indivíduos sem conclusões, tanto mais ativos os homens se encontram em multiplicar as premissas. E disto resulta que atingir uma conclusão torna-se ainda mais e mais difícil, pois, ao invés da determinação de uma conclusão, segue-se uma interrupção que, entendida espiritualmente, é como a constipação no organismo animal. Assim, o aumento das premissas é tão perigoso quanto a sobrecarga de comida quando se sofre de constipação, por um momento pode parecer um alívio, mas gradualmente o passar do tempo transforma-o em mórbida fermentação. Então os indivíduos cujas vidas contêm apenas premissas podem fazer uso desta doença dos nossos tempos para se tornarem autores, e suas obras serão precisamente aquilo que os nossos tempos demandam. Em tais circunstâncias porém, um verdadeiro autor iria naturalmente prescrever uma dieta, mas os autores-premissas julgam-se em boa situação.


E como a oportunidade faz o ladrão, também esta fermentação faz o autor 'desvairado', pois a falta de conclusões na nossa época obscurece o fato de que os autores não as possuem. As diferenças relativas dos autores-premissas entre si, com relação ao talento e coisas do tipo, podem ser enormes, mas todos têm em comum esta marca essencial, ou seja, que eles não são autores verdadeiros. Na superfície de tal fermentação pode haver um bom número de espertos, mas mesmo o mais insignificante deles poderá aspirar a escrita de ao menos uma pequena contribuição-premissa para algum jornal. É assim que há expectativa de avanço para o mais insignificante e, consequentemente, há um grande número, uma multidão de autores: por razão de seu número, é melhor compará-los a estes fósforos que são vendidos em feixes. Um tal autor, cuja cabeça possui sobre ela depositada alguma coisa fosforescente (a insinuação de um projeto, um palpite), deve ser pego pelas pernas e riscado sobre um jornal, e assim emerge três ou quatro colunas... E o autor-premissa tem mesmo uma grande semelhança com fósforos, ambos explodem com um sopro.


Mas apesar desta explosão, e talvez precisamente por culpa dela, todos autores-premissas, sejam quais forem suas diferenças, têm em comum uma coisa: todos eles têm um propósito, todos desejam produzir um efeito, todos desejam que suas palavras tenham uma extraordinária difusão e possam ser lidas por toda a humanidade. Este traço curioso é reservado para os homens em tais tempos de fermentação: ter um propósito, por tal propósito estar em movimento com o suor de seu rosto, sem realmente saber em si mesmo para onde este propósito leva. [...] Ao invés de ter, cada homem por si mesmo, uma concepção clara do que se quer in concreto antes de começar a expressar suas próprias opiniões, têm-se uma superstição sobre a utilidade de se começar uma discussão, uma superstição de que, enquanto os indivíduos não sabem o que querem, o espírito do século será capaz de, por sua própria dialética, deixar claro o que eles realmente desejam. [...] O autor-premissa pensa que o clamor em si, a discussão em si mesma, é um tipo de salvação - e ele não observa que quase todos saem por aí a clamar sobre qualquer coisa. Foge à atenção do autor-premissa que seria muito mais razoável em tais tempos, tempos de clamor, que um homem pensasse assim: O clamor será certamente feito de qualquer modo, portanto é melhor abster-me de fazê-lo e concentrar-me em uma reflexão mais concreta. [...] A aparente modéstia de desejar simplesmente fazer um protesto ou levantar uma discussão não é em nenhum sentido louvável, a repetição desta experiência deveria imprimir em todos nós o pensamento de que se deve antes procurar por ajuda real em resposta a este protesto, ou então abster-se de fazer qualquer coisa que aumente a confusão." 

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente da introdução de "The Book on Adler", em "Fear and Trembling and The Book on Adler", Walter Lowrie (trad.), Alfred Knopf 1994, pg 114-117)