segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A Felicidade não é assunto nosso

"A divisão kantiana entre fatos e valor é felizmente complicada pela particularidade do dever. A razão é uma faculdade universal, é a mesma para todos, mas cada indivíduo está situado no mundo em um lugar distinto e produz o espírito particular de seu próprio mundo ao vê-lo sob a luz da razão. Deus não aparece nessa história, ele está velado, é um objeto de fé: aquela fé para qual as limitações da razão kantiana e seu agnosticismo racional deixam espaço. Nós somos fontes morais, capazes de ter certezas morais e ser juízes confiantes da nossa vida espiritual. A metafísica de Kant é um modelo de demitologização, onde Deus, se presente, é segregado, isolado. O "Grundlegung" aponta para isso: da existência da lei moral podemos intuir um legislador supremo que irá introduzir a felicidade como um bonus final, mas de fato esta crença deve ser considerada como um deslize moral. Kant teme a felicidade assim como Platão. A busca pela felicidade aqui embaixo seria para Kant a entrega aos desejos egoístas. O amor feliz pode ser nada mais que uma ingênua trapaça moral. A felicidade não é assundo nosso, e especulações sobre o que Deus poderia de fato fazer a respeito não são só vazias, como elas ainda podem enganar-nos no atribuir à felicidade seu devido valor."

Iris Murdoch
(Traduzido livremente de "Metaphysics as a Guide to Morals", Penguin 1992, pg 438)

domingo, 30 de janeiro de 2011

Como se ensina a liberdade

"Viver, na verdade, não é uma noção abstrata, mas coincide com praticar uma forma determinada de vida. Ora, praticar formas de vida significa aprender regras e aprender regras equivale a aprender uma habilidade. Quando se ensina a uma criança a usar os talheres, procede-se em um certo modo. Diz-se: "pegue-o assim, com esta mão, envolva-o com estes dedos, vês, é mais simples assim, a comida fica mais presa, não cai da tua mão, e pode alcançar facilmente a boca". Assim é que se ensina e aprende-se uma regra. Mas ao fazê-lo, de fato adestramos a criança ou será esta apenas uma forma de coação, imposição de uma norma? Intuitivamente todos nós compreendemos que a adestramos. Neste caso porém, a coisa mais importante não é tanto aprender aquela regra específica, mas sim aprender a aprender regras. Pode chegar o momento em que a criança dirá: não quero mais usar a colher, prefiro comer de outro modo. Assim como pode chegar o momento em que todos nós inventamos e adotamos as regras que consideramos as melhores. Mas isso só pode ser feito por alguém que sabe o significado de aprender e de praticar uma regra: só assim este alguém é capaz de dar-se uma. Isto é liberdade.

Salvatore Natoli
(Traduzido livremente de "Il Buon uso del Mondo", Mondatori 2010, pg 217)

sábado, 29 de janeiro de 2011

Respeito e Democracia

"Não há dúvidas que as comunidades conservam-se porque dividem formas de vida e crescem desenvolvendo-se por mimetismo. Os seres humanos, de fato, assemelham-se mais do que se diferem e descobrem o melhor das suas semelhanças quanto mais se destacam do seu mundo particular, sem com isso renunciar à própria potência. Mas assemelhar-se não significa ter a mesma idéia, pertencer aos mesmos grupos, e sim ter respeito uns pelos outros enquanto membros de uma comunidade comum. Ora, respeito significa certamente a não violação e invasão do espaço dos outros, mas não se limita de nenhum modo a este único aspecto. Tudo isto é-nos de difícil compreensão porque temos uma noção demasiadamente jurídica de 'responsabilidade'. Como já disse, 'responsabilidade' não significa apenas prestar contas do que se faz a um outro - o que equivaleria a uma simples imputabilidade - mas significa, acima de tudo, a obrigação de responder às demandas do outro enquanto outro, enquanto igual. De fato, cada ser humano é sempre para o outro uma pergunta. E dar resposta a esta pergunta exige que se preste atenção à voz do outro. A atenção, porém, por sí só, não basta: é necessário levar a palavra do outro a sério, inclusive ao pondo de fazê-la valer como uma lei para si próprio. É claro que este levar a sério não implica em concordar. Dos outros pode-se sempre discordar, o que não se pode fazer é subestimá-los. Mesmo assim, é uma conduta difusa hoje deixar que se fale, sendo que aquilo que nos é dito 'entra por um ouvido e sai por outro'. Ora, um aspecto da democracia - e não tanto como sistema político mas como prática de vida - é aquele de se reconhecer falível. Por isso à democracia impõe-se uma contínua ação de controle e revisão do próprio sistema: uma democracia é fortemente a risco se perde a consciência da própria falibilidade. Todos podemos errar, e portanto é dever de todos corrigir-se reciprocamente. (...) Podemos mostrar compreensão por quem erra, mas isso não significa de modo algum camuflar o erro que deve, ao contrário, ser evidenciado - e sem meias palavras! - para que quem errou possa ver melhor sua postura. A correção recíproca é um modo de aperfeiçoar-se."

Salvatore Natoli
(Traduzido livremente de "Il Buon uso del Mondo", Mondatori 2010, pg 247)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Dirigindo a vida

"Deveis reger a poesia.
O que nos pedem, já não falte:
Forte porção que empolgue e exalte;
Ponde a fervê-la com urgente afã!
O que hoje não se faz, nos faz falta amanhã;
E não passe um só dia em vão.
Deve aferrar-se a decisão
Ao que é possível; tão em breve
Não pensa em lhe dar larga, então,
E age até o fim, porque é o que deve.
"

J. W. Goethe

(“Fausto”, trad. do alemão por Jenny Klabin Segail, editora 34, 2010, pg 45 - “Prólogo no teatro”)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Vontade de conversa

"Se quer fazer uma coisa, não converse. Se não quer, converse."

João Ubaldo Ribeiro
("Sargento Getúlio", Objetiva 2007, pg 39)

A arte moral

"O bom artista é um tipo de imagem do homem bom, o grande artista é um tipo de imagem do santo. Ele é apenas um tipo de imagem, já que no seu todo o artista pode ser um enorme egoísta. Artistas têm suas próprias tentações especiais ao egoísmo e suas ilusões de onipotência. Arte é poder. Nós somos todos especialistas em moralidade e é difícil (impossível) para o homem ser virtuoso como um todo. Mas dentro do seu trabalho, e 'enquanto ele é um artista', para usar o artifício utilizado no início da República de Platão, ele pode ser humilde e verdadeiro e corajoso e inspirado pelo amor da perfeição. Rilke, falando de pintura e poesia: 'devemos trabalhar!'. Sempre há trabalho para fazer. Sempre podemos trabalhar em algo, de algum modo, para alguém, por alguma verdade ou algum bem, independente de quão difícil isto possa parecer."

Iris Murdoch
(Traduzido livremente de "Metaphysics as a Guide to Morals", Penguin 1992, pg 498)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Presença da falta

"Perder alguém: sofremos ao pensarmos na pessoa ausente, ela deveria ter se tornado apenas algo imaginário, algo falso. Mas a falta que temos dela não é imaginária. Devemos ir fundo dentro de nós mesmos, lá onde o desejo não imaginário reside... A perda do contato com a realidade: aí mora o que é mau, aí mora a desgraça ... A solução é usar a própria perda como um meio de atingir a realidade. A presença da pessoa que morreu é imaginária, mas sua ausência é real, é esse portanto o seu jeito de estar presente."

Simone Weil
(Traduzido livremente de "Notebooks", Basil Blackwell 1956, pg 28)


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Desque nasce começa a morrer

"Hum. Política é negócio de homem, podia dizer, se amunhecasse como tenho para mim que amunhecasse. Posso dizer que, se amofinasse e arreliasse como mulher parida, se estrebuchasse, podia fazer o que fizesse, eu até gostava. Me dá uma raiva por dentro, acho que careço ter raiva. Demais, não incomoda mais um ou mais outro, mais um ou mais outro eu vejo pelaí toda hora. A coisa que mais tem é morte, e o mais certo que tem. Desque nasce começa a morrer. Tárcio dizia: só faço os buracos, quem mata é Deus. Mesma coisa, até ele mesmo, Tárcio, chegando com as duas mãos enroladas na maçaneta da sela, cheio de buracos, nunca esqueço. Se morreu ele, morre qualquer. Então. A morte se apressase-se. É um alívio. Este válio de lágrimas, esta merda. Defunto é que nem praga de abobra, nesta terra. É um chão. Ih. Ê um chão. Chô, nem digo. Eu mesmo estou aí como uma vara em pé, posso qualquer hora desemborcar. Cheguei, como vai todo mundo, muito boa tarde, já voi indo, licença aqui. Quem se incomoda. Tudo só."

João Ubaldo Ribeiro
("Sargento Getúlio", Objetiva 2007, pg 39)

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Os cavalos da alma, o vazio, as fantasias e a verdade

Um trecho do diário de Simone Weil:

"Perdoar. É-se incapaz de perdoar. Quando alguém nos faz mal, as reações são já estabelecidas. O desejo pela vingança é o desejo por equilíbrio. Aceitar a falta de equilíbrio. Encontrar lá dentro a essencial falta de equilíbrio."

Após citar esta passagem, escreve-nos Murdoch:

"Consolamo-nos com fantasias. Ao invés de render-nos a esta necessidade natural, devemos  segurar-nos ao que realmente aconteceu, sem cobrir os fatos com imagens de como poder-se-ia voltar atrás. O vazio (a angústia, a dor, a perda) faz-nos perder o senso de realidade. Pois não pense em atingir o equilíbrio da situação, viva mesmo próximo à dolorosa realidade e tente relacioná-la ao que é bom. O que é necessário aqui (no vazio, na angústia), e é tão difícil de atingir, é uma nova orientação dos nossos desejos, uma re-educação dos nossos sentimentos instintivos. Podemos pensar na imagem platônica da alma como um cocheiro de uma biga levada por um cavalo bom e um cavalo mau, que luta com o cavalo mau, puxando-o violentamente, 'cobrindo suas mandíbulas de sangue'. (...) Temos um impulso natural para fantasiar nosso mundo, encher o que está a nossa volta de fantasias. Simplesmente parar com isso, impedindo que se encha vazios com mentiras e falsidade, é já progresso. Da mesma forma, nos maiores labirintos das relações humanas, muitas vezes pode ser necessário fazer um movimento que traga o vazio à tona. "

Iris Murdoch
(Traduzido livremente de "Metaphysics as a Guide to Morals", Penguin 1992, pg 503)

ps.: O mito do cocheiro de biga está no diálogo Fedro, em que Platão compara a alma a um cocheiro que possui dois cavalos em sua biga. O cavalo da direita é branco, de olhos escuros, tem porte imponente, descendência nobre, ama a honra, a humildade e a temperança, segue a verdade e é guiado pela palavra. O outro é um cavalo baixo, curvo, de pescoço curto e grosso, cor escura, com olhos cinzas e cabelos vermelhos,  ignóbil,  insolente e orgulhoso, é surdo e só pode ser governado pelo chicote. O caminho do bem e da verdade é uma luta constante contra o cavalo ignóbil, que tende a desobedecer e atormentar o andar da biga, mordendo e atacando o cavalo branco. A alma assim oscila: quando o cocheiro puxa com força os freios do cavalo ignóbil e o açoita, este se acalma e o obedece, o cocheiro então abranda sua fúria e o cavalo ignóbil volta a desviar a alma de seu percurso. O cocheiro deverá então castigar o ignóbil com maior força, puxando o freio a ponto de arrancar os dentes do animal, cobrir sua língua e mandíbulas com sangue, forçar suas pernas ao chão e puní-lo com o chicote violentamente. Só depois de tamanha violência ser muitas vezes repetida, o cavalo negro irá então rebaixar-se de medo diante ao outro, e a alma poderá traçar seu caminho pela verdade, com humildade e temperança.


sábado, 22 de janeiro de 2011

A Física e a Filosofia de Heisenberg

Em "Physics and Philosophy", Heisenberg faz com que vejamos os erros da ciência e da filosofia do nosso século. Ao virar a última página de sua obra, fiquei com perguntas que o autor, lá no longínquo 1959, não poderia talvez esperar que seu texto provocasse. Em que momento deixamos de formar cientistas com formação profunda em filosofia, com interesse genuíno em arte e aptos para falar do mundo fora da idealização científica?  Em que momento deixamos de formar filósofos aptos a dialogar com a ciência, a buscar na ciência inspiração, motivação e conteúdo para seus trabalhos, como todos os grandes filósofos, de Aristóteles a Kant, sempre fizeram?

Heisenberg conta-nos um pouco sobre o que ele espera dos próximos 50 anos. 50 anos estes que já passaram. Fala da linguagem, da lógica, da matemática e da forma com que elas relacionam-se com a realidade. Escreve-nos sobre rompimentos (e alguns acertos) entre a física quântica e Kant, da ruptura entre a física do século XX e toda filosofia antes dela, e, acima de tudo, conta-nos porque os ensinamentos de tal ciência deveriam provocar uma divisão de águas e uma revisão das nossas pretensões de aplicar uma mesma linguagem precisa, lógica e matemática para descrever todos os fenômenos, em todos os campos e todas as áreas. Heisenberg esperava que uma nova tendência pudesse emergir da ciência, como tantas outras vezes na história da humanidade, e pudesse contaminar  também o pensamento filosófico. Então, a filosofia viraria os seus olhos não para a precisão da linguagem científica clássica, em uma busca de "exatidão filosófica", mas para a ambiguidade da linguagem da física moderna. Para Heisenberg a física do século XX provara que tal ambiguidade é capaz de descrever a realidade, de tocar o real, com muito mais sucesso, de forma muito mais estável, do que os modelos clássicos idealizados. O mundo é mais rico e caótico do que supunha a pretensão racionalista da física-matemática.

Heisenberg, em 1959, ecoa a Murdoch de 1992. Lembra-nos que a geração anterior a minha não fez seu dever de casa. A filosofia fechou seus olhos para a revolução científica do século passado. Pouco dela discutiu, pouco dela se atraveu a debater. E a própria ciência, mesmo hoje depois dos experimentos de Aspect que, em prática, elegeram a interpretação de Copenhagem para a mecânica quântica (a interpretação defendida por Heisenberg) como a única interpretação consistente com os dados experimentais, pretende supor que o que se passa no mundo quântico não afeta o "nosso mundo real", de cérebros, computadores e bolas de futebol, não diz respeito a uma "realidade relevante", mas é como um Wonderland de Alice, que pode ser fechado em um livro e enfiado na prateleira. Mas o físico alemão lembra-nos que as equações quânticas possuem soluções que não existem nas equações clássicas, e por isso tais soluções, mesmo no limite clássico, não possuem correspondência com nada do que teorizávamos como "nosso mundo real". Nenhuma macro-molécula, nem mesmo a serotonina no seu cérebro, poderia ser "real" sem supor uma estrutura quântica por trás, pois nem mesmo os átomos, dos quais ela é feita, seriam estáveis sem o caos e a imprecisão da realidade quântica. Não há como explicar a "realidade" da serotonina sem usar a mecânica quântica. E mesmo assim supomos não precisar desta para falarmos do que é, do que não é, do que faz o ser e o não-ser.

Há muito trabalho para ser feito. Há muita coisa para ser criada. Os últimos 50 anos foram silentes demais e hoje pagamos o preço. No vácuo deixado pela filosofia e ciência contemporânea, os únicos que ousaram falar do quântico, fizeram de forma irresponsável para promoção pessoal. A mecânica quântica não é uma teoria de espiritualismo, não abre espaço para o "poder da mente", ou para um "criador". Não é a janela na física para a pseudo-ciência, ou para o relativismo. A física quântica aponta para o absoluto: há sim algo lá fora, independente de nós. A diferença é que este algo é muito mais estranho que Newton supunha, é impossível de ser compreendido com uma linguagem precisa, é um algo tocado pela ambiguidade. Ela aponta para uma "coisa-em-si" que é pura potência, um fundamento último que não tem análogo materialista. Que a filosofia e a ciência pretendam fechar os olhos para este novo modo de compreender o mundo é um fenômeno que não faz mais do que retratar os nossos tempos: tempos de superficialidade,  de hedonismo, de valorização da aparência em detrimento do conteúdo, tempos em que o poder está em um mercado impessoal e global (presente não só em todos os locais, mas em todas atividades humanas), causando homogenização dos indivíduos, do pensamento, e a castração "democrática" que todos testemunhamos. 

São tempos em que nossas universidades formam Zuckerbergs, mas nenhum Heisenberg.


Ciência, Linguagem comum, realidade (...e porque a filosofia e a ciência da segunda metade do século XX foram pelo caminho errado...)

"Estes novos resultados [da física moderna] devem antes de tudo ser considerados como uma séria advertência contra a aplicação um tanto forçada de conceitos científicos a domínios nos quais eles não pertencem. A aplicação de conceitos da física clássica, por exemplo, na química, foi um erro. Portanto, devemos estar menos inclinados a assumir que conceitos da física, mesmo aqueles da teoria quântica, possam ser certamente aplicados em todas as áreas da biologia ou de outras ciências. Ao contrário, devemos manter as portas abertas para a entrada de novos conceitos mesmo naquelas partes da ciência em que os velhos conceitos foram úteis para a compreensão dos fenômenos. Especialmente nos pontos em que a aplicação dos velhos conceitos era um tanto forçada ou parecia não totalmente adequada aos problemas, devemos evitar qualquer conclusão apressada.

Além disso, uma das características mais importantes do desenvolvimento e da análise da física moderna é a experiência que conceitos da linguagem comum, vagamente definidos como são, parecem ser mais estáveis ao longo da expansão do conhecimento que os termos precisos da linguagem científica, derivados como idealizações a partir de grupos de fenômenos muito limitados. Este é até um fato não surpreendente, já que os conceitos da linguagem comum são formados a partir do contato imediato com a realidade; eles representam a realidade. É verdade que não são muito bem definidos e podem, portanto, também sofrer mudanças ao longo dos séculos, assim como a própria realidade sofreu, mas eles nunca perdem a conexão imediata com o real. Por outro lado, os conceitos científicos são idealizações; eles são derivados de experiências obtidas por equipamentos sofisticados e são definidos precisamente através de um sistema de axiomas. Somente por tais definições precisas é possível conectar estes conceitos com um esquema matemático e derivar matematicamente a infinita variedade de possíveis fenômenos em tal campo de estudo. Mas por tal processo de idealização e definição precisa, a conexão imediata com a realidade é perdida. Os conceitos ainda correspondem estreitamente ao real naquela parte da natureza que foi objeto da pesquisa. Porém a correspondência pode ser perdida nas partes que contêm outros grupos de fenômenos.

Ao manter em mente a intrínseca estabilidade dos conceitos da linguagem comum no processo do desenvolvimento científico, vê-se que - depois da experiência com a física moderna - nossa atitude com relação a conceitos como a mente, ou a alma humana, ou a vida, ou Deus, devem ser diferentes daquela atitude do século XIX, pois estes conceitos pertencem à linguagem comum e têm portanto alguma conexão com o real. É verdade que tais conceitos não são bem definidos em termos científicos e suas aplicações podem levar a várias contradições, no momento talvez tenhamos que tomar tais conceitos como são, sem podermos analisá-los; mas ainda assim eles tocam a realidade. Pode ser útil lembrar que mesmo na parte mais precisa da ciência, a matemática, não podemos evitar o uso de conceitos que envolvem contradições. Por exemplo, é muito bem conhecido que o conceito do infinito leva a contradições já analisadas, mas é impraticável construir a maior parte da matemática sem tal conceito.

A tendência geral do pensamento humano no século XIX foi em direção a um aumento de confiança no método científico e em termos racionais precisos, levando a um ceticismo com relação aos conceitos da linguagem comum que não se encaixam no modo restrito do pensamento científico - por exemplo, aqueles da religião. A física moderna pode, em diversos modos, ter aumentado tal ceticismo; mas ao mesmo tempo ela virou-o contra a superestima dos conceitos científicos precisos, contra a visão excessivamente otimista com relação ao progresso em geral, e finalmente contra o próprio ceticismo. O ceticismo contra conceitos científicos não implica que deve haver um limite definido para a aplicação do pensamento racional. Ao contrário, podemos dizer que o homem talvez tenha uma habilidade para entender, em um certo sentido, ilimitada. Mas os conceitos científicos existentes cobrem sempre somente uma parte muito limitada da realidade, e a outra parte  que não foi ainda entendida é infinita. Sempre que procedemos do conhecido para o desconhecido devemos esperar compreender, mas também podemos ter que aprender ao mesmo tempo um novo sentido de "compreender". Sabemos que qualquer compreensão deve ser baseada, em última análise, na linguagem comum porque somente com ela podemos estar certos de tocar a realidade e, portanto, devemos ser céticos sobre o ceticismo com relação à tal linguagem e a seus conceitos essenciais. Devemos usar tais conceitos como sempre foram usados. Deste modo a física moderna talvez tenha aberto a porta a uma forma mais ampla de olhar a relação entra a mente humana e a realidade."

Werner Heisenberg
(Traduzido livremente de "Physics and Philosophy", Harper and Brothers 1958, pg 199-202)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Linguagem, Lógica e Realidade

A passagem seguinte é um trecho do Capítulo X do livro de Heinsenberg em que ele cita Fausto de Goethe. A tradução de Heisenberg é minha. A outra, não ousaria fazê-la. Uso, ao invés, a tradução de Antônio Feliciano de Castilho (Fausto, Quadro V Cena III).

"A análise lógica da linguagem envolve o perigo da simplificação. Na lógica, a atenção é focada a estruturas muito específicas, conexões precisas entre premissas e deduções, padrões simples de raciocínio, e demais estruturas da linguagem são completamente negligenciadas. Estas outras estruturas podem emergir de associações entre certos significados; por exemplo, um significado secundário de uma palavra que passa somente vagamente através da mente quando a palavra é ouvida pode contribuir essencialmente para o conteúdo de uma sentença. Como toda palavra pode causar diversos movimentos apenas semi-conscientes na nossa mente, podemos representar parte da realidade com a linguagem de modo muito mais claro que pelo uso de padrões lógicos. Por isso os poetas objetaram tanto à ênfase na linguagem e no pensamento em termos lógicos, que - se eu os interpreto bem - pode fazer a linguagem menos apta para seus propósitos. Lembremos por exemplo as palavras de Goethe quando Mefistófeles fala ao jovem estudante:
Foge a vida.
Necessário se faz logo com regra aproveitá-la.
Siga, amiguinho, siga o meu conselho,
que não se há de dar mal.
Antes de tudo
muito ensinamento de lógica [colegium logicum];
por ele é que um novato aprende a enfiar justinho
os pés da mente em botas à espanhola,
que assim é que é seguir, sereno e cauto,
pé ante pé, a via das ciências,
em vez de andar pulando a um lado e a outro,
qual fogo fátuo em chão de cemitério.
Depois, levam-se muitos dias a ensinar-lhe
o que antes de ensinado é já espontaneamente sabido,
como comer, como beber, et coetera;
Naturae donam, sapiência infusa,
mas vulgar, mas sem brilho e sem relevo.
Acode um sábio; espostejou-se a coisa:
'Um, dois, três'. Sim senhor, é o que lhe digo.
Na verdade nossa sutil rede de pensamentos,
é como o tecelão, quando se esmera
em obra de examina: a cada piso que ele na apianha dá, mil fios move;
voa, indo e vindo a lisa lançadeira;
no ordume a trama às cegas se entretece;
um golpe só fez tudo.
Ora o filósofo
bate a pata do espírito, e provou-nos
que o que é, deve ser; sendo o primeiro
isto, e aquilo o segundo, é consequência
ser o terceiro assim, e o quarto assado.
É corolário pois, que suprimidos
o primeiro e o segundo, era impossível
que existissem jamais terceiro e quarto
'Bela demonstração!' proclama à uma
a escola toda...
mas dentre eles nenhum nos saiu tecelão.
Pretende um sábio
conhecer e descrever qualquer vivente:
lança-lhe a garra e avia-o. Tem sem dúvida
todas os fragmentos sem vida dele. Mas o que lhe falta?
Unicamente o seu vivaz liame.
Esta passagem contém uma descrição admirável da estrutura da linguagem e da estreiteza dos simples padrões lógicos."

Werner Heisenberg
(Traduzido livremente de "Physics and Philosophy", Harper and Brothers 1958, pg 170)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

As Galinhas de Deus


"Enfim, quem come jaca e bebe qualquer espécie de cachaça estupora, mas nas horas antes parece ótimo, até chegar o estuporamento. Dizem, nunca vi. Porque na minha frente nunca permiti um cristão misturar indevidos, beber água depois de chupar cana, comer coco tendo tosse. A morte morrida enfeia e dá sentimentos porque é devagar, não é pacífico. Sempre digo, nas festas de rua, quando o povo se junta feito besta de um lado para o outro: olhe as galinhas de Deus. Porque é igual às galinhas do quintal. Quando menas elas espera, ali galinhando no copiar, ali ciscando bendodela com aquela cara de galinha, o dono pega uma, raspa o pescoço bem raspado e sangra num prato fundo, com um vinagrinho por baixo. Quando menas a gente espera, Deus pega um e torce o pescoço e não tem chororô. Mesma coisa. Meu São Lázeo, meu São Ciprião, não adianta nada, que o santo não tem prevalência no destino. A criatura se desmancha-se em elementos. Udenista, pessedista, qualquer. Amaro, já viu muito cabra na agonia, não viu, Amaro? Não tem jeito, quando está dirigindo não gosta de prosa. Não ser quando dá bigu às raparigas. Não semos raparigas, pelo menos eu não sou rapariga, desculpe. Oi Amaro, uh-uh Amaro, ô seu peste, quando um homem fala tu responde. (...)"

João Ubaldo Ribeiro
("Sargento Getúlio", Objetiva 2007, pg 11)


quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O absoluto moral

"A moralidade não é mais um fenômeno empírico como os outros. A moralidade e a religião demitologizada ocupam-se do absoluto, daquela estrutura incondicional que não pode ser abstraída da vida humana, aquilo que Platão expressou no conceito da Forma do bem, e Kant em seu Imperativo Categórico. O que está em questão aqui é algo único, do qual a idéia tradicional de Deus era uma imagem ou metáfora e ao qual ela certamente apontou com eficácia. Pessoas normais, sejam elas religiosas ou não, em sua grande maioria ainda acreditam que certos valores são 'absolutos' e, neste sentido, únicos."

Iris Murdoch
(Traduzido livremente de "Metaphysics as a Guide to Morals", Penguin 1992, pg 412)

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Propósito da Arte

"O propósito da arte não é a libertação de uma ejeção momentânea de adrenalina, mas a construção gradual, ao longo de uma vida, de um estado de admiração e serenidade"

Glenn Gould
(Traduzido livremente do encarte the "A State of Wonder - The Complete Goldberg Variations", Sony Music, 2002)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Os limites do mundo

"Por mais fundo que vás, não encontrarás nunca os confins da alma, e mesmo indo aos limites do mundo, não encontrarás nunca as suas fronteiras."

Heráclito
(Traduzido livremente do italiano a partir de citação de Salvatore Natoli, em "Il Buon Uso Del Mondo", Mondatori, 2010, pg 165)

sábado, 15 de janeiro de 2011

O bom e o difícil

"Sed omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt" (Todas as coisas sublimes são tão difíceis quanto raras).

Espinosa
("Ética" IV, P XLII)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Ciência da vida

"As ciências gozam da prerrogativa da exatidão e, além disso, são um saber cumulativo, suscetível sempre de implementação. O tempo é todo, então, da sua parte e por isso os cientistas não têm pressa. Não é assim com a nossa vida: essa corre sozinha. É portanto necessário um julgamento, um saber de existência que decida sobre a qualidade e o valor antes que ela termine. Se é verdade que o sábio é aquele capaz de deliberar bem sobre as coisas boas e vantajosas para si, não as pode porém considerar de um ponto de vista particular e de modo separado, como por exemplo, quais coisas corroboram para a saúde ou força física, mas sim quais conduzem a um viver bem em sentido total. As ciências são úteis à vida, mas não são suficientes para viver. A vida de cada uma é, de fato, uma só e ou nos realizamos nesta ou nos perdemos. Como disse Eurípedes: 'não é sabedoria o saber'."

Salvatore Natoli
(Traduzido livremente de "Il Buon uso del Mondo", Mondatori 2010, pg 168)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Conexões morais

"O contraste entre estados de ilusão (hábitos egoístas e fantasiosos) e o pensamento sério, honesto e claro sugere uma imagem moral da mente como em relação contínua com uma realidade independente. 'Verdade' não é apenas uma coleção de fatos. 'Veracidade', a busca pela verdade, por uma conexão mais próxima entre o pensamento e a realidade, exige um exercício de virtudes e uma purificação de desejos. A habilidade, por exemplo, de pensar de modo justo sobre o que é o mau, ou de amar uma pessoa desinteressadamente, envolve uma disciplina do intelecto e da emoção. Pensamento, bondade e realidade parecem, portanto, conectados."

Iris Murdoch
(Traduzido livremente de "Metaphysics as a Guide to Morals", Penguin 1992, pg 399)

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Impossibilidade da Metafísica

"Qualquer palavra ou conceito que tenha sido formada no passado através da relação entre o mundo e nós mesmos não são de fato precisamente definidas com respeito a seus sentidos; isto é, não sabemos exatamente quanto irão nos ajudar em encontrar nosso caminho no mundo. Frequentemente sabemos que podem ser aplicados a um vasto conjunto de experiências interiores ou exteriores, mas na prática nunca sabemos precisamente os limites de suas aplicabilidades. Isto é verdade mesmo dos conceitos gerais mais simples, como 'existência' e 'espaço-tempo'. Portanto, nunca será possível, pela razão pura, chegar a uma verdade absoluta."

Werner Heisenberg
(Traduzido livremente de "Physics and Philosophy", Harper and Brothers 1958, pg 92)

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O Físico Quântico não pode comprar a Dedução Transcendental

"Na discussão da interpretação de Copenhagen da teoria quântica enfatizou-se que usamos os conceitos clássicos ao descrevermos nosso equipamento experimental e, de modo mais geral, ao descrevermos aquela parte do mundo que não pertence aos objetos do experimento. O uso desses conceitos, incluindo o espaço, o tempo e a causalidade, é de fato a condição para observar os eventos atômicos e é, neste sentido, a priori. O que Kant não previa era que estes conceitos a priori podem ser as condições para a ciência e, ao mesmo tempo, podem ter somente uma validade limitada. Quando fazemos um experimento, temos que assumir uma cadeia causal de eventos que levam do evento atômico até o aparato de medida e finalmente ao olho do observador; se esta cadeia causal não é assumida, nada poderia ser conhecido sobre o evento atômico. Porém, devemos ainda considerar que a física clássica e a causalidade possuem somente um alcance limitado. Foi este paradoxo fundamental da teoria quântica que Kant não foi capaz de prever. A física moderna levou os juízos sintéticos a priori de Kant da metafísica para a prática: os juízos sintéticos a priori são verdades relativas.  

Se reinterpretarmos o 'a priori' Kantiano deste modo, não há razão para considerar tudo como percepções em vez de coisas em si mesmas. Como na física clássica, podemos falar tanto dos eventos que não observamos quanto daqueles que são observados. Portanto, o realismo prático é uma parte natural da reinterpretação. Em relação à coisa-em-si, Kant argumentara que dela não podemos concluir nada a partir de sua percepção. Esta afirmação tem, como Weizsacker observou, sua analogia formal no fato de que um comportamento não-clássico dos objetos atômicos é possível, apesar do uso dos conceitos clássicos em todos os experimentos atômicos. A coisa-em-si é para o físico quântico - se ele usasse tal conceito - uma estrutura matemática; mas esta estrutura é - ao contrário do que Kant imaginava - indiretamente deduzida da experiência."

Werner Heisenberg
(Traduzido livremente de "Physics and Philosophy", Harper and Brothers 1958, pg 91)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Poder de fazer com que façamos

"Nas sociedades modernas, o poder é tanto mais poder quando menos limita e mais faz com que façamos. Isso significa que o poder é daquele que tem a força de influenciar as condutas sem a necessidade de constringi-las."

Salvatore Natoli
(Traduzido livremente de "Il Buon uso del Mondo", Mondatori 2010, pg 100)

sábado, 8 de janeiro de 2011

Sociedade doente

"Nietzche enfatizou, como se sabe, a grande individualidade; fascinou-se mais do que devia, mais do que a flolofia e a história consentiam. E, porém, quando o lermos, aquilo que devemos levar a sério, considerar com atenção, não é tanto aquilo que ele admirava, mas aquilo que previa e temia: a crescente mediocridade. Hoje não existem mais homens sem nome. Todos os temos, mas somos elementos de uma série, numerados, previstos, agendados, e demarcados. Basta abrir a carteira para entender: deixamos por tudo as traças de nós mesmos, cada vida é etiquetada. Temos muitas identidades: a fiscal, a econômica (cartão de crédito); e as identidades de consumidores: cartões de supermercados, de promoções, descontos, viagens, prêmios e assim por diante. Tudo isso recebe o nome de eficiência, e efetivamente, de um certo ponto-de-vista, funciona. Mas onde foi parar a conciência? Com esta palavra entendo aqui o conhecimento de si e de seu valor superior com relação à funcionalidade social. Mas na sociedade atual, isto é considerado maluquice. A luz da consciência brilha paradoxalmente em seu escuro. A maluquice da patologia transforma-se em sintoma e faz surgir a pergunta: mas e se doente fosse a sociedade? Quem seriam, então, os sãos?"

Salvatore Natoli
(Traduzido livremente de "Il Buon uso del Mondo", Mondatori 2010, pg 44)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Vida de Mula

"Uma volta atrás da outra, interminavelmente, ia a mula, colocando delicadamente suas patas estreitas como as de uma corça sobre o farfalhante leito de bagaço, seu pescoço meneando dócil como um pedaço de mangueira de borracha na coelheira, com os flancos arranhados e as orelhas pendentes e sem vida, e os olhos semicerrados dormitando malevolamente atrás de pálidas pálpebras, aparentemente embaladas pela monotonia de seu próprio movimento. Algum Homero das plantações de algodão deveria cantar a saga da mula e de sua importância para o Sul. Foi ela, mais do que qualquer outra criatura ou coisa, que, fiel à terra quando todo o resto cedia diante da onda inexorável dos acontecimentos, impermeável às condições que abateram os corações humanos devido a sua rancorosa e paceiente preocupação com o presente imediato, resgatou o Sul prostrado de sob o tacão de ferro da Reconstrução e voltou a infundir-lhe orgulho por meio da humildade quase impossível, a despeito de dificuldades desesperadoras, graças a uma paciência absoluta e vingativa. Não se assemelha nem à mãe e nem ao pai e jamais terá filhos e filhas; vingativa e paciente (é fato comprovado que é capaz de labutar de bom grado e com paciência durande uma década, em troca do privilégio de escoicear uma única vez o seu dono); solitária mas sem altivez, autônoma, mas sem vaidade; até sua voz é um escárnio. Proscrita e pária, não tem amigo, esposa, amante ou namorado; solitária e imaculada, não habita coluna nem gruta no deserto, tampouco é atormentada por tentações, flagelada por sonhos ou assaltada por visões; a fé, a esperança e a caridade não fazem parte de seu mundo. Misantrópica, ela se esfalfa durante seis dias da semana em prol de uma criatura que odeia, atada com correias a outra criatura que despreza, e passa o sétimo dia dando e recebendo coices de seus companheiros. Mal compreendida até mesmo por aquela criatura, o negro que a conduz, a mula realiza ações incompreensíveis em ambientes estranhos; ela proporciona alimento não apenas para um raça, mas para toda uma forma de comportamento; dócil, seu legado é cozido e descolado de si, juntamente com sua alma, em uma fábrica de cola. Feia, incansável e perversa, não é movida por razão nem adulação, tampouco pela promessa de recompensa; ela realiza suas tarefas humildes e monótonas sem se queixar, e tem como paga apenas pancadas. Em vida, é arrastada pelo mundo, alvo da zombaria geral; não é chorada, nem honrada, nem cantada; seu esqueleto desajeitado e acusador se desfaz alvacento em meio a latas enferrujadas, cacos de louça e pneus velhos em encostas solitárias enquanto suas carne é levada para as alturas azuladas nas garras dos abutres."

William Faulkner
("Sartoris", Cosac Naify 2010, pg  301-302)

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Olhar para si

"O 'stultus' (estúpido) é acima de tudo aquele que está exposto a todos os ventos, aberto ao mundo externo, ou seja, aquele que deixa que acessem a seu espírito todas as representações que lhe podem ser oferecidas sem ser capaz de analisar aquilo que elas representam, de traçar um divisor de águas, de produzir uma discriminação entre aquilo que é conteúdo de uma representação e os elementos que podemos definir como subjetivos e que estão misturados a tal conteúdo. [...] É aquele que resulta disperso no tempo, que deixa a vida escorrer, e muda continuamente sua própria opinião [...] Próprio disto vem a perpétua mudança dos modos de viver realizados pelo 'stultus'. [... Por isso, para evitar a estupidez] é necessário voltar o olhar, em certo sentido, a si mesmo, é necessário não perder o eu de vista."

Michel Foucault 
(Traduzido livremente de "Ermeneutica del Soggetto", Feltrinelli 2003, pg 115).

A destruição é como qualquer outro covarde

"A destruição é igual qualquer outro convarde. Ela não bate numa pessoa que olha pra ela no olho, a não ser quando chega perto demais. Teu pai sabia disso. Ficou na porta daquele armazém no dia em que os dois nortistas trouxeram os negro para votar neles em 72. Ficou lá, de casaca e chapéu de castor, os braços cruzados, quando os outros já tinham ido embora, vendo os dois fulanos de Missouri juntando a negrada e levando pro armazém, ficou bem na entrada enquanto os nortistas começaram a recuar com as mãos nos bolsos até ficar longe dos negros, xingando ele. E ele ali parado, bem desse jeito. (...) Então, quanto foram embora, se afastando pela rua, o coronel foi para dentro e tirou de lá a urna de voto e colocou ela entre os pés. 'Vocês negros vieram aqui para votar não é? 'diz ele. 'Muito bem, então venham e votem'. E quando eles se afastaram e dispersaram, ele disparou essa pistola danada sobre as cabeças deles umas duas vezes; aí carregou de novo a pistola e foi pela rua até a pensão da senhora Winterbottom, onde os dois caras estavam hospedados. 'Minha senhora', diz ele, erguendo o chapéu, 'tenho uma pequena questão para discutir com os seus hóspedes. Com licença' e coloca de novo o chapéu e sobe a escada firme como se tivesse numa parada. E vai direto até o quarto em que eles estavam sentados atrás de uma mesa, bem diante da porta, com as pistolas na mesa. Quando lá fora ouvimos os três tiros, corremos para ver. A senhora tava lá parada, olhando de boca aberta para a escada, e logo depois desceu o coronel com o chapéu inclinado na cara, calmo como um jurado de tribunal, limpando o paletó com o lenço. E a gente toda parada ali, olhando para ele. Ele parou na frente da senhora Winterbottom e ergueu de novo o chapéu. 'Minha senhora, tive de sujar bastante o seu quarto de hóspedes. Por favor, aceite minhas desculpas, mande sua negra fazer a limpeza e depois diga quanto devo. Peço desculpas mais uma vez, por ter sido obrigado a exterminar verme no seu estabelecimento. Cavalheiros', diz para a gente, 'bom dia'. E então puxou a aba do chapéu sobre o olho e saiu andando. É, Bayard, de algum modo senti inveja daquele nortista, maldito seja se não senti. Um homem pode arrumar uma esposa e viver com ela um tempão, mas no fim das contas nunca viram parentes. Mas o homem que traz a gente para o mundo, ou que tira a gente dele..."

William Faulkner
("Sartoris", Cosac Naify 2010, pg  256)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Moscas e a Vingança

"Aquele que busca a vingança é como a mosca que bate no vidro da janela sem ver que a porta está aberta."

Provérbio Armênio
(citado em "Lady Jane", filme de Robert Guédiguian - 2008)

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Valor Moral

"A escolha do existencialista é separada do outros juízos morais de um modo que a torna odiosa. Se a 'escolha livre', sozinha, confere valor, então tudo que é necessário é apontar um dedo; não há lugar para a luta cognitiva que envolve conceitos morais especializados. Valor não é nem a escolha descontextualizada, nem é, no outro extremo, idêntico a algum tipo de existência preenchida. Não é nem o vazio, nem o pleno. O sol é separado do mundo, mas o ilumina inteiramente."

Iris Murdoch
(Traduzido livremente de "Metaphysics as a Guide to Morals", Penguin 1992, pg 323-324)

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A Liberdade das Regras

"Se uma regra é suficientemente profunda, se é cercada por bastante sentimento, reflexão moral ou "tecido" espiritual, não é realmente uma regra, pois isto é serviço da mais perfeita liberdade; e mesmo assim, dada a fragilidade da natureza humana, sábio é, talvez, quem a considera, e por vezes a sente, como uma regra"

Iris Murdoch
(Traduzido livremente de "Metaphysics as a Guide to Morals", Penguin 1992, pg 380)

domingo, 2 de janeiro de 2011

Sonhos dos Sábios

"... Ele que nao havia esperado que o Tempo e tudo o que nele está contido lhe ensinassem que a finalidade da sabedoria é sonhar alto o bastante para não perder o sonho na própria busca."

William Faulkner
("Sartoris", Cosac Naify 2010, pg  280)

sábado, 1 de janeiro de 2011

Felicidade e Prazer

"O que é melhor nas nossas vidas - os momentos que nos sentimos, como diríamos, mais felizes - são ambos prazerosos e profundamente doloridos. A felicidade não é um sentimento; é um modo de ser. Se focarmos apenas em sentimentos, iremos perder o ponto. Mas eu aprendi essa lição rápido. Às vezes, os momentos mais difíceis e doloridos das nossas vidas são os que possuem mais valor. E eles podem ser os mais valorosos somente porque são os mais difíceis."

Mark Rowlands
(Traduzido livremente de "The Philosopher and the Wolf", for Kindle, 2008)