segunda-feira, 30 de abril de 2012

Sobrevida sem valor

"Aquele que busca a sobrevivência assassinando a humanidade de outros seres humanos sobrevive à morte de sua própria humanidade."

Zygmunt Bauman
(Em "Amor Líquido", trad. Carlos Alberto de Medeiros, Jorge Zahar 2004)

domingo, 29 de abril de 2012

Joguemos fora todos os livros de ética...

[... porque tudo o que precisamos saber sobre moral está aqui:]

"A 'necessidade moral' (essa expressão já é um paradoxo, pois aquilo que responde a uma necessidade, não importa o que seja, é algo diferente da moral) ou simplesmente sua 'conveniência' não podem ser estabelecidas discursivamente, muito menos provadas. A moral nada mais é que uma manifestação de humanidade inatamente estimulada - não 'serve' a propósito algum e com toda certeza não é guiada pela expectativa de lucro, conforto, glória ou auto-engrandecimento. É verdade que ações objetivamente boas - proveitosas e úteis - têm sido muitas vezes realizadas em função do cálculo de lucro do agente, seja para obter graça divina, ganhar o respeito público ou livrar-se da crueldade demonstrada em outras ocasiões. Esses atos, porém, não podem ser classificados como genuinamente morais precisamente por terem sido assim motivados. 
"Nos atos morais 'exclui-se um motivo ulterior'. [...] Essa é mais uma razão pela qual a demanda ética, essa pressão 'objetiva' para que sejamos éticos, emanada do próprio fato de se estar vivo e compartilhando o planeta com outros, é e deve ser silenciosa. Já que a 'obediência à demanda ética' pode facilmente transformar-se (ser deformada e distorcida) num motivo de conduta, essa demanda está em sua melhor forma quando é esquecida e não se pensa nela: sua radicalidade consiste em exigir o que é supérfluo. A imediação do contato humano é sustentada pelas expressões imediatas da vida e não precisa de outros apoios, nem de fato os tolera. Em termos práticos, ela significa que, não importa o quanto um ser humano possa ressentir-se por ter sido abandonado (em última instância) à sua própria deliberação e responsabilidade, é precisamente esse abandono que contém a esperança de um convívio moralmente fecundo. A esperança - não a certeza. A espontaneidade e a soberania das expressões de vida não respondem pela conduta resultante como sendo a escolha eticamente adequada e louvável entre o bem e o mal. A questão, porém, é que erros crassos e escolhas acertadas surgem da mesma condição - assim como os covardes impulsos de correr em busca de proteção que as ordens peremptórias obrigatoriamente proveem e a coragem de aceitar a responsabilidade. Sem se preparar para a possibilidade de fazer escolhas erradas, é difícil haver uma forma de perseverar na busca da escolha certa. Longe de ser uma grande ameaça à moral (e logo abominável para os filósofos éticos), A INCERTEZA É A TERRA NATAL DA PESSOA ÉTICA E O ÚNICO SOLO EM QUE A MORAL PODE BROTAR E FLORESCER."

[Os grifos são meus, é claro: são os frutos da minha excitação.]


Zygmunt Bauman
(Em "Amor Líquido", trad. Carlos Alberto de Medeiros, Jorge Zahar 2004)


sábado, 28 de abril de 2012

Amor-próprio e amor ao próximo

"Amor-próprio - o que significa isso? O que eu amo 'em mim mesmo'? O que eu amo quando amo a mim mesmo? Nós, humanos, compartilhamos os instintos de sobrevivência com nossos primos animais sejam os próximos, os nem tão próximos ou os bem distantes - mas, quando se trata de amor-próprio, nossos caminhos se separam e seguimos por conta própria.

É verdade que o amor-próprio estimula a gente a se 'agarrar à vida', a tentar a todo custo permanecer vivo, a resistir e enfrentar o que quer que ameace pôr fim à nossa vida de modo prematuro ou abrupto, ou, melhor ainda, a melhorar nosso vigor e aptidão física para tornar efetiva essa resistência. Nisso, contudo, nossos primos animais são mestres e experientes, não menos que os mais dedicados e habilidosos viciados em ginástica e maníacos por saúde. Nossos primos animais (com exceção daqueles domesticados que nós, seus donos humanos, despimos de seus dons naturais para melhor servirem à nossa sobrevivência e não à deles) não precisam de especialistas para lhes dizer como se manterem vivos e em forma. Tampouco precisam do amor-próprio para lhes ensinar que manter-se vivo e em forma é a coisa certa a fazer.

A sobrevivência (animal, física, corpórea) pode viver sem o amor-próprio. Para dizer a verdade, poderia acontecer melhor sem ele do que em sua companhia! Os caminhos dos instintos de sobrevivência e do amor-próprio podem correr paralelamente, mas também em direções opostas... O amor-próprio pode rebelar-se contra a continuação da vida. Ele nos estimula a convidar o perigo e dar boas-vindas à ameaça. Pode nos levar a rejeitar uma vida que não se ajusta a nossos padrões e que, portanto, não vale a pena ser vivida. Pois o que amamos em nosso amor-próprio é o estado, ou a esperança, de sermos amados. De sermos objetos dignos do amor, sermos reconhecidos como tais e recebermos a prova desse reconhecimento.

Em suma: para termos amor-próprio precisamos ser amados. A recusa do amor - a negação do status de objeto digno do amor - alimenta a auto-aversão. O amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido por outros. Se na sua construção forem usados substitutos, eles devem parecer cópias, embora fraudulentas, desse amor. Outros devem nos amar primeiro para que comecemos a amar a nós mesmos. E como podemos saber que não fomos desconsiderados ou descartados como um caso sem esperança, que o amor está, pode estar, estará prestes a aparecer, que somos dignos dele, e assim temos o direito de nos entregar ao amour de soi e ter prazer com isso? Nós o sabemos, acreditamos que sabemos e somos tranquilizados de que essa crença não é um equívoco quando falam conosco e somos ouvidos, quando nos ouvem com atenção, com um interesse que sinaliza uma presteza em responder. Então concluímos que somos respeitados. Ou seja, supomos que aquilo que pensamos, fazemos ou pretendemos fazer é levado em consideração. Se os outros me respeitam, então obviamente de haver 'em mim' - ou não deve? - algo que só eu lhes posso oferecer. E obviamente existem esses outros - não existem? - que ficariam satisfeitos e gratos por isso lhes ser oferecido. Eu sou importante e o que penso e digo também é. Não sou uma cifra, facilmente substituída e descartada. Eu 'faço a diferença' para outros além de mim. O que digo e sou e faço tem importância - e isso não é apenas um vôo da minha fantasia. O mundo à minha volta seria mais pobre, menos interessante e promissor se eu subitamente deixasse de existir ou fosse para outro lugar.

 Se isso é o que nos torna objetos legítimos e adequados do amor-próprio, então a exortação a 'amar o próximo como a si mesmo' (ou seja, ter a expectativa de que o próximo desejará ser amado pelas mesmas razões que estimulam nosso amor-próprio) evoca o desejo do próximo de ter reconhecida, admitida e confirmada a sua dignidade de portar um valor singular, insubstituível e não-descartável. A exortação nos leva a pressupor que o próximo de fato representa esses valores - ao menos até prova em contrário. Amar o próximo como amamos a nós mesmos significaria então respeitar a singularidade de cada um - o valor de nossas diferenças, que enriquecem o mundo que habitamos em conjunto e assim o tornam um lugar mais fascinante e agradável, aumentando a cornucópia de suas promessas."

Zygmunt Bauman
(Em "Amor Líquido", trad. Carlos Alberto de Medeiros, Jorge Zahar 2004)

sexta-feira, 27 de abril de 2012

O Fascínio da Rosa

"O amor pode ser, e frequentemente é, tão atemorizante quanto a morte. Só que ele encobre essa verdade com a comoção do desejo e do excitamento. Faz sentido pensar na diferença entre amor e morte como na que existe entre atração e repulsa. Pensando bem, contudo, não se pode ter tanta certeza disso. As promessas do amor são, via de regra, menos ambíguas do que suas dádivas. Assim, a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar. E o fascínio da procura de uma rosa sem espinhos nunca está muito longe e é sempre difícil de resistir."

Zygmunt Bauman
(Em "Amor Líquido", trad. Carlos Alberto de Medeiros, Jorge Zahar 2004, pg 12)


quinta-feira, 26 de abril de 2012

Desgraça pós-moderna

"Se obscuros e monótonos dias assombraram os que procuravam a segurança, noites insones são a desgraça dos livres."

Zygmunt Bauman
(Em "O Mal-estar da Pós-Modernidade", trad. Mauro Gama, Jorge Zahar 1998, pg 10)

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Grandes ideias nada inocentes

"Os grandes crimes, frequentemente, partem de grandes ideias. Poucas grandes ideias se mostram completamente inocentes quando seus inspirados seguidores tentam transformar a palavra em realidade - mas algumas quase nunca podem ser abraçadas sem que os dentes se descubram e os punhais se agucem."

Zygmunt Bauman
(Em "O Mal-estar da Pós-Modernidade", trad. Mauro Gama, Jorge Zahar 1998, pg 13)

terça-feira, 24 de abril de 2012

Felicidade impossível

"Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento da psiquê desde o início. Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, mesmo que tal programa esteja em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado até o fim; todas as leis do universo são contrárias a ele. Ficamos inclinados a dizer que a intenção do homem em ser ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência instantânea) das maiores necessidades, satisfação esta que é, por sua natureza, possível apenas como um evento esporádico. Quando uma situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga no tempo, ela produz somente um ligeiro sentimento de contentamento. Somos assim feitos de modo a só podermos encontrar prazer intenso a partir de um contraste e muito pouco de um estado de coisas."

Sigmund Freud
(Traduzido livremente de "Civilization and its discontents", W.W.Norton 1962, pg 23)


segunda-feira, 23 de abril de 2012

Uma relato pela humildade

"Minha mãe sempre me alertou para não pensar que eu poderia prever ou controlar o futuro. Um dia ela contou-me o incidente que a convertera para esta crença. Dizia respeito à sua irmã, Sabina, sobre a qual ela ainda fala, mesmo que mais de sessenta e cinco anos tenham se passado desde que ela a viu pela última vez. Sabina tinha dezessete. Minha mãe, que a idolatrava assim como os irmãos mais novos por vezes idolatram os mais velhos, tinha quinze. Os nazistas tinham invadido a Polônia e meu pai, da periferia pobre da cidade, mudara-se para o subterrâneo e, como já disse, acabaria depois em Buchenwald. Minha mãe, que não conhecia ele ainda, vinha da parte rica da cidade e fora mandada para um campo de trabalhos forçados. Lá ela virou enfermeira, cuidava de pacientes sofrendo de tifo. A comida era escarça, e a morte aleatória parecia sempre próxima. Para ajudar a proteger a minha mãe dos perigos permanentes de sua função, Sabina concordou com um plano. Ela tinha um amigo que era membro da Polícia Judia - um grupo, geralmente desprezado pelos prisioneiros, que obedecia aos comandos dos alemães e ajudava a manter a ordem no campo. O amigo de Sabina ofereceu-se para se casar com ela - no papel somente - de modo que Sabina poderia obter alguma proteção com tal posição. Pensando que esta proteção poderia estender-se à minha mãe, Sabina concordou. Por um tempo até que funcionou. Então algo aconteceu e os nazistas de repente voltaram-se contra a Polícia Judia. Eles mandaram um número de oficiais para a câmara de gás junto de suas esposas - incluindo o marido de Sabina e a própria Sabina. Minha mãe hoje viveu por muito mais anos na ausência de Sabina do que em sua presença, mas a morte de sua irmã ainda a aflige. Para ela, esta história mostra que o esforço de se traçar planos é inútil, que não faz nenhum sentido planejar. Eu não concordo. Penso que fazer planos é importante, desde que os façamos com os olhos abertos. Mas a experiência da minha mãe ensinou-me que devemos identificar e apreciar a boa sorte que nós temos e reconhecer os eventos aleatórios que contribuem para o nosso sucesso. Ela também ensinou-me a aceitar aqueles eventos fortuitos que podem nos causar sofrimento. E, acima de tudo, ensinou-me a apreciar a ausência da má sorte, a ausência do que é capaz de nos levar para baixo, a ausência de doenças, da guerra, da fome e de todos os acidentes que - ainda - não nos atingiram."

Leonard Mlodinow
(Traduzido livremente de "The Drunkard's Walk", Pantheon Books 2008, pgs 218-219 )

domingo, 22 de abril de 2012

O Fundamento da Natureza

"O acaso é mais fundamental que a causalidade."

 Max Born
(Traduzido livremente de "Natural Philosophy of Cause and Chance", Clarendon Press, 1948, p. 47)

sábado, 21 de abril de 2012

The Confirmation Bias


"Quando estamos em busca de uma ilusão - ou sempre que temos uma nova ideia - ao invés de procurarmos por modos de provar que estamos errados, normalmente tentamos provar que estamos corretos. Os psicólogos chamam isto de 'viés da confirmação' [confirmation bias], um dos maiores entraves na nossa habilidade de reconhecer a aleatoriedade. 

[...]

O viés da confirmação tem muitas consequências indesejáveis na vida cotidiana. Quando um professor inicialmente acredita que um determinado estudante é mais esperto, ele focará de modo seletivo naquelas evidências que tendem a confirmar a sua hipótese (1). Quando um empregador entrevista um candidato ao emprego, ele tipicamente forma uma primeira impressão e passa o resto da entrevista procurando informações que a suportem (2). Quando consultores são avisados previamente de que o problema do cliente é difícil, eles tendem a concluir que assim é, mesmo quando o problema tenha na verdade uma dificuldade não superior à média dos demais (3). E quando pessoas interpretam o comportamento de alguém que é membro de uma minoria, eles o fazem no contexto de estereótipos pré-concebidos (4).

O cérebro humano evoluiu para ser muito eficiente em reconhecimento de padrões, mas como o viés da confirmação mostra, focamos nas evidências e padrões que confirmam e não que minimizam nossas conclusões falsas. Mesmo assim, não precisamos de ser pessimistas, pois é possível superar nossos prejuízos. Um modo de começar é compreender que eventos fortuitos também produzem padrões. E é um outro grande passo se aprendermos a questionar nossas percepções e nossas próprias teorias. Finalmente, deveríamos aprender a gastar tempo procurando por evidências de que estamos errados na mesma medida do tempo em que permanecemos procurando por evidências de que estamos certos."

Leonard Mlodinow
(Traduzido livremente de "The Drunkard's Walk", Pantheon Books 2008, pg 192)


Referências:

(1) Matthew Rabin, “Psychology and Economics” (white paper, University of California, Berkeley, September 28, 1996).
(2) E. C. Webster, "Decision Making in the Employment Interview" (Montreal: Industrial Relations Centre, McGill University, 1964).
(3) Beth E. Haverkamp, “Confirmatory Bias in Hypothesis Testing for Client-Identified and Counselor Self generated Hypotheses,” Journal of Counseling Psychology 40, no. 3 (July 1993): 303–15.
(4) David L. Hamilton and Terrence L. Rose, “Illusory Correlation and the Maintenance of Stereotypic Beliefs,” Journal of Personality and Social Psychology 39, no. 5 (1980): 832–45;
     Galen V. Bodenhausen and Robert S. Wyer, “Effects of Stereotypes on Decision Making and Information-Processing Strategies,” Journal of Personality and Social Psychology 48, no. 2 (1985): 267–82;
     C. Stangor and D. N. Ruble, “Strength of Expectancies and Memory for Social Information:  What We Remember Depends on How Much We Know,” Journal of Experimental Social Psychology 25, no. 1 (1989): 18–35.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

O contrário do que se pensa

"Gostamos das pessoas menos pelo bem que nos fizeram do que pelo bem que lhes fizemos."

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz", tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 129)

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O abismo além da superfície

"Há um vasto abismo de aleatoriedade e incerteza entre a criação de um grande romance - ou uma peça de joalheria ou um biscoito de chocolate - e a presença de enormes pilhas destes romance - ou jóias ou biscoitos - na frente de milhares de lojas espalhadas pelo mundo. É por isto que as pessoas de sucesso em todos os campos são quase sempre os membros de um único conjunto: o conjunto daqueles que não desistem. Muito do que ocorre conosco - sucesso nas nossas carreiras, nos nossos investimentos e nas nossas decisões de vida, tanto as maiores quando aquelas mais insignificantes - é resultado de fatores aleatórios na mesma medida que da nossa habilidade, preparação e dedicação ao trabalho. Assim, a realidade que percebemos não é o reflexo direto das pessoas e circunstâncias que estão por trás dela, mas é apenas uma imagem borrada pelo efeito de randomização daquilo que é imprevisível ou proveniente de forças externas. Isto não significa dizer que a habilidade não importa - é um dos fatores que aumentam a chance do sucesso - mas a conexão entre ações e resultados não é tão direta quanto gostaríamos de acreditar. Por isso, nosso passado não é tão fácil de entender, nem nosso futuro é fácil de predizer, e em ambos os casos seremos beneficiados se olharmos além das explicações superficiais."

Leonard Mlodinow
(Traduzido livremente de "The Drunkard's Walk", Pantheon Books 2008, pg 11)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

O que a invenção da roleta é capaz de provar


"A existência das roletas é uma excelente evidência que legitima a inexistência de gurus psíquicos, pois em Monte Carlos se você apostar 1 dólar em um número na roleta e a bolinha terminar ali, a casa pagará 35 dólares além do seu dólar inicial. Se os gurus realmente existissem, você os veria em lugares assim, gritando, dançando e empurrando carrinhos de dinheiro na rua, em vez de vê-los em Web sites, com nomes como Zelda Que Sabe Tudo e Vê Tudo, e oferecendo 24 horas de conselhos amorosos, em franca competição com outros 1.2 milhões de Gurus da Web (de acordo com o Google)"

Leonard Mlodinow
(Traduzido livremente de "The Drunkard's Walk", Pantheon Books 2008, pg 86)

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Na arte, más aulas, melhor não tê-las.

"Parece-me que muitas aulas de literatura acabam mal porque os professores, não intencionalmente ou até mesmo intencionalmente, dão a impressão de que os escritores são como idiotas sofrendo da síndrome de savant: eles realmente querem dizer coisas abstratas, teóricas, filosóficas, mas por algum motivo não são capazes de fazê-lo. Então eles criam estes objetos dos quais o significado último, a relevância e o valor vêm somente depois de serem submetidos à análise literária dos críticos, que então traduzem aquele trabalho em termos filosóficos, teóricos. E este é de algum modo a utilidade final, o propósito, o significado da obra. Em quantas aulas de literatura vocês ouviram a pergunta "O que esta obra significa?". Como se a mera leitura da obra não tivesse em si nenhum significado! Ou, pior ainda, "O que o autor está tentando dizer?" Tentando... Vocês presenciaram estas atitudes, não? Bem, isto é papo furado! Absolutamente, um "nonsense"! Na presença de tais atitudes, sua habilidade de ler uma obra literária está de fato sendo destruída. Eu suspeito que a razão do cinema ser hoje em dia a forma de arte mais popular na nossa cultura é que tão poucas pessoas tiveram aulas de cinema. Por isso eles ainda são capazes de ter uma resposta estética à projeção de um filme."

Robert Olen Butler
(Traduzido livremente de "From where you dream", e-book formato EPUB, posição 163)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Sonho em vida

"Nunca durmo: vivo e sonho, ou antes, sonho em vida e a dormir, que também é a vida. Não há interrupção em minha consciência: sinto o que me cerca se não durmo ainda, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. Assim, o que sou é um perpétuo desenrolamento de imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre de exteriores, umas postas entre os homens e a luz, se estou desperto, outras postas entre os fantasmas e a sem-luz que se vê, se estou dormindo. Verdadeiramente, não sei como distinguir uma coisa da outra, nem ouso afirmar se não durmo quando estou desperto, se não estou a despertar quando durmo". 

Fernando Pessoa
("Livro do desassossego", São Paulo, Cia de Bolso 2006, pg 323)

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Voo solitário

"Nenhum pássaro atinge as maiores alturas se ele voa com as próprias asas."

William Blake
(Traduzido livremente de "The Marriage of Heaven and Hell", em "Works of William Blake", Kindle edition, Kindle location: 1550)

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Abrangências

"O pensamento sempre possui sua eficácia e todo e qualquer incidente é moral."

Nathaniel Hawthorne
(Traduzido livremente de "Wakefield" em "Complete Works of Nathaniel Hawthorne", Delphi Classics - Kindle location 36612)

terça-feira, 10 de abril de 2012

Sabe o que é escrever?

"Sabe o que é escrever? Uma antiga e muito vaga mas ciumenta prática, cujo sentido jaz no mistério do coração. Quem a cumpre integralmente, se retira."

Stéphane Mallarmé
(Como citado por Barthes em "A Preparação do Romance", vol II, trad. Leyla Perrone Moysés, Martins Fontes 2005, pg 201)

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Tempos de e-burrice

"Antes havia debates para ver quem tinha razão. Hoje, todos têm razão e ai daquele que criticar tendências em nome de critérios e paradigmas seculares da arte. A inteligência foi substituída pela sacralização da irrelevância massificada; a própria ideia de 'estética' é considerada por muitos como individualismo neoconservador, autoritário, produzindo parâmetros repressivos. A libertação da tutela dos chamados 'maîtres à penser', dos seres que nos guiavam orgulhosamente para algum Sentido foi uma coisa boa, mas abriu as portas para um vale-tudo formal que desqualifica qualquer tentativa de crítica literária, vista como um ataque contra a liberdade da estupidez."

Arnaldo Jabor
(Em sua coluna de 27/03/2012 no Estadão)

domingo, 8 de abril de 2012

Que fez o diabo à imagem do homem

[ Satã, à vista do Jardim do Éden, onde tentará executar sua missão contra Deus e que resultará na queda do homem, cai em dúvidas: o medo, a inveja, a desesperação...]


"O que, se não a oferenda de graças, poderia ser mais banal
A mais fácil das retribuições, pagá-lo em gratidão,
Tão devida! Mas todo o seu bem em mim transformou-se em mal
E na malícia, elevado a tais posições, rejeitei a sujeição,
Pensei que ainda mais um passo à cimeira
Levar-me-ia a maiores alturas, até assim liquidar
A imensa dívida de gratidão que não conhece fronteira,
Dívida à minha alma tão opressiva,
Sempre sendo paga, mas sempre sendo devida;
Esquecido de que dele sempre recebi,
Não compreendi que a uma mente agradecida,
A dívida não pesa, mas é de pronto compensada,
Devida mas ao mesmo tempo debitada:
Onde está, nisto tudo, tamanha opressão?
Oh, se este poderoso Destino tivesse feito
De mim Anjo inferior, eu teria então nos céus
Feliz permanecido; sem carregar no coração
Esta desmedida esperança que desperta a ambição.
Mas o que digo? Algum outro Poder tão grande
Teria do mesmo modo em meu lugar procedido
E eu, ainda que inferior, para o seu lado seria seduzido;
E pois outros Poderes tão elevados quanto eu
Teriam, por sua vez, a todas tentações resistido,
sem deixar-se cair em semelhante e nefasto breu.
Não tinha eu este mesmo poder de, livre, nos céus permanecer?
Tinha sim: pois então quem ou o que acuso por minha mal-andança?
O amor dos céus que a todos fora concedido em total concordância?
Pois que seja então este amor amaldiçoado, amor ou ódio,
Para mim é o mesmo, ambos trazem eterno desgosto.
Não, amaldiçoado seja eu; já que contra a divina vontade,
Escolhi livremente o que agora tão justamente sofro;
Ai de mim, miserável! Para onde devo fugir,
Deste infinito sofrimento, deste infinito desespero?
Seja qual for o caminho, é o inferno; pois eu sou o inferno;
E no mais fundo para mim resta sempre o ainda mais profundo
Pronto a devorar-me e a me cobrir com seu negro véu,
Que o inferno que agora sofro parecerá a mim um céu."

John Milton
(Traduzido livremente de "Paradise Lost", Livro IV, linhas 45-78)

sábado, 7 de abril de 2012

Os campos de concentração



"Cada vez penso com maior convicção que uma pessoa, só pelo fato de fazer aniversário, já é um malvado. As diversas idades de um homem, eu as denominaria de campos de concentração A cada ano, um arame farpado eletrificado a mais. Trinta já é Auschwitz. Falo sério."

Do filme de Mariano Cohn e Gastón Duprat, "Querida, voy a comprar cigarrillos y vuelvo" (2011), baseado no conto de Alberto Laiseca.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Juventude em tempos de eclipse



"Eu nunca fui jovem. Só agora que tenho quase 70. E isso é a cara dos nossos tempos de eclipse: que os jovens sejam velhíssimos. Porque é a morte da imaginação."


Do filme de Mariano Cohn e Gastón Duprat, "Querida, voy a comprar cigarrillos y vuelvo" (2011), baseado no conto de Alberto Laiseca.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

A filosofia e o silêncio

"M., a quem se queria fazer falar de diferentes assuntos públicos ou particulares, friamente contestou: todos os dias aumento a lista das coisas sobre as quais não falo; o maior filósofo seria aquele cuja lista fora a mais extensa."

Nicolas Chamfort
(Traduzido livremente de como citado por Enrique Vila-Matas em "Bartebly y compañia", Anagrama 2000, nota 27)

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Não te cases!

"Nunca te cases, meu amigo; é o conselho que te dou. Não te cases antes que não possas dizer a ti mesmo que, na verdade, não há outra coisa a fazer, antes de não estares mais cego de tua paixão pela mulher de tua escolha, antes de ter visto bem claro o seu íntimo; sem isto, enganar-te-ás cruelmente e sem remissão... Do contrário, tudo quanto há em ti de nobre e de grande estará perdido... Enterrar-te-ás em frioleiras... Sim, inteiramente! Não me olhes com esse ar de espanto... Se há em ti alguma promessa de futuro, não tardarás em pôr luto por ela. Sentirás a cada instante que todas as portas estão fechadas para ti, exceto as dos salões onde valerás tanto quanto o primeiro imbecil, o primeiro cortesão que chega... Sim, é assim... - concluiu ele com um gesto bastante significativo.
(...)
Estás surpreendido por me ouvires falar desta maneira? Pois é, vês a tragédia de minha vida. Tu me citas Bonaparte, mas quando prosseguia ele, passo a passo, na direção de seu alvo, teu Bonaparte era livre, só pensava nesse alvo, em atingi-lo. Uma vez ligado a uma mulher, não passas de um forçado preso à sua corrente. Dize adeus à tua liberdade, às tuas aptidões, às tuas esperanças; curva-te sob o remorso de tê-las perdido para sempre. Os salões, os mexericos, os bailes, a vaidade, o nada mundano, tal é o círculo vicioso de que não posso mais sair. Eis que parto para a guerra, para a maior das guerras, e nada sei, não sirvo para nada. Sou muito amável e muito cáustico; também me ouvem com agrado em casa de Ana Pavlovna. Ah! essa sociedade tola, sem a qual minha mulher não pode passar, essas mulheres que... Se soubesses o que são no íntimo todas as mulheres distintas... e as outras! Meu pai tem razão. Egoísta, vaidosa, limitada, radicalmente nula, tal aparece a mulher, quando se mostra à luz verdadeira. No mundo causa ilusão, mas vista de perto, não é nada, nada, nada!... Não te cases, meu caro, não te cases - concluiu ele."

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz", tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 54-55)

terça-feira, 3 de abril de 2012

O engano

"Ah, a felicidade e a luz andam juntas, por isso supomos que o mundo é alegria; porém a miséria esconde-se e espreita, e assim imaginamos que o mundo dela está livre."

Herman Melville
(Traduzido livremente de "Bartebly the scrivener", Public Domain Books, Kindle edition, location 257-258)

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Del Giudice, literatura, risco e verdade

"Del Giudice contou que, quando começou a escrever 'Lo Stadio di Wimbledon', ele desejava conservar na narrativa a ideia de Bazlen segundo a qual 'já não é possível seguir escrevendo', mas ao mesmo tempo buscava dar a esta negação um giro completo. Sabia que desse modo ele conferiria mais tensão ao seu relato. O que acabou acontecendo a Del Giudice no final de seu romance é fácil de adivinhar: ele viu que todo o livro não era mais do que a história de uma decisão: a de escrever. Incluiu momentos no libro nos quais Del Giudice, através da boca de uma velha amiga de Bazlen, maltrata com extrema crueldade o mítico ágrafo: 'Era maléfico. Passava o tempo a se ocupar do viver alheio, das relações dos outros: em suma, um fracassado que vivia a vida dos demais.' E em outro lugar do romance o jovem narrador fala nestes termos: 'Escrever não é importante, mas não se pode fazer outra coisa'. Deste modo o narrador proclama uma moral que é exatamente contrária àquela de Bazlen. 'Quase timidamente - escrevera Patrizia Lombardo - o romance de Del Giudice opõe-se aos que culpabilizam a produção literária, arquitetônica, por todos os que veneram o silêncio de Bazlen. Entre a futilidade da pura criatividade artística e o terrorismo da negatividade, quiçá haverá um lugar para algo diferente: a moral da forma, o prazer de um objeto bem feito.'

Eu diria que para Del Giudici escrever é uma atividade de alto risco, e neste sentido, no estilo de seus ídolos Pasolini e Calvino, entende que a obra escrita está fundada no nada e que um texto, se quer ter validade, deve abrir novos caminhos e tratar de dizer o que ainda não se disse. Creio que estou de acordo com Del Giudice. Quando se usa a língua para simplesmente obter um efeito, para não ir além do que nos está permitido, incorre-se, paradoxalmente, em um ato imoral. Em "Lo Stadio di Wimbledon" tem-se, por parte de Del Giudice, uma busca ética precisamente na sua luta por criar novas formas. O escritor que trata de ampliar as fronteiras do humano pode fracassar. Em troca, o autor de produtos literários convencionais nunca fracassa, não corre riscos, basta-lhe aplicar a mesma fórmula de sempre, sua forma de acadêmico acomodado, sua fórmula de ocultamento."

Enrique Vila-Matas
(Traduzido livremente de "Bartebly y compañia", Anagrama 2000, nota 7)

domingo, 1 de abril de 2012

A melhor obra de Ramón

"A minha melhor obra é arrepender-me da minha obra"

Juan Ramón Jiménez
(Traduzido livremente de como citado por Enrique Vila-Matas em "Bartebly y compañia", Anagrama 2000, nota 54)