domingo, 8 de abril de 2012

Que fez o diabo à imagem do homem

[ Satã, à vista do Jardim do Éden, onde tentará executar sua missão contra Deus e que resultará na queda do homem, cai em dúvidas: o medo, a inveja, a desesperação...]


"O que, se não a oferenda de graças, poderia ser mais banal
A mais fácil das retribuições, pagá-lo em gratidão,
Tão devida! Mas todo o seu bem em mim transformou-se em mal
E na malícia, elevado a tais posições, rejeitei a sujeição,
Pensei que ainda mais um passo à cimeira
Levar-me-ia a maiores alturas, até assim liquidar
A imensa dívida de gratidão que não conhece fronteira,
Dívida à minha alma tão opressiva,
Sempre sendo paga, mas sempre sendo devida;
Esquecido de que dele sempre recebi,
Não compreendi que a uma mente agradecida,
A dívida não pesa, mas é de pronto compensada,
Devida mas ao mesmo tempo debitada:
Onde está, nisto tudo, tamanha opressão?
Oh, se este poderoso Destino tivesse feito
De mim Anjo inferior, eu teria então nos céus
Feliz permanecido; sem carregar no coração
Esta desmedida esperança que desperta a ambição.
Mas o que digo? Algum outro Poder tão grande
Teria do mesmo modo em meu lugar procedido
E eu, ainda que inferior, para o seu lado seria seduzido;
E pois outros Poderes tão elevados quanto eu
Teriam, por sua vez, a todas tentações resistido,
sem deixar-se cair em semelhante e nefasto breu.
Não tinha eu este mesmo poder de, livre, nos céus permanecer?
Tinha sim: pois então quem ou o que acuso por minha mal-andança?
O amor dos céus que a todos fora concedido em total concordância?
Pois que seja então este amor amaldiçoado, amor ou ódio,
Para mim é o mesmo, ambos trazem eterno desgosto.
Não, amaldiçoado seja eu; já que contra a divina vontade,
Escolhi livremente o que agora tão justamente sofro;
Ai de mim, miserável! Para onde devo fugir,
Deste infinito sofrimento, deste infinito desespero?
Seja qual for o caminho, é o inferno; pois eu sou o inferno;
E no mais fundo para mim resta sempre o ainda mais profundo
Pronto a devorar-me e a me cobrir com seu negro véu,
Que o inferno que agora sofro parecerá a mim um céu."

John Milton
(Traduzido livremente de "Paradise Lost", Livro IV, linhas 45-78)