segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O sonho de Winston

"Winston sonhava com sua mãe. (...) 

Ela estava sentada à frente dele, num lugar fundo, com a filha mais jovem nos braços. Winston não lembrava da irmã senão como um bebê fraco, sempre calado, de olhos grandes e vigilantes. Ambas o fitavam. Encontravam-se em algum lugar subterrâneo - no fundo de um poço, ou numa caverna  profunda - mas era um lugar que, apesar de já ser bem mais baixo, submergia cada vez mais. Estavam no salão de um navio que naufragava, e olhavam para ele através da água que escurecia. Ainda havia ar no salão, elas podiam vê-lo e ele podia vê-las, mas todo tempo as duas continuavam afundando, baixando nas águas verdes que, em instantes, ocultariam ambas para sempre. Ele se encontrava no claro enquanto elas eram absorvidas pela morte. Elas estavam no fundo porque ele estava a salvo. Ele sabia disso, assim como elas sabiam, via-se em seus olhos. Mas não havia censura, nem na fisionomia nem no coração das duas, apenas a certeza de que deviam morrer para que ele continuasse vivo, e que aquilo era parte da ordem inevitável das coisas.

Não podia lembrar-se do que sucedera, mas sabia no sonho que de alguma forma a vida de sua mãe e de sua irmã tinham sido sacrificadas pela dele. Era um desses sonhos que, embora retenham o cenário onírico característico, são a continuação da vida intelectual do indivíduo e no qual se toma conhecimento de fatos e idéias que mesmo depois de acordar ainda parecem valiosos. A coisa que agora impressionava Winston era que a morte de sua mãe, quase trinta anos atrás, fora trágica de um modo que não seria hoje possível. A tragédia pertencia a um tempo antigo, à época em que ainda havia vida privada, amor e amizade, e em que os membros de uma família amparavam uns aos outros sem indagar por razões. A lembrança de sua mãe  atingia seu coração porque ela morrera amando-o, enquanto ele era jovem e egoísta demais para corresponder-lhe e porque de certo modo ela se sacrificara a uma concepção de lealdade particular e inalterável. Ele percebia que tais coisas não mais podiam acontecer. Hoje o que havia era medo, ódio, dor, mas nenhuma dignidade, nenhum sentimento profundo ou complexo. Tudo isto lhe pareceu ver lá, nos grandes olhos de sua mãe e sua irmã, olhando-o através da água verde em que afundavam, centenas de braças abaixo de onde ele estava."

George Orwell
(Traduzido livremente de "1984", Penguin Books, 2000, pg 29-30

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Uma previsão

"Certamente estamos entrando em uma era de ditaduras totalitárias - uma era na qual a liberdade de pensamento será, de início, um pecado mortal e, então, uma abstração sem sentido. O indivíduo autônomo será varrido da existência."

George Orwell (1949)
(Traduzido livremente de citação na Introdução a "1984", Penguin Books, 2000)

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Uma História Contada por um Idiota

"Ela teria de morrer, mais cedo ou mais tarde. Morta. Mais tarde haveria um tempo para essa palavra. Amanhã, e amanhã, e ainda outro amanhã arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia, até a última sílaba do registro dos tempos. E todos os nossos ontens não fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco - faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais a sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado."

William Shakespeare
("Macbeth", Trad. Beatriz Viégas-Faria, L&PM Pocket 2003, pg 124)


sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Moral Imaginária

"É tudo uma questão de imaginação. Nossa responsabilidade começa no âmbito da imaginação. Yeats escreveu: Nos sonhos começam as responsabilidades - e é isso mesmo. Considerado de modo inverso, pode ser que a responsabilidade inexista onde não haja imaginação."

Haruki Murakami
("Kafka à Beira-mar", Trad. Leiko Gotoda, Alfaguara 2010, pg 164)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

"Sabe de onde surgiu a idéia de labirinto? Por tudo que nos foi dado a conhecer, a idéia foi inicialmente concebida pelos habitantes da antiga Mesopotâmia. Eles costumavam extrair os intestinos dos animais e prever o futuro de acordo com sua forma. Além de tudo, louvavam a complexidade dessa forma. Pois o intestino é o modelo do labirinto. Ou seja, o arquétipo do labirinto está dentro do nosso próprio corpo. E interage com formas labirínticas externas. Metáfora recíproca. O que existe externamente é uma projeção do que existe em você, e o que existe em você é a projeção do que existe externamente. Assim sendo, muitas vezes, ao pôr um pé no labirinto externo, você está pondo um pé no labirinto existente em você. E isso, na maioria das vezes, é muito perigoso."

Haruki Murakami
("Kafka à Beira-mar", Trad. Leiko Gotoda, Alfaguara 2010, pg 433)

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Elogio da Melancolia

"Estamos aniquilando a melancolia. Inventaram a ciência da felicidade. Livros de autoajuda, pílulas da alegria, tudo cria um "admirável mundo novo" sem bodes, felicidade sem penas. Isto é perigoso, pois anula uma parte essencial da vida: a tristeza. (...) Não sou contra a alegria em geral, claro. (...) Nem romantizo a depressão clínica, que exige tratamento. Mas, sinto que somos inebriados pela moda americana de felicidade. Podemos crer que estamos levando ótimas vidas livres, quando nos comportamos artificialmente como robôs, caindo no conto dos desgastados comportamentos "felizes", nas convenções do contentamento. Enganados, perdemos o espantoso mistério do cosmo, sua treva luminosa, sua terrível beleza. O sonho americano de felicidade pode ser um pesadelo. O poeta John Keats morreu tuberculoso, em meio a brutais tragédias, mas nunca denunciou a vida. Transformou a desgraça em uma fonte vital de beleza. As coisas são belas, porque morrem - ele clamava. A rosa de porcelana não é tão bela como aquela que desmaia e fenece."

Eric G. Wilson
(como citado por Arnaldo Jabor em sua coluna do Estadão: Coluna Jabor 22/2 )

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

(sem)Senso Comum Estético

"Já que o exercício, o treino e o desenvolvimento das nossas habilidades de discriminar entre obras de arte são também atividades estéticas, as propriedades estéticas de uma pintura incluem não somente aquelas propriedades que se encontram ao olharmos para ela, mas também aquelas que determinam como ela deve ser vista por nós. Este fato óbvio não necessitaria ser sublinhado não fosse pela prevalência da consagrada teoria Tingle-Immersion, que nos descreve o modo correto de se relacionar com uma obra de arte como sendo aquele de se despir totalmente das vestes do conhecimento e da experiência (já que estas podem ofuscar a imediação do nosso prazer no contato com a obra) e submergir completamente na obra para julgar sua potência estética pela intensidade e duração da afeição resultante. A teoria é completamente absurda e inútil para lidar com qualquer um dos problemas estéticos importantes; mas tornou-se parte da fábrica do nosso 'sem-senso comum' (common nonsense)."

Nelson Goodman
(Traduzido livremente the "Languages of Art", Bobbs-Merril, 1968 pg 126)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Perfeição imperfeita (na arte mas também na moral!)

"É por tudo isso que gosto de ouvir Schubert enquanto dirijo. Porque, conforme já disse, quase todas as execuções [das obras de Schubert] contém alguma forma de imperfeição. E imperfeições de boa e densa qualidade artística estimulam a consciência, despertam a atenção. Se eu dirigisse ouvindo uma execução perfeita de uma obra também perfeita talvez me viesse a vontade de fechar os olhos e morrer. Mas ao ouvir a Sonata em ré maior, detecto em vez disso os limites da diligência humana. E então compreendo que certo tipo de perfeição só se atinge pelo infinito acúmulo de imperfeições. E isso me dá coragem. Está entendendo o que eu digo?"

Haruki Murakami
("Kafka à Beira-mar", Trad. Leiko Gotoda, Alfaguara 2010, pg 33)

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Tempo de verdade

"
- Você se lembra de uma conversa que tivemos, certa vez, acerca de como guiar um automóvel?
- Oh... não estou bem lembrado.
- Você disse que um mau motorista só estava seguro enquanto não deparava com um outro mau motorista... Pois bem. Encontrei um outro mau motorista, não lhe parece? O que quero dizer é que fui descuidada, ao enganar-me em minha suposição. Julguei que você fosse uma pessoa sincera, coerente. Julguei que isso constituía o motivo de seu orgulho secreto.
- Tenho trinta anos - respondi - Tenho cinco anos a mais do que a idade em que poderia mentir a mim mesmo e chamar a isso honra."

F. Scott Fitzgerald
("O Grande Gatsby", Trad. Brenno Silveira, Record 1953, pg 102)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

A fronteira entre o céu e o mar

"Imagino uma vasta extensão de mar varrida por uma garoa fina. Sou um navegante solitário em pé no convés, e ela é o mar. O céu se reveste de uniforme tonalidade cinza e lá, bem adiante, se junta com o mar, que também está cinzento. É muito difícil distinguir céu de mar. Ou o próprio navegante do mar. Ou as coisas reais das imaginárias."

Haruki Murakami
("Kafka à Beira-mar", Trad. Leiko Gotoda, Alfaguara 2010, pg 33)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Vida na Luta

"Quando se coloca por tempo suficiente uma lâmina cega contra uma pedra de amolar, algo salta - uma quina afiada de fogo; assim,segurem-se as coisas habituais contra a ausência de raciocínio, sem objetivo, tudo misturado, e saltarão numa só chama o ódio, o desprezo. Peguei minha mente, meu ser, objeto velho e rejeitado, quase inanimado, e bati com ele nessas quinquilharias, gravetinhos e palhas, pequenos e detestáveis pedaços de destroços, coisas vis, boiando na superfície oleosa. Levantei-me de um salto. Disse: "Lutar! Lutar!" repeti. É o esforço e a luta, é a guerra perpétua, é o despedaçar e juntar pedaços - esta é a batalha diária, derrota ou vitória, a absorvente perseguição."

Virgina Woolf
 ("As Ondas", Tradução de Lya Luft, Nova fronteira 2004, pg 202)


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Amigos gigantes

"Usamos nossos amigos para medir nossa própria estatura"

Virgina Woolf
 ("As Ondas", Tradução de Lya Luft, Nova fronteira 2004, pg 68)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Se substituires "teologia" por "filosofia", terás Guerzoni como Mefistófoles

"Estudante:
Da teologia quase escolho o estudo.

Mefistófoles:
Mão petendo orientar-vos em falso, contudo.
No que concerne a essa ciência, é terreno
Em que é árduo encontrar-se o termo médio;
Oculta em si tanto veneno,
Mal se distingue do remédio.
Também nisso o que vale é que um só vos adestre,
Jurai pelas palavras só do mestre.
Em geral, ficai só às palavras afeito!
Haveis de entrar, assim, por seguro portal,
No templo da certeza incondicional.
"


J. W. Goethe
(“Fausto”, trad. do alemão por Jenny Klabin Segail, editora 34, 2010, pg  193 - “Quarto de Trabalho)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Lógica Poética

"Na poesia não há contradições. Estas existem apenas no mundo real, não no mundo da poesia. Aquilo que o poeta cria, tem de ser aceito tal como ele o criou. O seu mundo é exatamente como foi feito. Aquilo que o espírito poético gerou precisa ser acolhido pela sensibilidade poética. A análise fria destrói a poesia e não produz nenhuma realidade. Restam apenas destroços, que não servem para nada e apenas estorvam."

J. W. Goethe
(Conversa com Heinrich Luden, 1806)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A era do Homem-Vespa

"Novamente deitado, olhando para o teto, relembrava os últimos anos transcorridos, e os via correr de outonos a páscoas, de aquilões a asfaltos amolecidos, sem ter o tempo de vivê-los - sabendo, de repente, pelos oferecimentos de um restaurante noturno, da volta dos patos selvagens, do fim da proibição da pesca de ostras, ou do reaparecimento das castanhas. Às vezes, também, minha informação sobre o passar das estações devia-se aos sinos de papel vermelho que se abriam nas vitrines das lojas, ou à chegada de caminhões carregados de pinheiros cujo perfume deixava a rua como que transfigurada durante alguns segundos. Havia grandes lacunas de semanas e semanas na crônica do meu próprio existir; temporadas que não me deixavam uma lembrança válida, o rastro de uma sensação excepcional, uma emoção duradoura; dias em que todo gesto me produzia a obsedante impressão de tê-lo feito antes em circunstânciass idênticas - de ter sentado no mesmo canto, de ter contado a mesma história, olhando o veleiro preso no cristal de um pesa-papéis. Quando se festejava meu aniversário em meio às mesmas caras, nos mesmos lugares, com a mesma canção repetida em coro, assaltava-me invariavelmente a ideia de que isto só diferia do aniversário anterior na aparição de uma vela a mais sobre um bolo cujo sabor era idêntico ao da vez precedente. Subindo e descendo a encosta dos dias, com a mesma pedra no ombro, sustinha-me por obra de um impulso adquirido à força de paroxismos -, impulso que cederia cedo ou tarde, numa data que casualmente figurasse no calendário do ano em curso. Mas escapar disto, no mundo que me fora dado pela sorte, era tão impossível como tratar de reviverr, nestes tempos, certas gestas de heroísmos ou de santidade. Caíramos na era do Homem-Vespa, do Homem-Nenhum, em que as almas não se vendiam ao Diabo, mas ao Contador ou ao Comitre. Por entender que era vão rebelar-se, após um desarraigamento que me fez viver duas adolescências - a que ficava do outro lado do mar e a que aqui se contivera -, não via onde achar alguma liberdade fora da desordem de minhas noites, em que tudo era bom pretexto para me entregar aos mais reiterados excessos. Minha alma diurna estava vendida ao Contador - pensava, debochando de mim mesmo -; mas o Contador ignorava que de noite eu empreendia estranhas viagens pelos meandros de uma cidade invisível para ele, cidade dentro da cidade, com moradas para esquecer o dia."

Alejo Carpentier
("Os Passos Perdidos", Martins Fontes 2008, pg 11)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A Liguagem Morta

" Uma brincadeira num nome, uma palavra por outra. Uma semelhança. É tão comum nesses dias. Linguagem é um meio poderoso de propaganda. É muito público e muito secreto ao mesmo tempo. O efeito desta propaganda não é produzido por discursos, artigos e boletins. Penetram na carne e no sangue das massas. Você sabia que nós não temos pessoas pobres? Só pessoas com "rendimento baixo". Nós já não falamos de "questões" como "a questão social", mas de "problemas" que nossos especialistas separam em uma série de detalhes técnicos. Para cada um, eles encontrarão a melhor solução individual. Métodos eficientes. Sim, mas palavras esvaziadas de todo o significado. É uma quebra da linguagem. Uma linguagem morta. Neutra. Invadida por palavras técnicas. A linguagem em que se absorve gradualmente a humanidade. Entende? Vejo um caminhão cinza atravessando a cidade. É um caminhão de painel de aço comum se dirigindo às minas, dois ou três quilômetros das últimas casas. Nem o motorista nem o condutor olham para trás através das janela de observação do caminhão. Estão fatigados. E ainda têm 10 entregas antes que a noite caia. Dez jornadas indo pela cidade em condições terríveis. Tudo mais difícil pois nos primeiros minutos do transporte, eles têm que colocar a máquina a toda potência para abafar os gritos e as sacudidas que quase fazem o caminhão se acabar. Felizmente, rapidamente as coisas ficam quietas e o transporte é sempre feito a tempo. De acordo com a programação. 'Para onde vão os caminhões?', pergunta a criança na janela. Ao anoitecer, a criança vê os veículos alinhados no pátio escolar. Ele vê os motoristas bebendo uma garrafa de bebida alcoólica. Os homens estão exaustos, felizes por terminar o dia que começaram muito cedo, como os outros. Os comboios acabam escrevendo suas contas e colocando-as no relatório diário. A criança vê seu pai, o contramestre, dar um tapinha nas costas de cada homem, e brincar com eles, um por um. O encarregado pensa que se o tempo estiver bom e se não tiver chuva para atolar os caminhões, ele poderá ser capaz de terminar sua tarefa até o fim da semana. E seu superior, o Obersturmbannfürher que emitiu a ordem a 100 km de distância, irá parabenizá-lo pelo bom funcionamento da operação. Se você está aqui para perguntar a cada homem o que ele estava fazendo, ele irá responder, "Tudo está indo como planejado, embora é possível que estejamos um pouco aquém do programado." Ele iria responder usando a antiga morta, neutra, linguagem técnica, que faz dele um motorista de caminhão, um condutor, um subchefe, contramestre, cientista, diretor técnico, um Obersturmbannführer.

Você era a criança na janela?

(...)

A criança na janela era o filho do encarregado Neumann. Ele não quis me falar seu primeiro nome, mas eu sei que "Arie" não foi o único nome que seu pai deu. Os músicos tomaram seus lugares e eu vi a cena do meu sonho. Arie Neumann veio por último, segurando seu violino. Ele continuou de pé, olhando para mim firmemente. Vi um homem ir até a porta mas não consegui falar para ele parar. Eu viu a massa negra de corpos enrolados. Bens. Carga. Vi um mundo de nudez, sob o amarelado, sob a luz, que deslizou num chão ligeiramente inclinado, expondo uma mão, uma perna, uma face estragada, uma boca deformada, sangrando. Dedos agarrando suas roupas íntimas sujas manchadas com urina, vômito, sangue, suor, baba. Líquido. Aqui estava a parte de trás, a cabeça e os braços enterrados sob outros corpos. Lá, um corpo enroscado com outro. E todos estes corpos... Pedaços. Enrolados um sobre outro, desviando o peso da massa para a cova. Todos estes corpos, enrolados, mantidos juntos, mas lentamente se separando do todo. Pesos deslocados. Cada um arrancando gradualmente um abraço humano sufocante. Uma rosto fazendo careta, ficando azul, chocado. E abaixo... A merda. Criancinhas deitadas nas pernas das mães. Homens velhos esqueléticos, pequenas meninas com olhos afundados meninos nus cobertos em contusões. Todas essas criaturas... Pedaços, que tinham nomes. Pedaços. Moïse. Moshe. Meu irmão. Robert. Meu pai. Armand. Miguel. Amos. Hannah. Samuel. Pedaços. Minha mãe. Meu amor. Pedaços. Minha irmã. Simone. Magdalena. Cada um desses corpos gradualmente emergindo deste vasto mar para cair um depois do outro, em pares, em pacotes, até o buraco negro da mina. Escuridão. Um mar de corpos, enterrados, engolidos."
 
 Do filme "A Questão Humana" (La Question Humain) de Nicolas Klotz, 2007.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Mísera Populaça de Filósofos

"(Dançarino) 1
Não vem lá um coro novo?
Ouço tamborins distantes.
Continuai! na cana é o povo
De alcavarões unissonantes

(Mestre da Dança)
Cada um remexe-se, estrebucha,
Faz o melhor que pode.
Pula o corcunda, arfa a gorducha,
Sem que a aparência os incomode

(Rabequista) 2
De morte odeiam-se deveras;
Mísera populaça!
Como a lira de Orfeu as feras,
A cornamusa é que a congraça.

(Dogmático) 3
Que importam críticas, desgabo,
Dúvidas e gritaria?
Deve ser qualquer cousa o diabo;
Se não como é que os haveria?

(Idealista) 4
Da fantasia o rebuliço
Me azoina aqui o juízo todo.
Deveras, se sou tudo isso,
Não sou mais do que um doido.

(Realista) 5
Que chinfrin vulgar e baixo!
Só raiva pode influir-me;
Pela primeira vez não me acho
Aqui sobre os pés firme.

(Supernaturalista) 6
Junto-me ao recreio vosso
Com prazer, como ninguém;
Já que dos demônios posso
Deduzir gênios do bem

(Céptico) 7
Seguindo a chama abaixo, acima,
Creem que o tesouro luz; mas cismo,
Se errôneo com demônio rima,
Que mais me vale o cepticismo."


1 - Alcavarões = espécie de garça que vive entre canas e juntos. Com estas aves estridentes, o "dançarino" introduz um novo grupo: como se verá, filósofos falastrões que não se entendem entre si.
2 - De forma pejorativa, os filósofos, mísera populaça, reconciliados pela cornamusa são comparados às feras amansadas por Orfeu.
3 - Alusão a dogmáticos pré-Kantianos que deduzem a existência de um ser a partir do conceito.
4 - Ao contrário do dogmático para quem o sonho da Noite de Valpúrgis é realidade, o idealista enxerga nesta fantasmagoria uma mera emanação do seu eu, julgando-se um doido.
5 - Sempre firme sobre os pés o realista confessa estar inseguro em face das aparições desta noite.
6 - A apariçao de gênios demoníacos confirma para o "supernaturalista" sua fé no mundo sobrenatural e este deduz daí a existência de "gênios do bem"
7 - O "tesouro" idnicado pela "chama"; que se move "abaixo, acima", sinaliza a existência "demônio" o qual rima com "errôneo", reforçando o ceticismo do personagem.


J. W. Goethe

(“Fausto”, trad. do alemão por Jenny Klabin Segail, editora 34, 2010, pg 484-485 - “Sonho da Noite de Valpúrgis”, notas de Marcus Vinicius Mazzari)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Loucura


"A sanidade é prazerosa e calma, mas não tem a grandeza, nenhuma verdadeira alegria, nem a horrível tristeza que dilacera o coração."

Do filme "Adam - memórias de uma guerra" (Adam Resurrected) de Paul Schrader, 2008.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Filha do Acaso

"A poesia é a grande inimiga do acaso, apesar de ser, também ela, filha do acaso e de saber que o acaso terá, em última instância, a vitória".

Italo Calvino
(Traduzido livremente de "Lezioni Americane", Mondatori, 2002 pg155)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Fruto da Arte

"Em resumo, representações e descrições eficazes requerem invenção. Elas são criativas. Elas informam umas as outras; e elas formam, relacionam e distinguem objetos. Que a natureza imita a arte é um ditado demasiadamente tímido. A natureza é um produto da arte e do discurso."

Nelson Goodman
(Traduzido livremente the "Languages of Art",Bobbs-Merril, 1968 pg 36)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O Êxtase científico

"Que espera ainda a cabeça que se crava
Só na matéria estéril, rasa e fria,
Que por tesouros com a mão cobiçosa cava
E ao encontrar minhocas se extasia?
"

J. W. Goethe
(“Fausto”, trad. do alemão por Jenny Klabin Segail, editora 34, 2010, pg 82 - “Noite)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Conquista da arte

"Ao representarmos um objeto, não copiamos tal construção ou interpretação - nós a alcançamos."

Nelson Goodman
(Traduzido livremente the "Languages of Art",Bobbs-Merril, 1968 pg 9)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A Cidade irá contigo

"Dizes: 'Vou para outra terra, vou para outro mar. 
Encontrarei uma cidade melhor do que esta.
Todo o meu esforço é uma condenação escrita,
E meu coração, como o de um morto, está enterrado.
Até quando minha alma vai permanecer neste marasmo?
Para onde olho, qualquer lugar que meu olhar alcança,
Só vejo minha vida em negras ruínas
Onde passei tantos anos, e os destruí e desperdicei."

Não encontrarás novas terras, nem outros mares.
A cidade irá contigo. Andarás sem rumo
Pelas mesmas ruas. Vais envelhecer no mesmo bairro,
Teu cabelo vai embranquecer nas mesmas casas.
Sempre chegarás a esta cidade. Não esperes ir a outro lugar,
Não há barco nem caminho para ti.
Como dissipaste tua vida aqui
Neste pequeno lugar, arruinaste-a na Terra inteira."

Konstantinos Kaváfis
("A Cidade", como citado por Milton Hatoum em "Órfãos do Eldorado", Cia das Letras, 2008)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Símbolo e Semelhança

"O fato é que uma imagem, para representar um objeto, deve ser um símbolo, deve estar por ele, referir-se a ele; e nenhum grau de semelhança é suficiente para estabelecer esta requerida relação de referência"

Nelson Goodman
(Traduzido livremente the "Languages of Art",Bobbs-Merril, 1968 pg 5)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Metafísica e Arte

"Um argumento metafísico é caracteristicamente inconclusivo e envolve um apelo à experiência que é parcialmente um uso da arte (Metafísica como um tipo de mágica: Wittgenstein). O artista nos faz ver o que é, de um modo manifesto e edificante, aberto à discussão, nos faz ver lá, o real, aquilo antes não visto, e o metafísico também faz isso. Arte e filosofia avivam o conceito da realidade. É um lugar onde a palavra "ser" também é usada, mas eu prefiro evitá-la. A linguagem da ontologia pode separar o argumento metafísico da experiência ordinária, passiva de ser testada, justamente no ponto onde é mais importante a união com tal experiência. O jargão remove-nos da nossa experiência de mundo. A linguagem sofisticada da arte não é jargão. Claro que grandes filósofos geram termos técnicos, mas eles também os oferecem como explicações e justificações do que é provado, experimentado. Na minha visão, a propagação de termos técnicos deveria ser deixada aos gênios. Talvez os operários da filosofia deveriam aspirar o status de críticos de arte. E de fato, se refletirmos bem , não há tantos termos técnicos essenciais na filosofia."

Iris Murdoch
(Traduzido livremente de "Metaphysics as a Guide to Morals", Penguin 1992, pg 433)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Perfeito Vazio

"Em todo perfeccionismo há um medo terrível do vazio."


Do filme "A Questão Humana" (La Question Humain) de Nicolas Klotz, 2007.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O Incondicionado

"O sofrimento aprofunda nossa vida e nos leva em direção a um tipo de absoluto."

 Iris Murdoch
(Traduzido livremente de "Metaphysics as a Guide to Morals", Penguin 1992, pg 416)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O que não se usa, um fardo é

"Entulho velho, que não tenho usado,
Estás aqui porque meu pai te usou.
Tu, velho rolo, foste aqui sempre enfuscado,
Por essa triste luz que sempre aqui fumou.
Por que não esbanjei as sobras paternais,
Ao invés de suar com uma posse ou duas!
O que hás herdado de teus pais,
Adquire, para que o possuas,
O que não se usa, um fardo é, nada mais,
Pode o momento usar tão só criações suas.
"


J. W. Goethe
(“Fausto”, trad. do alemão por Jenny Klabin Segail, editora 34, 2010, pg 85 - “Noite)