domingo, 13 de fevereiro de 2011

A Liguagem Morta

" Uma brincadeira num nome, uma palavra por outra. Uma semelhança. É tão comum nesses dias. Linguagem é um meio poderoso de propaganda. É muito público e muito secreto ao mesmo tempo. O efeito desta propaganda não é produzido por discursos, artigos e boletins. Penetram na carne e no sangue das massas. Você sabia que nós não temos pessoas pobres? Só pessoas com "rendimento baixo". Nós já não falamos de "questões" como "a questão social", mas de "problemas" que nossos especialistas separam em uma série de detalhes técnicos. Para cada um, eles encontrarão a melhor solução individual. Métodos eficientes. Sim, mas palavras esvaziadas de todo o significado. É uma quebra da linguagem. Uma linguagem morta. Neutra. Invadida por palavras técnicas. A linguagem em que se absorve gradualmente a humanidade. Entende? Vejo um caminhão cinza atravessando a cidade. É um caminhão de painel de aço comum se dirigindo às minas, dois ou três quilômetros das últimas casas. Nem o motorista nem o condutor olham para trás através das janela de observação do caminhão. Estão fatigados. E ainda têm 10 entregas antes que a noite caia. Dez jornadas indo pela cidade em condições terríveis. Tudo mais difícil pois nos primeiros minutos do transporte, eles têm que colocar a máquina a toda potência para abafar os gritos e as sacudidas que quase fazem o caminhão se acabar. Felizmente, rapidamente as coisas ficam quietas e o transporte é sempre feito a tempo. De acordo com a programação. 'Para onde vão os caminhões?', pergunta a criança na janela. Ao anoitecer, a criança vê os veículos alinhados no pátio escolar. Ele vê os motoristas bebendo uma garrafa de bebida alcoólica. Os homens estão exaustos, felizes por terminar o dia que começaram muito cedo, como os outros. Os comboios acabam escrevendo suas contas e colocando-as no relatório diário. A criança vê seu pai, o contramestre, dar um tapinha nas costas de cada homem, e brincar com eles, um por um. O encarregado pensa que se o tempo estiver bom e se não tiver chuva para atolar os caminhões, ele poderá ser capaz de terminar sua tarefa até o fim da semana. E seu superior, o Obersturmbannfürher que emitiu a ordem a 100 km de distância, irá parabenizá-lo pelo bom funcionamento da operação. Se você está aqui para perguntar a cada homem o que ele estava fazendo, ele irá responder, "Tudo está indo como planejado, embora é possível que estejamos um pouco aquém do programado." Ele iria responder usando a antiga morta, neutra, linguagem técnica, que faz dele um motorista de caminhão, um condutor, um subchefe, contramestre, cientista, diretor técnico, um Obersturmbannführer.

Você era a criança na janela?

(...)

A criança na janela era o filho do encarregado Neumann. Ele não quis me falar seu primeiro nome, mas eu sei que "Arie" não foi o único nome que seu pai deu. Os músicos tomaram seus lugares e eu vi a cena do meu sonho. Arie Neumann veio por último, segurando seu violino. Ele continuou de pé, olhando para mim firmemente. Vi um homem ir até a porta mas não consegui falar para ele parar. Eu viu a massa negra de corpos enrolados. Bens. Carga. Vi um mundo de nudez, sob o amarelado, sob a luz, que deslizou num chão ligeiramente inclinado, expondo uma mão, uma perna, uma face estragada, uma boca deformada, sangrando. Dedos agarrando suas roupas íntimas sujas manchadas com urina, vômito, sangue, suor, baba. Líquido. Aqui estava a parte de trás, a cabeça e os braços enterrados sob outros corpos. Lá, um corpo enroscado com outro. E todos estes corpos... Pedaços. Enrolados um sobre outro, desviando o peso da massa para a cova. Todos estes corpos, enrolados, mantidos juntos, mas lentamente se separando do todo. Pesos deslocados. Cada um arrancando gradualmente um abraço humano sufocante. Uma rosto fazendo careta, ficando azul, chocado. E abaixo... A merda. Criancinhas deitadas nas pernas das mães. Homens velhos esqueléticos, pequenas meninas com olhos afundados meninos nus cobertos em contusões. Todas essas criaturas... Pedaços, que tinham nomes. Pedaços. Moïse. Moshe. Meu irmão. Robert. Meu pai. Armand. Miguel. Amos. Hannah. Samuel. Pedaços. Minha mãe. Meu amor. Pedaços. Minha irmã. Simone. Magdalena. Cada um desses corpos gradualmente emergindo deste vasto mar para cair um depois do outro, em pares, em pacotes, até o buraco negro da mina. Escuridão. Um mar de corpos, enterrados, engolidos."
 
 Do filme "A Questão Humana" (La Question Humain) de Nicolas Klotz, 2007.