segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Uma lição

"Verde que te quero verde me quedo sozinho. O homem tem de resolver sozinho todos os problemas importantes. Nem mesmo a experiência alheia ajuda: como é a morte, quem é Deus?"

Carlos Heitor Cony
(Em "Tijolos de Segurança", pg 45)

domingo, 30 de outubro de 2011

O solitário na metrópole

"Não é a distância que mede o afastamento. O muro de um jardim de nossa casa pode encerrar mais segredos que as muralhas da China, e a alma de uma simples mocinha é melhor protegida pelo silêncio do que o oásis do Saara pela extensão das areias."

Antoine de Saint-Exupéry
(Em "Terra dos Homens", trad. Rubem Braga, Nova Fronteira 2006, pg 57)

sábado, 29 de outubro de 2011

O sonho acordado de Descartes

"Agora, vamos dar uma olhada no que o argumento de fato diz. Ele começa, você irá lembrar, com uma afirmação supostamente de um fato  - a saber, que 'não há nenhuma diferença de qualidade entre as percepções que são verídicas na apresentação de coisas materiais e aquelas que são ilusórias', que 'não há nenhuma diferença qualitativa entre sense-data normais e anormais'. Bom, deixando de lado, tanto quanto possível, as numerosas obscuridades nesta maneira de falar, perguntemos se o que está sendo afirmado aqui é de fato verdade. É o caso que experiências verídicas e ilusórias não são qualitativamente diferentes? Bem, ao menos parece perfeitamente extraordinário dizer algo assim de tal forma tão superficial. Considere alguns exemplos. Eu posso ter a experiência (dita presumivelmente ilusória) de sonhar que estou sendo apresentado ao Papa. Poderíamos levar a sério que ter esse sonho é 'qualitativamente' indistinguível de ser verdadeiramente apresentado ao Papa? É claro que não. Afinal de contas, temos a expressão 'dream-like experience' (experiência do tipo sonho); algumas experiências normais são ditas ter esta qualidade 'tipo sonho', e alguns artistas e escritores ocasionalmente tentam retratar isto em suas obras. Mas é claro, se o fato aqui fosse de fato um fato, a expressão seria completamente sem sentido, porque seria aplicada a tudo. Se sonhos não fossem 'qualitativamente' diferentes de experiências reais, então toda experiência durante vigília seria como um sonho; a qualidade 'tipo-sonho' seria impossível de ser evitada. É verdade que sonhos são narrados nos mesmos termos de experiências reais: estes termos, no final das contas, são os melhores termos que temos; mas seria um grande erro concluir disso que o que é narrado nos dois casos é exatamente igual. Quando nós somos atingidos na cabeça, dizemos por vezes ter 'visto estrelas'; mas mesmo assim, ver estrelas quando você é atingido na cabeça não é qualitativamente indistinguível de ver estrelas quando você olha para o céu."

John Austin
(Traduzido livremente de "Sense and Sensibilia", Oxford 1962, pg 49)

Nostalgia Intelectual

Dois excertos do diário de Jean-Paul Sartre durante a segunda guerra mundial ("Diario de uma Guerra Estranha", trad. Aulyde Soares Rodrigues, Nova Fronteira, 2nd ed., 2005):


Quarta-feira, 29 de novembro de 1939 (Caderno III)

"Desde 2 de setembro, li ou reli:

O castelo, de Kafka
O processo, de Kafka
A colônia penal, de Kafka
Journal, de Dabit
Journal, de Gide
Journal, de Green
Les Enfants du limon, de Queneau
Un rude hiver, de Queneau
Mars ou la guerre jugée, de Alain
Prélude à Verdun, de Romains
Verdun, de Romains
Quarante-huit, de Cassou
La Cavalière Elsa, de Mac Orlan
O coronel Jack, de Defoe
Segundo volume das obras de Shakespeare (Pléiade)
Terra dos homems, St. Exupéry
Un testament espagnol, de Koestler"


Terça-feira, 19 de dezembro de 1939 (Caderno V)

"Li - desde o último recenseamento das minhas leituras:

Mac Orlan: Sous la lumière froide
Paul Morand: Ouvert la nuit
Marivaux: Théâtre choisi
Mérimée: Mosaïque
Mérimée: Colomba
Flaubert: A educação sentimental
Kierkegaard: Le concept d'angoisse
Dorgelès: Les Croix de bois"



[Progredimos nesses 70 anos! A vida é tão mais fácil! Hoje basta ler meia dúzia de livros e está-se já autorizado a vestir a carapuça de "intelectual".]

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Uma canção para quem tem (ou teve) que ir embora e sente falta (do que nunca possuiu)

(o video que constava neste post foi retirado porque o ECAD absurdamente cobra direitos autorais de blogueiros que retransmitem videos do youtube)


"It's not time to make a change
Just relax, take it easy
You're still young, that's your fault
There's so much you have to know.
Find a girl, settle down
If you want, you can marry
Look at me, I am old
But I'm happy.

"I was once like you are now
And I know that it's not easy
To be calm when you've found
Something going on.
But take your time, think a lot
I think of everything you've got
For you will still be here tomorrow
But your dreams may not.

"How can I try to explain
When I do he turns away again
And it's always been the same,
Same old story.
From the moment I could talk
I was ordered to listen
Now there's a way and I know
That I have to go away
I know I have to go.

"It's not time to make a change
Just sit down and take it slowly,
You're still young that's your fault
There's so much you have to go through.
Find a girl, settle down,
If you want, you can marry,
Look at me, I am old
But I'm happy.

"All the times that I've cried
Keeping all the things I knew inside
And it's hard, but it's harder
To ignore it.
If they were right, I'd agree
But it's them, they know, not me
Now there's a way and I know
That i have to go away,
I know I have to go."

Cat Stevens

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A solidão da vida

"Pouco a pouco a confiança se dissolvia. Difícil é crer em algo quando se é só, e não se pode falar com ninguém. Próprio nestes dias Drogo deu-se conta de como os homens, por mais que possam querer bem uns aos outros, permanecem sempre separados uns dos outros; se um sofre, a dor é completamente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte que seja; se um sofre, os outros por isto não se sentem mal, mesmo que o amor seja grande, e isto provoca a solidão da vida."

Dino Buzzatti
(Traduzido livremente de "Il Deserto dei Tartari", Mondatori, pg 168) 

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Os maus hábitos dos (maus) filósofos

"'Realidade' é uma palavra absolutamente normal, não há nada técnico ou especializado por trás dela. É, como se diz, bem estabelecida e frequentemente usada na linguagem comum que todos nós empregamos diariamente. Então, neste sentido, é uma palavra que já possui um sentido fixo e não pode, não mais que qualquer outra palavra já firmemente estabelecida, ser usada ao bel prazer. Os filósofos frequentemente pensam que podem simplesmente determinar qualquer sentido de qualquer palavra. (...) Mas devemos sempre ficar particularmente desconfiados diante ao hábito dos filósofos de ignorar alguns (se não todos) os usos ordinários das palavras como se eles fossem 'irrelevantes', um hábito que faz com que as distorções no argumento sejam praticamente inevitáveis. (...)  Agora, palavras desse tipo [o real, a realidade] foram responsáveis por muita perplexidade. Considere as expressões 'bola de cricket', 'bastão de cricket', 'pavilhão de cricket', 'tempo de cricket'. Considere alguém que não soubesse nada sobre cricket e fosse obcecado com o uso de palavras 'normais' como 'amarelo': ele poderia olhar para a bola, o bastão, o prédio, as condições do tempo, tentando detectar uma 'qualidade comum' que (ele assume) é atribuído a todas essas coisas pela qualificação 'de cricket'. Mas nenhuma tal qualidade é encontrada; e então talvez ele conclua que 'cricket' deve designar uma qualidade não-natural, uma qualidade a ser detectada não através de algum modo normal mas pela 'intuição'. Se esta história parece absurda, lembre-se o que os filósofos dizem sobre palavras como 'bem'; e reflita sobre o modo que muitos filósofos, por não detectarem nenhuma qualidade comum a um pato real, leite real e progresso real, decidiram que realidade deveria ser um conceito a priori apreendido pela razão."

John Austin
(Traduzido livremente de "Sense and Sensibilia", Oxford 1962, pg 63-64)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Reductio ad 'ridiculum'

"Em 'The Modularity of Mind' Jerry Fodor chama os 'outputs' dos assim supostos 'módulos da percepção' de aparências. Assume portanto que quando uma dessas rotinas de reconhecimento de padrões produz um 'output' o evento é, ipso facto, um evento consciente. Mas isto é difícil de engolir. Se, por exemplo, dizemos que os módulos de experiência visual estão no córtex visual, onde por hipótese eles se encontram, então esquecemos que o córtex visual pode ser dissociado de outras áreas, como o módulo da linguagem. Diríamos então que nestes casos há um 'sense data' visual do qual não se é consciente? E o que aconteceria se nossa tecnologia avançasse ao ponto de podermos remover do cérebro o módulo envolvido na recognição visual de, digamos, cadeiras e mantê-lo vivo e funcionando em um recipiente? Diríamos então que há "aparências de cadeira" sem ninguém a experimentar tais aparências? Se "sense data" ou aparências podem ser produzidas em um número pequeno de neurônios, por que não falar então das aparências do termostato? This way madness lies!"

Hilary Putnam
(Traduzido livremente de "The threefold cord: mind body and world", Columbia Univ. Press 1999, pg 30-31)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A ficção da ciência da consciência

"O ponto chave dos meus argumentos contra as 'teorias da identidade' (incluindo a minha antiga teoria funcionalista) é que a noção de identidade não possui nenhum sentido neste contexto. Não podemos, por exemplo, aplicar o modelo de identificação teórica, como aquele da famosa redução da termodinâmica à mecânica estatística, porque este modelo assume que ambas, a entidade reduzida e a teoria que reduz, obedeçam leis físicas bem estabelecidas (tal que a proposta identidade, por exemplo, 'temperatura é energia cinética média', possa ser testada monstrando-se que se a assumirmos, as leis da teoria reduzida - termodiâmica - poderão ser derivadas das leis da teoria que reduz - mecânica estatística). Não podemos perguntar se as leis da 'folk psychology' são ou não são derivadas de algum conjunto de identidades entre os atributos da psicologia e algumas propriedades computacionais, porque a noção de uma 'propriedade computacional' depende essencialmente de qual formalismo o 'programa' é escrito, e ninguém tem a menor idéia sobre qual formalismo poderia fazer esse tipo de redução. Enquanto não dermos um sentido preciso para uma 'propriedade computacional' neste contexto, todo esse papo de funcionalismo é ficção científica. Nenhuma discussão séria e científica foi levantada."

Hilary Putnam
(Traduzido livremente de "The threefold cord: mind body and world", Columbia Univ. Press 1999, pg 85)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Camus, senhores, Albert Camus!

"Existem portanto para o homem uma ação e um pensamento possíveis no nível médio que é o seu. Qualquer empreendimento mais ambicioso revela-se contraditório. O absoluto não é alcançado, nem muito menos criado através da história. A política não é a religião; do contrário, não passa de inquisição. Como a sociedade definiria um absoluto? Talvez cada qual busque, por todos, esse absoluto. Mas a sociedade e a política têm apenas o encargo de ordenar os negócios de todos para que cada qual tenha o lazer e a liberdade dessa busca comum. A história não pode mais ser erigida como objeto de culto. Ela não é mais que uma oportunidade, que deve ser tornada profícua por uma revolta vigilante.

'A obsessão pela colheita e a indiferença em relação à história', escreve admiravelmente René Char, 'são as duas extremidades de meu arco'. Se o tempo da história não é feito do tempo da colheita, a história não é mais que a sombra fugaz e cruel onde o homem não encontra mais seu quinhão. Quem se entrega a essa história não se entrega a nada e, por sua vez, nada é. Mas quem se dedica ao tempo de sua vida, entrega-se à terra, dela recebendo a colheita que semeia e nutre novamente. São enfim aqueles que sabem, no momento desejado, revoltar-se também contra a história que a fazem progredir. Isso supõe uma interminável tensão e a serenidade crispada de que nos fala o mesmo poeta. Mas a verdadeira vida está presente no coração dessa dicotomia. Ela é o próprio dilaceramento, o espírito que paira acima dos vulcões de luz, a loucura pela equidade, a intransigência extenuante da medida. Para nós, o que ressoa nos confins dessa longa aventura revoltada não são fórmulas de otimismo, que não têm utilidade no extremo de nossa desgraça, mas sim palavras de coragem e de inteligência, que, junto ao mar, são até mesmo virtude.


Nenhuma sabedoria atualmente pode pretender dar mais. A revolta confronta incansavelmente o mal, do qual só lhe resta tirar um novo ímpeto. O homem pode dominar em si tudo aquilo que deve ser dominado. Deve corrigir na criação tudo aquilo que pode ser corrigido. Em seguida, as crianças continuarão a morrer sempre injustamente, mesmo na sociedade perfeita. Em seu maior esforço, o homem só pode propor-se uma diminuição aritmética do sofrimento do mundo. Mas a injustiça e o sofrimento permanecerão e, por mais limitados que sejam, não deixarão de ser um escândalo. O 'por quê?' de Dimitri Karamazov continuará a ecoar; a arte e a revolta só morrerão com a morte do último homem.


Há sem dúvida um mal que os homens acumulam em seu desejo apaixonado de unidade. Mas um outro mal está na origem desse movimento desordenado. Diante desse mal, diante da morte, o homem, no mais profundo de si mesmo, clama por justiça. O cristianismo histórico só respondeu a esse protesto contra o mal pela anunciação do reino e, depois, da vida eterna, que exige a fé. Mas o sofrimento desgasta a esperança e a fé; ele continua então solitário e sem explicação. As multidões que trabalham, cansadas de sofrer e morrer, são multidões sem deus. Nosso lugar, a partir de então, é a seu lado, longe dos antigos e dos novos doutores. O cristianismo histórico adia para além da história a cura do mal e do assassinato, que, no entanto, são sofridos na história. O materialismo contemporâneo julga, da mesma forma, responder a todas as perguntas. Mas, escravo da história, ele aumenta o domínio do assassinato histórico, deixando-o ao mesmo tempo sem justificação, a não ser no futuro, que, ainda uma vez, exige a fé. Em ambos os casos, é preciso esperar e, enquanto isso, os inocentes não deixam de morrer. Há vinte séculos, a soma total do mal não diminuiu no mundo. Nenhuma parúsia, quer divina ou revolucionária, se realizou. Uma injustiça continua imbricada em todo sofrimento, mesmo o mais merecido aos olhos dos homens O longo silêncio de Prometeu diante das forças que o oprimem continua a gritar. Mas, nesse ínterim, Prometeu viu os homens se voltarem também contra ele, ridicularizando-o. Espremido entre o mal humano e o destino, o terror e o arbítrio, só lhe resta sua força de revolta para salvar do assassinato aquilo que ainda pode ser salvo, sem ceder ao orgulho da blasfêmia.


Compreende-se então que a revolta não pode prescindir de um estranho amor. Aqueles que não encontram descanso nem em Deus, nem na história estão condenados a viver para aqueles que, como eles, não conseguem viver: para os humilhados. O corolário do movimento mais puro da revolta é então o grito dilacerante de Karamazov: se não forem salvos todos, de que serve a salvação de um só? Dessa forma, condenados católicos, nas masmorras da Espanha, recusam hoje a comunhão, porque os padres do regime tornaram-na obrigatória em certas prisões. Também eles, únicas testemunhas da inocência crucificada, recusam a salvação, se seu preço é a injustiça e a opressão. Essa louca generosidade é a da revolta, que oferta sem hesitação sua força de amor, e recusa peremptoriamente a injustiça. Sua honra é de não calcular nada, distribuir tudo na vida presente, e aos seus irmãos vivos. Desta forma, ela é pródiga para os homens vindouros. A verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo no presente.


Com isso, a revolta prova que ela é o próprio movimento da vida e que não se pode negá-la sem renunciar à vida. Seu grito mais puro, a cada vez, faz com que um ser se revolte. Portanto, ela é amor e fecundidade ou então não é nada. A revolução sem honra, a revolução do cálculo, que, ao preferir o homem abstrato ao homem de carne e osso, nega a existência tantas vezes quanto necessário, coloca o ressentimento no lugar do amor. Tão logo a revolta, esquecida de suas origens generosas, deixa-se contaminar pelo ressentimento, ela nega a vida, correndo para a destruição, fazendo sublevar-se a turba zombeteira de pequenos rebeldes, embriões de escravos, que acabam se oferecendo hoje, em todos os mercados da Europa, a qualquer servidão. Ela não é mais revolta nem revolução, mas rancor e tirania. Então, quando a revolução, em nome do poder e da história, torna-se esta mecânica assassina e desmedida, uma nova revolta é consagrada, em nome da moderação e da vida. Estamos neste extremo. No fim destas trevas, é inevitável, no entanto, uma luz, que já se adivinha - basta lutar para que ela exista. Para além do niilismo, todos nós, em meio aos escombros, preparamos um renascimento. Mas poucos sabem disso.


E já a revolta, na verdade, sem pretender tudo resolver, pode pelo menos tudo enfrentar. A partir deste instante, a luz jorra sobre o próprio movimento da história. Em torno dessa fogueira devoradora, combates e sombras agitam-se por um momento, depois desaparecem, e cegos, tocando suas pálpebras, exclamam que isto é a história. Os homens da Europa, abandonados às sombras desviaram-se do ponto fixo e reluzente. Eles trocam o presente pelo futuro, a humanidade pela ilusão do poder, a miséria dos subúrbios por uma cidade fulgurante, a justiça cotidiana por uma verdadeira terra prometida. Perdem a esperança na liberdade das pessoas e sonham com uma estranha liberdade da espécie; recusam a morte solitária e chamam de imortalidade uma prodigiosa agonia coletiva. Não acreditam mais naquilo que existe, no mundo e no homem vivo; o segredo da Europa é que ela não ama mais a vida. Os seus cegos acreditaram de modo pueril que amar um único dia da vida equivalia a justificar séculos inteiros de opressão. Por isso, quiseram apagar a alegria do quadro do mundo, adiando-a para mais tarde. A impaciência dos limites, a recusa da vida na duplicidade, o desespero de ser homem levaram-nos, finalmente, a uma desmedida desumana. Ao negarem a justa grandeza da vida, precisaram apostar na sua própria excelência. Na falta de coisa melhor, eles se divinizaram e sua desgraça começou: estes deuses têm olhos vazados. Kaliayev e seus irmãos do mundo inteiro recusam, pelo contrário, a divindade, já que rejeitam o poder ilimitado de matar. Eles escolhem, e nos dão como exemplo, a única regra original em nossos dias: aprender a viver e a morrer e, para ser homem, recusar-se a ser deus.
"
("O Homem Revoltado", trad. Valerie Rumjanek, Record 2010, pg 346-350)



Albert Camus  
7/11/1913 - 4/1/1960

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Ser humano ( = revolta) : algo além dos determinismos da História

"A liberdade mais extrema, a liberdade de matar, não é compatível com as razões da revolta. A revolta não é, de forma alguma, uma reivindicação de liberdade total. Ao contrário, a revolta ataca sistematicamente a liberdade total. Ela contesta, justamente, o poder ilimitado que permite a um superior violar a fronteira proibida. Longe de reivindicar uma independência geral, o revoltado quer que se reconheça que a liberdade tem seus limites em qualquer lugar onde se encontre um ser humano, já que o limite é precisamente o poder de revolta desse ser. Nisto reside a razão profunda da intransigência revoltada. Quanto mais a revolta tem consciência de reivindicar um limite justo, mais ela é inflexível. O revoltado exige sem dúvida uma certa liberdade para si mesmo; mas em nenhum caso, se for consequente, reivindicará o direito de destruir a existência e a liberdade do outro. Ele não humilha ninguém. A liberdade que reclama, ele a reivindica para todos; a que recusa, ele a proíbe para todos. Não se trata somente de escravo contra senhor, mas também de homem contra o mundo do senhor e do escravo, algo além, graças à revolta, da relação entre domínio e escravidão na história. Aqui, o poder ilimitado não é a única lei. É em nome de outro valor que o revoltado afirma ao mesmo tempo a impossibilidade da liberdade total e reclama para si mesmo a liberdade relativa, necessária para reconhecer essa impossibilidade. Toda liberdade humana, em sua essência, é dessa forma relativa. A liberdade absoluta, ou seja, a liberdade de matar, é a única que não reclama ao mesmo tempo que a si mesma aquilo que a limita e oblitera. Ela se desvincula então de suas raízes, erra ao acaso, sombra abstrata e malévola, até que imagina encontrar um corpo na ideologia. É possível dizer portanto que a revolta, quando desemboca na destruição, é ilógica. Ao reclamar a unidade da condição humana, ela é força de vida, não de morte. Sua lógica profunda não é a da destruição; é a da criação. "

Albert Camus
(Em "O Homem Revoltado", trad. , Valerie Rumjanek, Record 2010, pg 326-327)

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Memória seletiva

"É curioso como se recordam mais as palavras ditas do que aqueles sentimentos que não chegaram a sacudir o ar"

Italo Svevo
(Traduzido livremente de "La Coscienza di Zeno", Mondatori 1988, pg 198)

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A solução de quem cala

"Acreditava que, ao nomear os problemas, eles se materializavam e já não era possível ignorá-los; por outro lado, se ficam no limbo das palavras não ditas, podem desaparecer sozinhos, com o decorrer do tempo."

Isabel Allende
(Em "A Casa dos Espíritos", Trad. Carlos Martins Pereira, Bertrand Brasil 2005, pg 180)

domingo, 16 de outubro de 2011

Lama

"Há sempre um pouco de lama, em certas horas, em determinadas datas, se esquece a lama. Mas ela paira por cima de tudo: ao menor pretexto rompe os diques e emporcalha tudo. Ódios velados, amores recalcados, palavras amargas, gestos apressados, formam um mundo amargo que se arrasta com cada um"

Carlos Heitor Cony
(Em "Tijolos de Segurança")

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Hegel e a filosofia

"Sem dúvida, tudo se reconcilia na dialética, e não se pode colocar um extremo sem que surja o outro; em Hegel, como em todo grande pensamento, há material para contrariar Hegel. Mas os filósofos raramente são lidos apenas com a inteligência, mas, muitas vezes, com o coração e suas paixões, que nada reconciliam."

Albert Camus
(Em "O Homem Revoltado", trad. , Valerie Rumjanek, Record 2010, pg 149)

domingo, 9 de outubro de 2011

O deus desencarnado dos filósofos

"Princípios eternos comandam a nossa conduta: a Verdade, a Justiça, a Razão, enfim. Eis o novo deus. O Ser supremo que legiões de moças vêm adorar, ao festejarem a Razão, não é mais que o deus antigo, desencarnado, bruscamente cortado de quaisquer amarras com a terra, e que foi solto, como um balão, no céu vazio dos grandes princípios. Privado de seus representantes, de qualquer intercessor, o deus dos filósofos e dos advogados tem apenas o valor de demonstração. Na realidade, ele é bem fraco e compreende-se por que Rousseau, que pregava a tolerância, achava contudo que era preciso condenar à morte os ateus. Para adorar por muito tempo um teorema, não basta a fé, é preciso ainda uma polícia."

Albert Camus
(Em "O Homem Revoltado", trad. , Valerie Rumjanek, Record 2010, pg 149)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Força!

"Força! Vá! Vá! Quem se acontenta de ser feliz não pode ser feliz, lembre-se!"

Ohram Pamuk
(Traduzido livremente de "Neve", trad. Marta Bertolini, Einaudi 2007, pg 377)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A razão de ser da literatura

"Eu conto histórias para me tornar eu mesmo"

Ohram Pamuk.
(Traduzido livremente de "The Black Book", trad. Maureen Freely, Faber & Faber 2006, pg 417)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A flecha que não alçou vôo

" No meio-dia do pensamento, a revolta recusa a divindade para compartilhar as lutas e o destino comuns. Nós escolheremos Ítaca, a terra fiel, o pensamento audacioso e frugal, a ação lúcida, a generosidade do homem que compreende. Na luz, o mundo continua a ser nosso primeiro e último amor. Nossos irmãos respiram sob o mesmo céu que nós, a justiça está viva. Nasce então a estranha alegria que nos ajuda a viver e a morrer e que, de agora em diante, nos recusaremos a adiar para mais tarde. Na terra dolorosa, ela é o joio inesgotável, o amargo alimento, o vento forte que vem dos mares, a antiga e a nova aurora. Com ela, ao longo dos combates, iremos refazer a alma deste tempo e uma Europa que nada excluirá. Nem esse fantasma, Nietzsche, que, durante doze anos após sua derrocada, o Ocidente ia evocar como a imagem arruinada de sua mais elevada consciência e de seu niilismo; nem esse profeta da justiça sem ternura, que descansa, por um erro, na quadra dos incréus no cemitério de Highgate; nem a múmia deificada do homem de ação em seu caixão de vidro; nem nada do que a inteligência e a energia da Europa forneceram incessantemente ao orgulho de uma época desprezível. Todos, na verdade, podem reviver junto aos mártires de 1905, mas com a condição de compreender que eles se corrigem uns aos outros e que, sob o sol, um limite refreia todos. Um diz ao outro que não é Deus; aqui se encerra o romantismo. Nessa hora em que cada um de nós deve retesar o arco para competir novamente e reconquistar, na e contra a história, aquilo que já possui, a magra colheita de seus campos, o breve amor desta terra, no momento em que, finalmente, nasce um homem, é preciso renunciar à época e aos seus furores adolescentes. O arco se verga, a madeira geme. No auge da tensão, alçará vôo, em linha reta, uma flecha mais inflexível e mais livre."

Albert Camus
(Em "O Homem Revoltado", trad. , Valerie Rumjanek, Record 2010, pg 350-351)