quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Ser humano ( = revolta) : algo além dos determinismos da História

"A liberdade mais extrema, a liberdade de matar, não é compatível com as razões da revolta. A revolta não é, de forma alguma, uma reivindicação de liberdade total. Ao contrário, a revolta ataca sistematicamente a liberdade total. Ela contesta, justamente, o poder ilimitado que permite a um superior violar a fronteira proibida. Longe de reivindicar uma independência geral, o revoltado quer que se reconheça que a liberdade tem seus limites em qualquer lugar onde se encontre um ser humano, já que o limite é precisamente o poder de revolta desse ser. Nisto reside a razão profunda da intransigência revoltada. Quanto mais a revolta tem consciência de reivindicar um limite justo, mais ela é inflexível. O revoltado exige sem dúvida uma certa liberdade para si mesmo; mas em nenhum caso, se for consequente, reivindicará o direito de destruir a existência e a liberdade do outro. Ele não humilha ninguém. A liberdade que reclama, ele a reivindica para todos; a que recusa, ele a proíbe para todos. Não se trata somente de escravo contra senhor, mas também de homem contra o mundo do senhor e do escravo, algo além, graças à revolta, da relação entre domínio e escravidão na história. Aqui, o poder ilimitado não é a única lei. É em nome de outro valor que o revoltado afirma ao mesmo tempo a impossibilidade da liberdade total e reclama para si mesmo a liberdade relativa, necessária para reconhecer essa impossibilidade. Toda liberdade humana, em sua essência, é dessa forma relativa. A liberdade absoluta, ou seja, a liberdade de matar, é a única que não reclama ao mesmo tempo que a si mesma aquilo que a limita e oblitera. Ela se desvincula então de suas raízes, erra ao acaso, sombra abstrata e malévola, até que imagina encontrar um corpo na ideologia. É possível dizer portanto que a revolta, quando desemboca na destruição, é ilógica. Ao reclamar a unidade da condição humana, ela é força de vida, não de morte. Sua lógica profunda não é a da destruição; é a da criação. "

Albert Camus
(Em "O Homem Revoltado", trad. , Valerie Rumjanek, Record 2010, pg 326-327)