quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Um nada reservado para tudo

"Por vezes, fico chocado, viro uma esquina, vejo o oceano, e meu coração dispara com felicidade - sinto-me tão livre! Então vem-me a idéia de que, assim como observo, posso também ser observado do acolá, não sou um objeto discreto mas estou incorporado com o resto, com esta safira universal, de um azul púrpura. Pois o que este mar, esta atmosfera, está fazendo com as 8 polegadas de diâmetro da sua cabeça? (Não digo nada do sol e da galáxia que também estão lá). No centro do observador deve haver espaço para o todo, e este espaço-nada não é um nada vazio mas um nada reservado para tudo"

Saul Bellow
(Em "Humboldt's Gift", traduzido livremente da citação em "Out of our Heads" de Alva Noë, Hill and Wang, 2009, pg 171.)

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O caráter encontra-se nos feitos

"É de fato um ato vão tentar descrever a natureza de algo. Notamos os seus efeitos e a consideração completa de seus efeitos compreende a natureza deste algo. Tentamos em vão descrever o caráter de um homem; mas é uma descrição de seus feitos e de suas ações que gera em nós a imagem de seu caráter."

Goethe
(Em "The Theory of Colors", traduzido livremente a partir de citação em "Action and Perception", de Alva Noë, MIT Press, 2004, pg xi)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Maturidade

"Uma concha forma-se por sobre a alma, suave, nacarada, lustrosa, e nela as sensações golpeiam seus bicos em vão. Em mim formou-se mais cedo do que na maioria. Logo eu estaria cortando minha pêra, quando os outros tivessem terminado sua sobremesa. E conseguia concluir minha frase num silêncio absoluto. É também nessa estação que a perfeição nos atrai como um chamariz. Pensamos poder aprender espanhol amarrando uma cordinha ao pé e acordando mais cedo. Enchemos os pequenos compartimentos de nossa agenda com jantares às oito; almoços à uma e trinta. Temos camisas, meias, gravatas expostas sobre a cama. Mas é um erro, essa precisão extremada, esse avanço ordenado e militar; uma conveniência, uma mentira. Por debaixo, bem no fundo, mesmo quando chegamos pontualmente na hora marcada, com nossos coletes alvos e cortesias formalizadas, há sempre uma torrente rápida de sonhos desmoronados, cantigas de criança, gritos na rua, frases inconclusas e suspiros, que se alteia e baixa mesmo quando levamos uma dama para jantar. Enquanto colocamos o garfo tão precisamente sobre a toalha, mil rostos fazem caretas. Não há nada que se possa pescar com a colher; nada que se possa chamar de acontecimento."

Virginia Woolf
(Em "As Ondas", Tradução de Lya Luft, Nova fronteira 2004, pg 191)

sábado, 24 de setembro de 2011

Abre!

"Sou o melhor aluno do colégio. Mas, quando a noite chega, saio desse corpo inviável e habito os espaços. Então faço-me companheiro de Platão e de Virgílio. Sou o último descendente das grandes casas de França. Contudo, sou também aquele que se obrigará a abandonar esses territórios enluarados e varridos pelo vento, esses passeios à meia-noite, e se defrontará com ásperas portas de carvalho. No correr de minha vida - os Céus permitam que não seja longa -, farei o gigantesco amálgama das discrepâncias tão cruelmente óbvias em mim. Conseguirei isso à força de tanto sofrer. Vou bater. Vou entrar."

Virginia Woolf
(Em "As Ondas", Tradução de Lya Luft, Nova fronteira 2004, pg 39)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A servidão é coletiva...

"Ah! Os sonsos, atores, hipócritas, e ainda por cima tão comoventes! Acredite-me, todos o são, mesmo quando ateiam fogo no céu. Quer sejam ateus ou devotos, moscovitas ou bostonianos, são todos cristãos, de pai para filho. Mas precisamente, já não há pai, já não há regra! Somos livres, é preciso, então, se virar, e como, sobretudo, eles não querem liberdade, nem suas sentenças, pedem para ser repreendidos, inventam regras terríveis, correm para fazer fogueiras em substituição às igrejas. É como eu lhe digo, são uns Savonarolas. Mas só crêem no pecado; na graça, nunca. Pensam nela, é bem verdade. A graça, eis o que eles querem, o sim, o abandono, a felicidade de ser e, quem sabe, porque eles também são sentimentais, o noivado, a moça em flor, o homem direito, a música. Eu, por exemplo, que não sou sentimental, quer saber com o que sonhei? Com um amor total, de corpo e alma, dia e noite, em um abraço sem fim, de prazer e de exaltação, durante cinco anos seguidos e, depois disso, a morte. Ai de mim!
 
E então, não é assim, à falta de noivado ou do amor incessante, resta o casamento, brutal, com a força e o chicote. O essencial é que tudo se torne simples, como para a criança, que cada ato seja comandado, que o bem e o mal sejam designados de maneira arbitrária, portanto evidente. E eu estou de acordo com isso, por mais siciliano e javanês que seja, e além de tudo sem nada de cristão, se bem que tenha amizade pelo primeiro que me apareça. Mas, nas pontes de Paris, eu também compreendi que tinha medo da liberdade. Viva, pois, o senhor; qualquer que ele seja, para substituir a lei do céu. 'Pai nosso que estais provisoriamente aqui... Nossos guias, nossos chefes deliciosamente severos, ó condutores crués e bem-amados...' Enfim, como se vê, o essencial é não mais ser livre e sim obedecer, no arrependimento, a quem for mais malandro do que nós. Quando formos todos culpados, será a democracia. Sem contar, caro amigo, que é preciso nos vingarmos de ter de morrer sozinhos. A morte é solitária, ao passo que a servidão é coletiva. Os outros também têm a sua conta, e ao mesmo tempo que nós, eis o que importa. Todos reunidos, enfim, mas de joelhos e de cabeça baixa."

Albert Camus
(Em "A Queda", tradução Valerie Rumjanek, Record 2004, pg 102)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

On Certainty

"Aí está, não se tem certeza, nunca se tem certeza. Senão, haveria uma saída, poderíamos, finalmente, fazer com que nos levassem a sério. Os homens só se convencem das nossas razões, da nossa sinceridade e da gravidade de nossos sofrimentos, com a nossa morte. Enquanto estivermos vivos, o nosso caso é duvidoso, só temos direito ao seu ceticismo. Se houvesse, então, uma única certeza de podermos gozar o espetáculo, valeria a pena provar-lhes o que eles não querem crer e deixá-los assombrados. Mas uma pessoa se mata, e que importa se eles acreditam ou não? Não estamos presentes para colher os frutos do seu espanto e de sua contrição, aliás efêmera; assistir, enfim, segundo o sonho de cada homem, ao próprio funeral. Para deixar de ser duvidoso é preciso, pura e simplesmente, deixar de ser."

Albert Camus
(Em "A Queda", tradução Valerie Rumjanek, Record 2004, pg57)

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Os Cães

"O sentimento do direito, a satisfação de ter razão, a alegria de nos estimarmos a nós próprios são, meu caro senhor, impulsos poderosos para nos manter de pé ou nos fazer avançar. Pelo contrário, privar os homens desses impulsos é transformá-los em cães raivosos. Quantos crimes cometidos, simplesmente porque o seu autor não podia suportar o fato de estar errado!"

Albert Camus
(Em "A Queda", tradução Valerie Rumjanek, Record 2004, pg 16)

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Homens-bestas

"Quando se recusa a se servir alguém, basta-lhe um grunhido: ninguém insiste. Ser senhor de seu próprio estado de espírito é privilégio dos grandes animais."

Albert Camus
(Em "A Queda", tradução Valerie Rumjanek, Record 2004, pg 1)

domingo, 18 de setembro de 2011

É tudo feito da mesma merda

"Todos são do mesmo barro. Todos são do mesmo barro - sobem em dignidades, entram nos cabidos, regem os seminários, dirigem as consciências envoltos em Deus como numa absolvição permanente, e têm no entanto, numa viela, uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das atitudes devotas e da austeridade do ofício, fumando cigarros de estanco e palpando uns braços rechonchudos!"

Eça de Queirós
(Em "O Crime do Padre Amaro", Editora Moderna 2002, pg 76)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

"Não há lugar para a cultura no ambiente das resenhas"

"A família que não se envolve no jogo dos filhos, que empresta o smartphone para os rebentos em restaurantes e que liga o vídeo no carro para que não importunem, está criando cidadãos autistas e egoístas, cujo consumo de informação tenderá a ser pragmático, pornográfico, indiferente. Não há lugar para a cultura no ambiente das resenhas."

Luli Radfahrer
(Em sua coluna indignada - mais um indignado e com razão - desta quarta-feira na Folha)

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Ignorância que salva

"A salvação e o suplício do homem estão em que, quando ele vive de maneira errada, pode enevoar-se, a fim de não ver a miséria de sua condição".

Lev Tolstoi
(Em "A Sonata a Kreutzer", Trad. Boris Schnaiderman, Editora 34, 2007, pg 60)

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Revoltar-se, agindo ou não!

"Fazer. Fazer algo. Fazer o bem, fazer mais, fazer tempo, a ação em todas suas formas. Mas por trás de toda ação havia um protesto, porque todo fazer significa um sair de para chegar a, ou  mover algo para que esteja aqui e não ali, ou entrar nessa casa em vez de não entrar ou entrar na casa ao lado, em todo ato havia a admissão de uma carência, de algo ainda não feito e que era possível de ser feito, o protesto tácito frente à contínua evidência de falta, da escassez do presente. Crer que a ação podia culminar, ou que a soma das ações podia realmente equivaler a uma vida digna deste nome, isto sim era uma ilusão de moralista. Mais valia renunciar, pois a renuncia à ação era o próprio ato de revolta e não sua máscara."

Julio Cortazar
(Traduzido livremente de "Rayuela", Sudamericana 1963, pg 18)

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Faculdades de educação? Humpf.

"A rigor, a escola de aplicação da USP deveria estar entre as primeiras do Brasil se soubesse aproveitar as infindáveis possibilidades de seu campus e experimentando métodos inovadores. De resto, sua clientela nem de longe se assemelha com a de Parelheiros. É por fatos desse tipo que, entre educadores, cresce a visão de que as faculdades de educação estão longe da realidade e não sabem preparar professores para resolver os desafios de sala de aula, perdendo-se em teorias pedagógicas."

Gilberto Dimenstein
(Indignado - e com razão - em sua coluna desta segunda-feira na Folha)

domingo, 11 de setembro de 2011

Vida (morte) na cidade

"Na cidade, um homem pode viver cem anos e nem perceber que já morreu e apodreceu há muito. Não há tempo para alguém examinar a si mesmo, está tudo ocupado."

Lev Tolstoi
(Em "A Sonata a Kreutzer", Trad. Boris Schnaiderman, Editora 34, 2007, pg 62)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

"Olhar o" x "Estar em"

"- Não podias - disse -. Pensas demais antes de fazer nada.
- Parto do princípio que a reflexão deve preceder a ação, bobinha.
- Partes do princípio... Que complicado! És como uma testemunha, és como aquele que vai ao museu e olha os quadros. Quero dizer, os quadros estão aí e tu no museu, próximo e longe ao mesmo tempo. Eu sou um quadro. Rocamandour é um quadro. Etienne é um quadro, este quarto é um quadro. Acreditas que estás neste quarto, mas não estás. Estás olhando o quarto, não estás no quarto.
- Esta guria falaria mal de São Tomás - disse Oliveira.
- Por que São Tomás? Esse idiota que queria ver para crer?
- Sim, querida - disse Oliveira, pensando que no fundo a Maga tinha encontrado o verdadeiro santo. Feliz dela que podia crer sem ver, que ganhava corpo com a duração, o continuo da vida. Feliz dela que estava dentro do quarto, que encontrava cidadania em tudo o que tocava e com tudo que convivia, era peixe no rio abaixo, folha na árvore, nuvem no céu, imagem no poema."

Julio Cortazar
(Traduzido livremente de "Rayuela", Sudamericana 1963, pg 21)

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A andorinha e os rios metafísicos

"Em rios metafísicos, ela nada como essa andorinha está nadando no céu, girando alucinada em torno ao campanário, deixando-se cair para levantar-se melhor com o impulso. Eu descrevo e defino e desejo esses rios, ela neles flutua. Eu busco-os, encontro-os, olho-os de cima da ponte, ela neles nada. E não sabe, assim como a andorinha. Não necessita saber como eu necessito, pode viver em desordem sem que nenhuma consciência de ordem a retenha. Essa desordem que é sua ordem misteriosa, essa boemia do corpo e alma que a ela abre as verdadeiras portas." 

Julio Cortazar
(Traduzido livremente de "Rayuela", Sudamericana 1963, pg 79)

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Nas viradas do acaso

"O mundo não é eterno e tudo tem um prazo
Nossas vontades mudam nas viradas do acaso;
Pois esta é uma questão ainda não resolvida:
A vida faz o amor, ou este faz a vida?
Se o poderoso cai, somem até favoritos;
Se o pobre sobe surgem amigos irrestritos.
E até aqui o amor segue a fortuna, eu digo;
A quem não precisa nunca falta um amigo.
Mas quem, precisado, prova um falso amigo
Descobre, oculto nele, um inimigo antigo."

William Shakespeare
(Em "Hamlet", trad. Millôr Fernandes, L&PM 2004, pg 74)

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A consciência é um atravessar coisas em direção a outras

"Eu não apreendo minha mão no ato de escrever, somente a caneta com a qual estou escrevendo; isto significa que eu uso minha caneta de modo a formar letras mas não minha mão de modo a segurar a caneta. Não estou em relação com a minha mão do mesmo modo que estou em relação com a caneta. Eu sou minha mão."

Jean-Paul Sartre
(Traduzido livremete de "Being and Nothingness", trad. H. Barnes, Methuen, 1943 pg 426)