sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A servidão é coletiva...

"Ah! Os sonsos, atores, hipócritas, e ainda por cima tão comoventes! Acredite-me, todos o são, mesmo quando ateiam fogo no céu. Quer sejam ateus ou devotos, moscovitas ou bostonianos, são todos cristãos, de pai para filho. Mas precisamente, já não há pai, já não há regra! Somos livres, é preciso, então, se virar, e como, sobretudo, eles não querem liberdade, nem suas sentenças, pedem para ser repreendidos, inventam regras terríveis, correm para fazer fogueiras em substituição às igrejas. É como eu lhe digo, são uns Savonarolas. Mas só crêem no pecado; na graça, nunca. Pensam nela, é bem verdade. A graça, eis o que eles querem, o sim, o abandono, a felicidade de ser e, quem sabe, porque eles também são sentimentais, o noivado, a moça em flor, o homem direito, a música. Eu, por exemplo, que não sou sentimental, quer saber com o que sonhei? Com um amor total, de corpo e alma, dia e noite, em um abraço sem fim, de prazer e de exaltação, durante cinco anos seguidos e, depois disso, a morte. Ai de mim!
 
E então, não é assim, à falta de noivado ou do amor incessante, resta o casamento, brutal, com a força e o chicote. O essencial é que tudo se torne simples, como para a criança, que cada ato seja comandado, que o bem e o mal sejam designados de maneira arbitrária, portanto evidente. E eu estou de acordo com isso, por mais siciliano e javanês que seja, e além de tudo sem nada de cristão, se bem que tenha amizade pelo primeiro que me apareça. Mas, nas pontes de Paris, eu também compreendi que tinha medo da liberdade. Viva, pois, o senhor; qualquer que ele seja, para substituir a lei do céu. 'Pai nosso que estais provisoriamente aqui... Nossos guias, nossos chefes deliciosamente severos, ó condutores crués e bem-amados...' Enfim, como se vê, o essencial é não mais ser livre e sim obedecer, no arrependimento, a quem for mais malandro do que nós. Quando formos todos culpados, será a democracia. Sem contar, caro amigo, que é preciso nos vingarmos de ter de morrer sozinhos. A morte é solitária, ao passo que a servidão é coletiva. Os outros também têm a sua conta, e ao mesmo tempo que nós, eis o que importa. Todos reunidos, enfim, mas de joelhos e de cabeça baixa."

Albert Camus
(Em "A Queda", tradução Valerie Rumjanek, Record 2004, pg 102)