segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O problema contemporâneo da privacidade

"Privacidade, para mim, não significa esconder dos outros a minha vida privada. Significa sim evitar que a vida privada dos outros invada a minha!"

Jonathan Franzen
(Traduzido livremente de "Più lontano ancora", Silvia Pareschi (trad.), Einaudi, 2012, pg. 133)

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A moral e as religiões

"Há muitas religiões, mas há somente uma moral. Há religiões morais e outras imorais, que diferem tanto nas doutrinas quanto nas emoções que provocam; mas há somente uma moral, que tem sido e sempre será um instinto nos corações de todos os homens civilizados, tão certo e inalterado quanto a existência de seus corpos exteriores, e que não recebe da religião nem lei, nem fundação, mas apenas esperança e felicidade."

John Ruskin
(Traduzido livremente de "Lectures on Art", Dodo Press, parágrafo 37, pg 23)

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Azul morto

"O azul do Mediterrâneo não me atrai mais. A transparência das suas águas, tão apreciada pelos turistas, é a transparência de uma piscina estéril. Em suas praias há poucos odores, e poucos pássaros, e o fundo do mar estará logo vazio. A maior parte do peixe consumido na Europa vem de pesca ilegal, sem que ninguém faça pergunta, no oceano a oeste da África. Olho o azul e, em vez de um mar, vejo um cartão postal, fino e frágil."

Jonathan Franzen
(Traduzido livremente de "Più lontano ancora", Silvia Pareschi (trad.), Einaudi, 2012, pg. 99)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Novos tempos

"Os romances longos escritos hoje são talvez um contrassenso: a dimensão temporal desmanchou-se em frangalhos, não podemos viver ou pensar sem ser pedaços de tempo que se estendem cada um em sua própria trajetória e de repente desaparecem. A continuidade do tempo pode ser encontrada somente nos romances daquela época na qual o tempo não aparecia mais como se estivesse parado e nem ainda como se tivesse sido explodido, uma época que durou cerca de cem anos, e depois acabou-se."

Italo Calvino
(Traduzido livremente de "Se una notte d'inverno un viaggiatore", Oscar Mondadori, 2002, pg 9)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

A dor não te matará!

[É mais uma ocasião para postagens longas, depois de dias de silêncio.]

"Bom dia, classe de 2011. Bom dia, familiares e professores. Estou feliz e honrado por estar aqui com vocês.

Assumo que vocês sabiam o que encontrariam quando escolheram um escritor para pronunciar este discurso. Farei aquilo que fazem normalmente os escritores, isto é, falarei de mim mesmo na esperança que a minha experiência tenha alguma afinidade com as suas. Gostaria de aproximar-me do argumento sobre o amor, do papel que ele possui na minha vida e no estranho mundo tecnocapitalista que vocês estão herdando.

Algumas semanas atrás, substituí o BlackBerry Pearl que possuí nos últimos três anos por um BlackBerry Bold, muito mais potente, dotado de câmera de 5 megapixels e compatível com a rede 3G. É inútil dizer que  fiquei impressionado com os progressos tecnológicos atingidos ao longo dos últimos três anos. Até mesmo quando não devia telefonar, mandar mensagem ou e-mail, queria continuar a afagar meu novo BlackBerry, a saborear a maravilhosa nitidez da tela, o funcionamento aveludado do minúsculo trackpad, a assombrosa velocidade de reação, a sedutora elegância da gráfica. Em poucas palavras, apaixonei-me pelo novo dispositivo. Tive também uma paixão análoga por aquele velho, naturalmente, mas com o passar dos anos nosso relacionamento foi se degradando. Entre mim e meu Pearl havia os comuns problemas de confiança, responsabilidade e compatibilidade, e, próximo do fim, eu tinha inclusive começado a duvidar da sua saúde mental, até que decidi ser aquela a hora de acabar com a relação.

Ocorre talvez sublinhar que aquela relação - se não viermos a crer em alguma projeção antropomórfica maluca que me fizesse ver o velho BlackBerry entristecer-se pelo fim do meu amor - era totalmente unilateral? Permitam-me sublinhá-lo de qualquer modo. Permitam-me também sublinhar que em todas as descrições dos dispositivos de última geração aparece sempre a palavra "sexy"; que as coisas fantásticas atingíveis hoje com tais dispositivos - colocá-los em funcionamento pronunciando uma fórmula mágica, por exemplo, ou aumentar a imagem no iPhone com um simples movimento de dedos - seriam, às pessoas de 100 anos atrás, algo como encantos maravilhosos; e que, quando queremos descrever uma relação erótica que funciona maravilhosamente, falamos propriamente de "magia". Permitam-me propor a ideia de que, seguindo a lógica do tecnoconsumismo, segundo a qual os mercados descobrem os desejos dos consumidores e reagem em consequência, a tecnologia tornou-se habilíssima no ato de criar produtos correspondentes a um nosso ideal de relação erótica na qual o objeto amado não pede nada mas concede tudo, sem retardo, provocando-nos a sensação de onipotência, e não se desespera em escândalos quando é jogado em uma caixa e substituído por outro objeto ainda mais sexy; segundo esta ideia (em um plano mais geral), o objetivo último da tecnologia, o telos da techne, seria substituir um mundo natural indiferente aos nossos desejos - um mundo de furacões, sofrimentos e corações frágeis; um mundo de resistência - com um mundo de tal modo sensível a estes mesmos desejos que se transforma, em prática, numa mera extensão do eu. Permitam-me sugerir, portanto, que o mundo do tecnoconsumismo seja obstaculado pelo amore verdadeiro, e que, para se defender deste amor, não lhe resta nada sem ser obstaculá-lo em retorno.

A primeira linha de defesa consiste em mercantilizar o inimigo. Todos vocês certamente têm em mente algum caso de nauseante mercantilização do amor. Os meus exemplos favoritos compreendem a indústria do matrimônio, as propagandas televisivas com pequenas e adoráveis crianças, ou onde se passa a ideia de um automóvel como presente de Natal, e a equiparação, particularmente grotesca, entre diamantes e devoção eterna. A mensagem, em qualquer caso, é que se você ama alguém, então deve comprar algo.

Um fenômeno ligado a tudo isto é a atual transformação, gerada pelo Facebook, do verbo "gostar": de uma disposição de ânimo a uma ação executada com o mouse; de um sentimento a uma afirmação de escolha do consumidor. E em geral, na cultura comercial, "gostar" substituiu "amar". O aspecto mais evidente destes produtos de consumo - e em particular dos dispositivos eletrônicos e das suas aplicações - é que eles são projetados para serem imensamente prazerosos. Esta é, de fato, a definição do produto de consumo, ao contrário do produto que se limita a ser aquilo que é, sem que seus fabricantes queiram torná-lo mais prazeroso a todo custo: penso por exemplo nos motores de jatos, nos equipamentos de laboratório, na arte e na literatura séria.

Mas se vocês considerarem tudo isto de um ponto de vista humano, e imaginarem uma pessoa caracterizada de um desejo desesperado de prazer, o que vocês verão? Verão uma pessoa desequilibrada, sem integridade. Nos casos mais patológicos verão um total narcisista: uma pessoa que não suporta não ser agradável aos demais porque isto afetaria a imagem que ela tem de si mesma, e por isso evita qualquer contato humano, ou então faz de tudo para ser agradável a todos, sacrificando a própria integridade.

Porém, se hoje vocês dedicam as suas existências à tentativa de ser agradável aos outros, e assumem a imagem mais cativante possível, talvez seja porque vocês não acreditam na possibilidade de serem amados por aquilo que verdadeiramente são. E se vocês conseguirem ser amados pelos outros apenas com esta fraude, então será difícil depois não provar um certo desprezo por quem caiu no golpe. Os outros existirão para fazer com que vocês se sintam bem consigo mesmos, mas este sentimento de bem-estar será confiável se provem de pessoas que vocês não respeitam? Poderão acabar na depressão, entregues ao álcool, ou, se forem como Donald Trump, candidatando-se à presidência (e depois desistindo).

Os produtos tecnológicos de consumo não farão nunca nada de desagradável, naturalmente, porque não são pessoas. Porém, são grandes aliados do narcisismo, nutrem-no e sustentam-no. A sua ânsia intrínseca de prazer convive com uma ânsia intrínseca de mostrar uma bela figura. A nossa vida parece ser muito mais interessante quando é filtrada pela interface sexy do Facebook. Somos os protagonistas do nosso filme, fotografamo-nos sem limites, basta um click para uma máquina confirmar nosso sentimento de superioridade. E como a tecnologia não é outra coisas senão uma extensão de nós mesmos, não somos obrigados a desprezá-la, pois ela se deixa transformar naquilo que quisermos, ao contrário do que ocorre com pessoas verdadeiras. É um único, grande círculo vicioso. O espelho é-nos agradável e nós somos agradáveis ao espelho. Tornar-se amigo de alguém no Facebook significa simplesmente incluir este alguém na nossa sala particular de espelhos aduladores.

Talvez eu esteja exagerando um pouco. Vocês não aguentam mais escutar cinquentenários escorbúticos que desprezam as mídias sociais. Mas a minha intenção aqui é sobretudo contrapor a tendência narcisística da tecnologia ao problema do amor real. A minha amiga Alice Sebold fala de "sujar as mãos amando alguém". Refere-se então à lama que inevitavelmente o amor espirra sobre o espelho da nossa vaidade. O fato é que o desejo de prazer a qualquer custo é incompatível com uma relação sentimental. Cedo ou tarde, por exemplo, vocês encontrar-se-ão em uma briga terrível, e lhes sairá da boca coisas que não lhes agradarão em nada, que destruirão as suas imagens de pessoas boas, gentis, tranquilas, atraentes, equilibradas, divertidas, agradáveis. Emergirá um lado mais autêntico, e de repente vocês serão catapultados na vida verdadeira. De repente encontrar-se-ão diante à necessidade de uma escolha verdadeira: no lugar da falsa escolha de consumo entre BlackBerry e iPhone, uma pergunta: amo esta pessoa? E esta pessoa me ama? O verdadeiro eu de um individuo não poderá nunca agradar-lhes totalmente. Eis porque um mundo feito de coisas que nos agradam totalmente é substancialmente uma mentira. Porém é sem dúvida possível amar totalmente o verdadeiro eu de um individuo. E eis porque o amor representa uma ameaça existencial para a ordem tecnoconsumista: porque desmascara a mentira.

Uma coisa que me anima, no meio da invasão de telefones celulares que aflige meu quarteirão em Manhattan, é que por vezes, entre os zumbis enviando mensagens e os organizadores de eventos que tagarelam na calçada, acontece de ouvir alguém que está tendo uma bela briga, como Deus ordena, com a pessoa amada. Estou certo que aquela pessoa preferiria não brigar em meio à rua, porém isto lhe acontece, e ela se comporta de maneira nada tímida. Grita, acusa, suplica, insulta. Estas são as coisas que me dão esperança.

Isto não significa que o amor seja feito apenas de brigas, e nem que as pessoas profundamente egocêntricas não sejam capazes de acusar e insultar. Na realidade, o amor é feito de empatia sem medida, um sentimento que nasce da descoberta íntima que uma outra pessoa é tão real quanto vocês. E é por isto que o amor, do modo como o vejo, é sempre específico. Esforçar-se para amar toda a humanidade pode ser uma tarefa admirável, mas, estranhamente, a atenção permanece focada apenas sobre o eu, sobre o bem-estar moral e espiritual do eu. Enquanto que para se amar uma pessoa específica, para se identificar com as suas lutas e alegrias como se fossem nossas, devemos sacrificar uma parte do nosso eu.

Durante o último ano da universidade, acompanhei o seminário de teoria literária organizado do instituto e apaixonei-me da estudante mais brilhante do curso. Gostávamos da sensação imediata de poder, gerada pela teoria literária - que nisto lembra a atual tecnologia de consumo - e orgulhávamo-nos por sermos muito mais sofisticados do que aqueles que permaneciam ligados à chatice da leitura cuidadosa. Além disso, por uma série de razões teóricas, parecia-nos que seria uma boa ideia nos casar. Minha mãe, que por vinte anos procurou transmitir-me o desejo de uma relação sentimental séria, mudou de ideia e começou a insistir para que eu transcorresse a minha juventude, para dizer com suas palavras, "livre como o vento". Naturalmente, como pensei que minha mãe tinha errado antes, decidi que estava errando também nisso. E tive que aprender, às minhas custas, que uma relação séria é uma questão bem embrulhada.

A primeira coisa da qual nos livramos foi a teoria. Para citar uma frase memorável daquela que seria depois minha esposa, após uma cena infeliz na cama: "Não podes desconstruir e despir-te ao mesmo tempo". Passamos um ano em dois continentes diversos, e muito rápido descobrimos que, por mais que fosse divertido encher as páginas de nossas cartas de refrões teóricos, lê-las era muito menos divertido. Mas aquilo que acabou definitivamente com minha paixão pela teoria - e começou a curar-me, de modo geral, da obsessão de agradar aos outros - foi o amor pela narrativa. Existe talvez uma semelhança superficial entre a revisão de um pedaço de narrativa e a revisão da própria página web ou do próprio perfil no Facebook; mas uma página de prosa não possui aquela gráfica brilhante que ajuda a melhorar a própria imagem de si. Se vocês quiserem retribuir aquilo que receberam por meio da narrativa de alguém,  não poderão ignorar por muito tempo aquilo que é desonesto ou reciclado nas suas páginas. Também estas páginas são um espelho, e se vocês verdadeiramente amam escrever, então perceberão que as únicas páginas que valem ser conservadas são aquelas que refletem o verdadeiro eu.

O risco, naturalmente, é a rejeição. Todos podemos suportar não sermos agradáveis a alguém, de tempo em tempo, já que a reserva de potenciais admiradores é sempre finita. Mas despir completamente nosso verdadeiro eu, não apenas a superfície agradável, e vê-lo ser rejeitado pode ser catastroficamente doloroso. É a perspectiva da dor em geral - dor da perda, da separação, da morte - que nos força a evitar o amor e permanecer em segurança com as coisas que gostamos. Eu e minha esposa, depois de nos casarmos muito jovens, acabamos por renunciar a nós mesmos, causando-nos tanto mal que nos arrependemos de ter dado aquele passo.

Mas não posso afirmar que estou completamente arrependido. Em primeiro lugar, o esforço de ser fiel ao empenho recíproco plasmou a nossa identidade; não éramos moléculas de hélio que flutuavam inertes através da existência: a nossa ligação nos transformou. Em segundo lugar - e este é talvez a mensagem principal que queria transmitir-lhes hoje - a dor faz mal, mas não mata. Se considerarem a alternativa - um sonho anestesiado de autossuficiência, preferido pela tecnologia -, a dor então lhes aparecerá como o resultado natural e o indicador natural do fato de vocês estarem vivos em um mundo que opõe resistência. Transcorrer uma vida inteira sem dor significa não ter jamais vivido realmente. Quem de vocês diz a si mesmo: "Oh, a esta fase de amor e de dor chegarei depois, talvez lá pelos meus trinta", terá diante a si uma década na qual se limitará a ocupar espaço sobre o planeta e queimar recursos. Uma década na qual não será outra coisa senão um consumidor (e refiro-me ao sentido mais negativo da palavra).

Aquilo que afirmei antes, o fato do envolvimento sério com quem se ama obrigar-nos a enfrentar o nosso verdadeiro eu, aplica-se talvez em modo particular à escrita, mas vale na prática para todo trabalho desenvolvido com amor. Gostaria então de concluir falando de um outro dos meus amores.

Quando frequentava a universidade, e depois ainda por muitos anos, a natureza me atraía. Não a amava, mas decididamente ela me atraía. A natureza pode ser muito bonita. E visto que eu estava possuído da chama da teoria crítica, e procurava pelas coisas erradas do mundo e pelos motivos para odiar as pessoas que o governam, fui naturalmente levado ao ambientalismo, pois a nossa relação com o ambiente tinha muitas coisas erradas. Quanto mais me preocupava com o que há de errado - a explosão demográfica, o consumo desenfreado de recursos, o aumento da temperatura global, a devastação dos oceanos, a derrubada das últimas florestas tropicais -, mais me enfurecia e mais odiava os outros. Ao cabo, mais ou menos no período em que meu matrimônio ia se desmanchando e eu percebia que sofrer era uma coisa mas passar o resto da minha vida sempre cada vez mais enfurecido e infeliz era outra bem diferente, decidi em plena consciência parar de preocupar-me com o ambiente. Não havia nada de significativo que eu pudesse fazer sozinho para salvar o planeta, e preferi simplesmente continuar a ocupar-me das coisas que amava. Buscava ainda reduzir o meu impacto ambiental, mas era o máximo que podia fazer sem retornar à raiva e ao desespero.

Então, aconteceu-me uma coisa estranha. É uma história longa, mas em prática apaixonei-me dos pássaros. Não cedi sem opor resistência, porque ser um birdwatcher é uma coisa para fracassados, pois tudo aquilo que revela uma paixão autêntica é por definição uma coisa de fracassados. Porém, pouco a pouco, malgrado meu, cultivei-a, esta paixão, e se é verdadeiro que uma paixão é feita metade de obsessão, a outra metade é feita de amor. E então comecei a manter um elenco meticuloso dos pássaros que encontrava, e também a fazer loucuras para encontrar novas espécies. E, algo não menos importante, cada vez que via um pássaro, qualquer pássaro, mesmo um pombo ou um pardal, meu coração transbordava de amor. E o amor, como tentei dizer-lhes hoje, é o início de todos nossos problemas.

Pois agora, como não podia simplesmente dizer que gostava da natureza e ponto final, visto que eu amava uma parte específica e vital desta natureza, tive que recomeçar a me preocupar pelo ambiente. As notícias daquele fronte não eram melhores do que quando eu havia decidido parar - ao contrário, eram muito piores - mas agora as florestas, os pântanos, os oceanos ameaçados não representavam mais apenas belas paisagens. Eram a casa dos animais que amava. E então emergiu um paradoxo curioso. A preocupação pelos pássaros selvagens aumentou em mim a raiva, a dor e o desespero pelo planeta, mas, quando comecei a empenhar-me ativamente na proteção dos pássaros e aprendi ainda mais sobre as numerosas ameaças que devem ser afrontadas, achei estranhamente mais fácil, em vez de ser mais difícil como se esperaria, conviver com a raiva, o desespero e a dor.

Como é possível? Antes de mais nada, creio que o amor pelos pássaros deu-me acesso a uma parte importante de mim, uma parte menos egocêntrica, a qual ignorei por toda minha existência. Ao invés de continuar a viver a rotina de cidadão global entre coisas que me agradavam e coisas que não me agradavam,  adiando meu empenho a um futuro indefinido, tive então que encarar definitivamente um eu que podia somente ser aceito ou rejeitado em bloco. Este é o efeito do amor sobre as pessoas. Pois a realidade fundamental da vida é que estamos vivos um pouco, mas cedo ou tarde morreremos. Esta realidade é a verdadeira causa da raiva, da dor e do desespero. Vocês podem fugir desta realidade, ou então, através do amor, aceitá-la. 

Como eu dizia, esta história dos pássaros foi totalmente inesperada. Por boa parte da minha existência eu não tinha nunca provado um interesse particular pelos animais. E talvez tenha sido uma infelicidade ter descoberto os pássaros assim tão tarde, ou talvez tenha sido uma grande felicidade simplesmente tê-los descoberto. Mas uma vez que um amor como este lhes golpeia, ocorra isto cedo ou tarde, a sua relação com o mundo muda. Eu, por exemplo, tinha abandonado o jornalismo depois das primeiras tentativas, porque o mundo dos fatos não me entusiasmava como aquele da fantasia. Mas quando a minha conversão ornitológica ensinou-me a correr na direção da dor, da raiva, do desespero, em vez de evitá-los, comecei a aceitar um novo tipo de atribuição jornalística. De tempos em tempos a coisa que eu mais odiava virava o argumento sobre o qual queria escrever. Fui a Washington no verão de 2003, enfurecido por aquilo que a administração Bush estava fazendo ao país. Alguns anos depois fui à China, pois a raiva pelos desastres ambientais provocados pelos chineses deixava-me acordado à noite. Andei pelo Mediterrâneo para entrevistar os caçadores que massacravam os pássaros migratórios. Cada vez, quando encontrava os meus inimigos, encontrava neles também algo que me agradava, por vezes até que eu amava.  Jovens chineses amantes da natureza e incrivelmente corajosos. Membros gays do quadro de funcionários do partido republicano, divertidos, generosos e brilhantes. Um legislador italiano com o olhar doce e a mania pelas armas, que me citou Peter Singer, o defensor dos direitos dos animais. Em cada caso, era difícil continuar a sentir aquela aversão genérica que eu havia provado no início.

Quando vocês se fecharem em um quarto alimentando a raiva, o desprezo, a indiferença, como eu fiz por tantos anos, o mundo e seus problemas parecerão impossíveis de serem afrontados. Mas quando saírem do quarto e empenharem-se numa relação real com pessoas reais, ou mesmo com animais reais, vocês correrão o risco muito real de acabar amando alguém. E então quem sabe o que poderá acontecer?

Obrigado."

Jonathan Franzen
(Discurso na cerimônia de graduação do Kenyon College, em maio de 2011. Traduzido livremente de "Più lontano ancora", Silvia Pareschi (trad.), Einaudi, 2012, cap. 1)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Função da arte

"A função real da arte, mais do que exprimir sentimentos, é transmitir compreensão."

Rubem Fonseca
(Em "O Caso Morel", Folha de São Paulo (editora), 2003, pg 68)

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Canalhada

"Os canalhas explicam o Brasil de hoje. Eles têm raízes: avô ladrão, bisavô negreiro e tataravô degredado. Durante quatro séculos, homens como eles criaram capitanias, igrejas, congressos, labirintos. Nunca serão exterminados; ao contrário - estão crescendo. Acham-se sempre certos, pois são 'vítimas' de um mal antigo: uma vingança pela humilhação infantil, pela mãe lavadeira ou prostituta que trabalhou duro para comprar seu diploma falso de advogado. Não adianta prender nem matar; sacripantas, velhacos, biltres e salafrários renascerão com outros nomes, inventando novas formas de roubar o País."

Arnaldo Jabor
(Em sua coluna de hoje no Estadão)

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Meia-velocidade

"- Por agora você deve estar então bem cansado.
- Não, eu disse. Cansado, não. Mas eu lhe direi, Capitão Giles, como estou me sentindo. Eu me sinto velho. E devo estar. Todos vocês aqui em terra me parecem um bando de rapazolas levianos que nunca souberam o que é uma preocupação na vida.
   Ele não sorriu. Manteve uma expressão insuportavelmente exemplar. E declarou:
- Isto passa. Mas você parece mais velho - é fato.
- Aha! eu disse.
- Não! Não! A verdade é que não se deve dar importância demais a nada na vida, bom ou ruim.
- Viver a meia-velocidade, murmurei perversamente - nem todos conseguem fazê-lo.
- Logo você estará satisfeito se conseguir tocar mesmo nesse passo, ele retorquiu com seu ar de virtude consciente. - E há mais uma coisa: um homem deveria enfrentar sua má sorte, seus erros, sua consciência, e todas essas coisas. - Ora - o que mais há para se combater?
   Eu fiquei quieto. Não sei o que ele viu no meu rosto, mas perguntou repentinamente:
- Ora - você não está desanimado?
- Só Deus sabe, Capitão Giles, foi minha resposta sincera.
- Está tudo certo, ele disse calmamente. - Você logo aprenderá a não ficar desanimado. Um homem tem que aprender tudo - e isso é o que tantos daqueles jovens não entendem. 
- Bem, eu não sou mais um jovem.
- Não, ele admitiu. "

Joseph Conrad
(Em "A Linha de Sombra", Maria Antonia Van Acker (trad.), Hermus 2003, pg 153-154)

domingo, 11 de novembro de 2012

Linha de Sombra

"Apenas os jovens têm tais momentos. Não me refiro aos muito jovens. Não. Os muito jovens não têm, a bem dizer, momento algum. É um privilégio do começo da juventude viver adiante de seus dias, em toda a bela continuidade de esperança que não conhece pausas ou interrupções.

Fecha-se atrás de si o pequeno portão da mera meninice - e adentra-se um jardim encantado. Até as sombras aqui resplandecem cheias de promessas. Cada curva da vereda tem suas seduções. E não porque se trate de um país desconhecido. Sabe-se muito bem que a humanidade toda já trilhou aquela senda. É o encanto da experiência universal, da qual se espera extrair uma sensação incomum ou pessoal - um algo que seja só nosso.

Vai-se reconhecendo os marcos dos predecessores, excitado, divertindo-se, aceitando a boa como a má sorte - as rosas e os espinhos, como se costuma dizer -, o pitoresco lote padrão, que guarda tantas possibilidades para os merecedores, ou talvez para os afortunados. Sim. Vai-se adiante. E o tempo, também, caminha - até que se percebe logo adiante uma linha de sombra avisando-nos que também a região da mocidade deverá ser deixada para trás.

Este é o período na vida no qual os tais momentos de que falei costumam aparecer. Que momentos? Ora, os momentos de tédio, de desânimo, de insatisfação. Momentos temerários. Quero dizer, momentos em que os ainda jovens estão propensos a cometer gestos temerários, como casar-se de repente ou então abandonar um emprego sem motivo algum..."

Joseph Conrad
(Em "A Linha de Sombra", Maria Antonia Van Acker (trad.), Hermus 2003, pg 15)

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Dia de São Nunca

"Fosse o Tempo suspender-se em espera pela cessão de nossas favoritas loucuras, permaneceríamos jovens - todos nós - até o fim do mundo." 

Nathaniel Hawthorne
(Traduzido livremente de "Wakefield", em "Complete works of Nathaniel Hawthorne", Delphi Classics - Kindle, Location 36739)

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O estrondo que joga luz sobre as sombras

"Foi quando estrondou... Mas a reserva e o pudor impedem-nos de empregar termos exagerados ao contar o que então ressoou e sucedeu. Justamente nesse ponto não cabem nem bravatas nem fanfarrices. Abafemos a voz para comunicar que de fato estrondeou aquele trovão, de que todo mundo tem conhecimento, a ensurdecedora detonação da sinistra mistura de tédio e de irritação de há muito acumulados; um trovão histórico - seja dito com discreta reverência - que abalou os alicerces da terra, e, para nós, o trovão que fez explodir a montanha mágica e arremessou o nosso dorminhoco brutalmente diante das portas. Estupefato, o jovem se acha sentado na relva e esfrega os olhos, como faz quem se omitiu, em que pesem numerosas admoestações, de ler os jornais. Seu amigo e mentor do Mediterrâneo sempre procurara remediar esse mal e se esforçara para informar o filho enfermiço dos seus esforços pedagógicos em grandes linhas a respeito daquilo que acontecia lá embaixo. Mas encontrara ouvidos moucos por parte de um discípulo que, ao "reinar", imaginava, na verdade, isto ou aquilo das sombras espirituais das coisas, mas não se preocupava com as próprias coisas, devido a uma tendência arrogante para tomar as sobras pelas coisas e para ver nestas apenas sombras. E não devemos censurá-lo severamente por causa disso, visto a relação entre sombras e coisas não estar definitivamente esclarecida. "

Thomas Mann
(Em "A Montanha Mágica", Herbert Caro (trad.), Círculo do livro 1952, pg 861)

domingo, 4 de novembro de 2012

Escrúpulos do amor

"Ora, nada entenderia do amor quem supusesse que tais escrúpulos [contra os objetos do amor] poderiam prejudicá-lo. Pelo contrário, dão-lhe o verdadeiro sabor. Eles é que conferem ao amor o incentivo da paixão, de maneira que se poderia definir a paixão, de um modo absoluto, como o amor que duvida."

Thomas Mann
(Em "A Montanha Mágica", Herbert Caro (trad.), Círculo do livro 1952, pg 791)

sábado, 3 de novembro de 2012

Fim esquecido

"O Direito não é um fim, mas um meio. Na escala de valores, não aparece o direito. Aparece, no entanto, a justiça, que é um fim em si, e a respeito da qual o direito é tão-somente um meio para atingi-la. A luta deve ser, pois, a luta pela justiça. As questões não se dividem em pequenas ou grandes, mas em justas ou injustas. Nenhum advogado é demasiadamente rico para recusar causas justas porque sejam pequenas, nem tão pobre para aceitá-las, quando injustas, por serem grandes." 

 Eduardo Couture
(Em "Os Mandamentos do Advogado", Ovídio Baptista da Silva (trad.), Sérgio Antonio Fabris Editor 1979, p. 40)

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Mundus vult decipi... será?

"O interessante sempre é um pouco sinistro."

Thomas Mann
(Em "A Montanha Mágica", Herbert Caro (trad.), Círculo do livro 1952, pg 708)

domingo, 28 de outubro de 2012

Humor

"Se a gente já não sabe mais 
rir um do outro meu bem, 
então o que resta é chorar."

Los Hermanos
(Em "O Vento")

sábado, 27 de outubro de 2012

Expressão e conteúdo

"Deve-se expressar um mistério pelas palavras mais simples possíveis ou deixar de expressá-lo."

Thomas Mann
(Em "A Montanha Mágica", Herbert Caro (trad.), Círculo do livro 1952, pg 715)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Qual máscara?

"A máscara que pesa e nos sufoca talvez não seja (no estilo 1960) a cara impassível que esconderia nossas emoções reprimidas. As máscaras que pesam e nos sufocam talvez sejam as que vestimos para expressar e teatralizar emoções excessivas e obrigatórias, que todos esperam de nós."


Contardo Calligaris
(Em sua coluna desta quinta-feira no Estadão)

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Cupins da ciência

"As ações das quais vocês devem se precaver consistem na supervalorização das pequenas, mesmo se corretas, descobertas; na negação infundada de tudo que lhes parece ter sido infundadamente afirmado; e no deixar-se interessar demasiadamente pelo progresso de algumas mentes científicas, mentes estas que na sua compreensão do universo não podem ser comparadas com maior precisão senão aos cupins no painel de um grande pintor: provam com gosto a madeira, com repugnância a cor e declaram que mesmo esta indesejável combinação é o resultado normal da ação de forças moleculares..."

John Ruskin
(Traduzido livremente de "Lectures on Art", Dodo Press, parágrafo 40, pg 25)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

A bandeira da vida

"Os sábios da Idade Média afirmavam que o tempo era uma ilusão, que seu curso, entre causa e efeito, não passava do produto de um dispositivo dos nossos sentidos, e que o verdadeiro ser das coisas era um presente imutável. Terá passeado à beira-mar aquele doutor que foi o primeiro a conceber esse pensamento, saboreando nos seus lábios a leve amargura da eternidade? Seja como for, repetimos que aqui se falou de liberdades tais como a gente se permite nas férias, de fantasias inspiradas pelo ócio da vida, e das quais o espírito decente se farta tão depressa como um homem forte, do repouso na areia cálida. Criticar os meios e as formas do conhecimento humano, pôr em dúvida a sua validade objetiva, seria absurdo, desprezível e hostil, se tal atitude se baseasse numa outra intenção além da de designar à nossa razão limites que ela não pode transpor sem incorrer em negligência para com suas próprias funções. Devemos a nossa gratidão a um homem como o Sr. Settembrini, por ter tachado a metafísica de o "mal", ao instruir com a intransigência de um pedagogo o jovem cujo destino nos preocupa, e que ele mesmo, em certa ocasião, qualificara acertadamente de "filho enfermiço da vida". E a melhor maneira de honrarmos a memória de determinada pessoa a quem queremos muito é declarar que o sentido, o objetivo, o fim do princípio crítico não devem nem podem ser outros senão a ideia do dever e a lei da vida. Sim, a sabedoria do legislador, traçando criticamente os limites da razão, içou, nesses mesmos limites, a bandeira da vida e proclamou como um dever militar do homem servir sob essa bandeira."

Thomas Mann
(Em "A Montanha Mágica", Herbert Caro (trad.), Círculo do livro 1952, pg 661)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A amabilidade e a atrocidade

"Mas agora, do pé da minha coluna, abre-se uma vista nada má... Sonhei com a posição do homem e de sua comunidade polida, sisuda e respeitosa, a cujas costas se passava, no interior do templo, uma medonha ceia sangrenta. Será que os filhos do Sol se tratavam uns aos outros com tanta cortesia e amabilidade, precisamente na recordação silenciosa daquela atrocidade? Nesse caso tirariam uma conclusão muito sutil e elegante. (...) Vida ou morte, enfermidade ou saúde, alma e natureza - há oposição entre elas? Eu pergunto se constituem problema. Não! Não são problemas, e tampouco é o tal problema da sua distinção. A deserção da morte está encerrada na vida; sem ela não haveria vida, e a posição do Homo Dei acha-se no meio, entre a deserção e a razão, entre a coletividade mística e o individualismo inconsistente. É o que percebo da minha coluna. Nessa sua posição, cumpre-lhe viver de um modo fino e galante, e manter relações de amistoso respeito consigo próprio; pois só ele é distinto, e não as oposições. O homem é o dono das oposições que existem por seu intermédio, e por conseguinte ele é mais nobre do que elas. Mais nobre do que elas, mais nobre do que a morte, demasiado nobre para ela, e isso constitui a liberdade do seu cérebro. Mais nobre do que a vida, demasiado nobre para ele, e isso constitui a piedade do seu coração. Eis que acabo de fazer um poema, um devaneio poético sobre o homem. Quero lembrar-me dele. Quero ser bom. Não quero conceder à morte nenhum poder sobre os meus pensamentos! Nisso é que consiste a bondade e a filantropia, e em nada mais. A morte é uma grande potência. As pessoas tiram o chapéu e avançam a passo cadenciado, na ponta dos pés, quando ela está presente. Usa a cerimoniosa golilha do passado, e todos se vestem gravemente de preto em sua honra. Diante dela, a razão parece tola, porque é apenas virtude, ao passo que a morte é liberdade, deserção, amorfia e volúpia. A volúpia - clama o meu sonho -, não o amor! A morte e o amor, não, isso não rima; eles dão um poema insípido e falso! O amor enfrenta a morte; só ele, e não a razão, é mais forte do que ela. Só ele, e não a razão, inspira pensamentos bondoso. Também a forma não consta senão de amor e de bondade, a forma e a civilização de uma coletividade sensata e amável e de um belo Estado humano, na recordação silenciosa da ceia sangrenta. Ah, sim, isso se chama sonhar com clareza e 'reinar' bem!"

Thomas Mann
(Em "A Montanha Mágica", Herbert Caro (trad.), Círculo do livro 1952, pg 587-598)


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Querer e não querer

"Donde vem este prodígio? Qual o motivo? Fazei que brilhe a vossa misericórdia, e eu pergunte, pois talvez me possam responder os castigos sombrios dos homens e as tenebrosíssimas desolações dos filhos de Adão. Donde provém este prodígio? Qual a causa? A alma manda ao corpo, e este imediatamente lhe obedece; a alma dá uma ordem a si mesma, e resiste! Ordena a alma à mão que se mova, e é tão grande a facilidade, que o mandato mal se distingue da execução. E a alma é a alma, e a mão é corpo! A alma ordena que a alma queira; e, sendo a mesma alma, não obedece. Donde nasce este prodígio? Qual a razão? Repito: a alma ordena que queira - porque se não quisesse não mandaria - e não executa o que lhe manda! Mas não quer totalmente. Portanto, também não ordena terminantemente. Manda na proporção do querer. Não se executa o que ela ordena enquanto ela não quiser, porque a vontade é que manda, pois, se a vontade fosse plena, não ordenaria que fosse vontade, porque já o era. Portanto, não é prodígio nenhum, em parte querer e em parte não querer, mas uma doença da alma. Com efeito esta, sobrecarregada pelo hábito, não se levanta totalmente, apesar de socorrida pela verdade. São, pois, duas as vontades. Porque uma delas não é completa, encerra o que falta à outra."

Agostinho de Hipona
(Em "Confissões", J. Oliveira Santos (tradutor), Vozes - edição de bolso - 2011, pg 180)

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Sonho de pai

"Pois eu sempre considerei que deve ser muito satisfatório a um pai de idade avançada ensinar aos seus filhos a gestão dos seus negócios e ter o poder, durante sua vida, de controlar suas condutas enquanto ao mesmo tempo dá a eles a instrução e os conselhos baseados na sua própria experiência. Ele deve ser muito feliz ao assistir a honra e a ordem na sua própria casa quando ela estiver nas mãos dos seus sucessores, e então salvaguardar as esperanças que ele pode ter formado sobre o futuro de seus filhos."

Michel de Montaigne
(Traduzido livremente do ensaio "On the affection of fathers for their children", em "Complete Essays", J. M. Cohen (trad.), Penguin Books, 1958, pg 145)


domingo, 14 de outubro de 2012

O belo inútil

"Ora, o útil é muito menos adorável que o belo. Uma ação bela é estável e permanente; ela produz uma gratificação constante àquele que a performa. Uma ação útil, por outro lado, facilmente desaparece e se perde; e a memória dela não é nem tão fresca nem tão agradável. Aquelas coisas que são mais caras a nós são as que nos custaram mais; e é mais difícil dar do que receber."

Michel de Montaigne
(Traduzido livremente do ensaio "On the affection of fathers for their children", em "Complete Essays", J. M. Cohen (trad.), Penguin Books, 1958, pg 137)

sábado, 13 de outubro de 2012

God Save the Queen

"Esta faixa é essencialmente o motivo pelo qual os Europeus e Sul-americanos não podem ser considerados confiáveis em se tratando de cultura pop. O vídeo possui mais de 500 milhões de acessos no YouTube, o mesmo número de re-tweetadas que o Justin Bieber obtém ao dizer "Bom dia" - e vem graças a Michel Teló, um músico brasileiro que pensa que está tudo OK quando introduz acordeões em sua música. Deixe-me dizer algo a você, Michel: acordeões não possuem lugar na música pop. É um instrumento antiquado que faz a música soar como um jingle de alguma rádio local Romena, e é exatamente a isto que "Ai Se Eu te Pego" se assemelha. É a faixa número 1 em quase todo lugar, exceto aqui e nos Estados Unidos, onde as pessoas são normais, pensam corretamente e não são capazes de falar português. Deus salve a Rainha e tudo mais."

Joe Bishop
(Traduzido livremente de sua coluna no "The Guardian", deste sábado)

domingo, 7 de outubro de 2012

Lição de epistemologia espiritual

"Os resultados da paixão são os únicos resultados confiáveis, isto é, as únicas conclusões convincentes. Felizmente neste nível a existência é mais gentil e mais leal do que assegura o sábio, pois ela não exclui ninguém, nem mesmo o mais insignificante dos homens, ela não engana ninguém: no mundo do espírito só é enganado aquele que engana a si mesmo."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Fear and Trembling", In: "Fear and Trembling and The Book on Adler", Alfred Knopf - Everyman's Library, 1994, pg 88)

sábado, 6 de outubro de 2012

Caprichosos

"A arte parece ser o único paraíso onde o capricho e as manias pessoais ainda são permitidos e mesmo valorizados."

E. H. Gombrich
(como citado por Richard Woodfield em entrevista ao Estadão)

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A tarefa do artista

"A melhor coisa que a arte pode fazer é apresentar-nos a verdadeira imagem da presença de um ser humano nobre. Nunca ela fez mais do que isso, e não deveria jamais fazer menos."

John Ruskin
(Traduzido livremente de "Lectures on Art", Dodo Press, parágrafo 31, pg 21)

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A filosofia dos pobres de espírito

"Montaigne era um pai dedicado. Em um de seus mais célebres ensaios, ele discorreu sobre o afeto paterno, ostentando sua filha Léonor. Montaigne ostentou sua filha Léonor do mesmo jeito que eu ostentei meu filho Tito e Tom Cruise ostentou sua filha Suri. Léonor foi a Suri do Renascimento. Em outro de seus mais célebres ensaios, Montaigne argumentou que filosofar é aprender a morrer. Eu aprendi a morrer com a paternidade. Desde o dia em que Tito nasceu, fui totalmente anulado por ele. Perdi a vontade própria. Deixei de existir. Só um morto pode deixar de existir. Se filosofar é aprender a morrer, a paternidade é a filosofia do homem comum, a filosofia dos pobres de espírito, a filosofia das massas. É a única filosofia ao alcance de gente como eu e Tom Cruise."

Diogo Mainardi
(Em "A Queda", Record, 4ª ed, 2012, pg 106)

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A importância de dar nome aos bois

"Quando se traz ao mundo da consciência ou da superfície algo oculto, conhecemos o seu lugar e assim podemos situá-lo. A classificação - o lugar das coisas - é o primeiro passo para tentar levar a coisa ao seu lugar, isto é, a um conjunto." 

 Roberto DaMatta
(em sua coluna do Estadão de hoje)

domingo, 30 de setembro de 2012

Lição de uma (anti-)Arquivologia Natural

"Quando percorremos as bibliotecas, convencidos destes princípios, que devastação não deveremos produzir? Se tomarmos em nossas mãos um volume qualquer, de teologia ou metafísica escolástica, por exemplo, façamos a pergunta: Contém ele qualquer raciocínio abstrato referente a números e a quantidades? Não. Contém qualquer raciocínio experimental referente a questões de fato e de existência? Não. Às chamas com ele, então, pois não pode conter senão sofismas e ilusão."

David Hume
(Em "Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral", José Oscar de Almeida Marques (trad.), Editora UNESP, 2003 - Parte I: "Uma Investigação sobre o Entendimento Humano", seção XII, parágrafo 34)

sábado, 29 de setembro de 2012

Perda de tempo

"O que é o tempo? Um mistério: é imaterial e - onipotente. É uma condição do mundo exterior; é um movimento ligado e mesclado à existência dos corpos no espaço e à sua marcha. Mas deixaria de haver tempo se não houvesse movimento? Não haveria movimento sem o tempo? É inútil perguntar. É o tempo uma função do espaço? Ou vice-versa? Ou são ambos idênticos? Não adianta prosseguir perguntando. O tempo é ativo, tem caráter verbal, "traz consigo". Que é que traz consigo? A transformação. O Agora não é o Então; o Aqui é diferente do Ali; pois entre ambos se intercala o movimento. Mas, visto ser circular e fechar-se sobre si mesmo o movimento pelo qual se mede o tempo, trata-se de um movimento e de uma transformação que quase poderiam ser qualificados de repouso e de imobilidade: o Então repete-se constantemente no Agora, e o Ali repete-se no Aqui. Como, por outro lado, nem sequer os mais desesperados esforços nos podem fazer imaginar um tempo finito ou um espaço limitado, decidimo-nos a configurar eternos e infinitos o tempo e o espaço, evidentemente na esperança de obter dessa forma um resultado, senão perfeito, ao menos melhor. Ora, estabelecer o postulado do eterno e do infinito não significa, porventura, o aniquilamento lógico e matemático de tudo quanto é limitado e finito, e a sua redução aproximada a zero? É possível uma sucessão no eterno ou uma justaposição no infinito? São compatíveis com as hipóteses de emergência do eterno e do infinito, conceitos como os da distância, do movimento, da transformação, ou a simples existências de corpos limitados no Universo? Quantas perguntas improfícuas!

Thomas Mann
(Em "A Montanha Mágica", Herbert Caro (trad.), Círculo do livro 1952, pg 417)

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Moscas na vidraça

"Assim os físicos falam em teorias das cordas, em um universo em forma de donut, ou de bola de futebol, e isso é apenas o som da mente humana se chocando contra os limites da linguagem, como moscas (para usar outra analogia) na vidraça." 

Luís Fernando Veríssimo
(Em sua coluna de hoje no Estadão)

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Mídia e democracia

"Eis a suprema ironia: a mídia assume-se como o "quarto poder", destinado a vigiar e a denunciar os abusos de todos os outros. Mas a própria mídia serve de instrumento, voluntário ou involuntário, para dar luz e palco a personagens que jamais seriam eleitas por suas exclusivas habilitações. 

O resultado dessa perversidade é que cresce cada vez mais o abismo entre políticos que merecem ganhar eleições (independentemente da imagem) e políticos que podem ganhar eleições (independentemente da competência). A democracia midiática premia os segundos e ignora os primeiros. 

 Hoje, o obeso Churchill e o paralítico Roosevelt seriam ofuscados por um palhaço qualquer. Azar o deles? Não. Azar o nosso, leitor. Quem elege palhaços, acaba vivendo num circo."

João Pereira Coutinho
(Em sua coluna de hoje no Estadão)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Erros distintos

"Os erros da religião são perigosos, os da filosofia, apenas ridículos"

David Hume
(Em "Tratado da Natureza Humana", Editora UNESP, 2000, pg 304).

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O homem, sua natureza, sua filosofia

"O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência seu adequado alimento e nutrição. Tão estreitos, porém, são os limites do entendimento humano que pouca satisfação pode ser esperada nesse particular, tanto no tocante à extensão quanto à confiabilidade de suas aquisições. Além de um ser racional, o homem é também um ser sociável, mas tampouco pode desfrutar sempre de companhia agradável e divertida, ou continuar a sentir por ela a necessária atração. O homem também é um ser ativo, e é forçado, por essa inclinação e pelas variadas necessidades da vida humana, a dedicar-se aos negócios e ofícios; mas a mente exige algum descanso e não pode corresponder sempre a sua tendência ao trabalho e à diligência. Parece, então, que a natureza estipulou uma espécie mista de vida como a mais adequada aos seres humanos, e secretamente os advertiu a não permitir que nenhuma dessas inclinações se imponha excessivamente, a ponto de incapacitá-los para outras ocupações e entretenimentos. "Satisfaz tua paixão pela ciência", diz ela, "mas cuida para que essa seja uma ciência humana, com direta relevância para a prática e a vida social. O pensamento abstruso e as investigações recônditas são por mim proibidos e severamente castigados com a pensativa tristeza que ensejam, com a infindável incerteza em que serás envolvido e com a fria recepção dedicada a tuas pretensas descobertas, quando comunicadas. Sê um filósofo, mas, em meio a toda tua filosofia, não deixes de ser um homem."

David Hume
(Em "Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral", José Oscar de Almeida Marques (trad.), Editora UNESP, 2003 -  Parte I: "Uma Investigação sobre o Entendimento Humano", seção I, parágrafo 6)

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Dois lados

"Assim como as adulações dos amigos nos pervertem, as censuras dos inimigos nos reformam."

Agostinho de Hipona
(Em "Confissões", J. Oliveira Santos (tradutor), Vozes - edição de bolso - 2011, pg 200)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Informe-se

"Eu jamais sou otimista. Otimismo é má informação." 

Carlos Heitor Cony
(Em entrevista à Folha)

domingo, 16 de setembro de 2012

Conflitos internos

"O esforço excessivo da imaginação sempre impede o fluxo regular das paixões e sentimentos. Um poeta trágico que representasse seus heróis como muito engenhosos e espirituosos em meio a seus infortúnios jamais conseguiria tocar as paixões. Assim como as emoções da alma impedem qualquer raciocínio e reflexão sutil, essas últimas ações da mente são igualmente prejudiciais à primeira."

David Hume
(Em "Tratado da Natureza Humana", Editora UNESP, 2000, pg 219).

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Eleições

"Os políticos e as fraldas devem ser trocados frequentemente e pela mesma razão"

Eça de Queiroz
(Como citado por Roberto daMatta em sua coluna de hoje no Estadão)

terça-feira, 4 de setembro de 2012

English-man

"De posse de um nosso 'porquê' para a vida, seguiríamos adiante com qualquer que fosse o 'como'. O homem não ambiciona o próprio prazer, são só os ingleses que o fazem."

Friedrich Nietzsche
(Traduzido livremente de "The Twilight of Idols" - "Maxims and Arrows", Aforismo 12; em: "The Portable Nietzsche", Walter Kaufman (ed.), Penguin, 1977)


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Musculação moral

"Em tempos de tensão e vulnerabilidade, escolha a guerra: ela endurece, produz músculos." 

Friedrich Nietzsche
(Traduzido livremente de "The Will to Power", Walter Kaufman (trad.), Vintage, 1968 - Livro IV, Entrada 1040, pg 535)

domingo, 2 de setembro de 2012

A imprensa das massas

"Na nossa época, quando a gente recebia uma cartinha de leitor, a gente dizia, "esse cara é um louco", o cara que escreve cartinha para um jornal é um doido. Foi doido até a internet. Depois da internet ele ganhou um peso, ele virou alguém ... que tem voz, e infelizmente a imprensa segue o que esse idiota está falando. Eu sinto terror por essa transformação. No nosso tempo a gente dava para o secretário de redação escolher a [carta] que tinha um pouco mais de gramática. Mas era o desprezo mais absoluto. Porque o jornalista é que tinha que ver qual era a matéria mais importante, e não se basear na internet para ver o que podia vender mais jornais.... A imprensa se sujeitou bastante a isso ... agora mesmo o Mario Sérgio falou que o nosso programa está em quinto lugar no twitter. Como se isso significasse algo positivo. Não significa nada."

Diogo Mainardi
(Em entrevista ao Roda Viva, 20/08/2012)

sábado, 1 de setembro de 2012

Os mares abertos da verdade

"E alguém que contradiz a si mesmo mil vezes e segue por diversos caminhos, veste inúmeras máscaras e encontra-se sempre sem saída, sem horizonte: é possível que tal pessoa aprenda menos sobre a verdade do que aquele virtuoso Estóico, estabelecido de uma vez por todas em seu próprio lugar? Tais preconceitos encontram-se nos limiares de todas as filosofias correntes: e especialmente o preconceito de que a certeza é melhor que a incerteza e seus mares abertos."

Friedrich Nietzsche
(Traduzido livremente de como citado por Karl Löwith em "Nietzsche's Philosophy of the Eternal Recurrence of the Same", University of California Press, 1997, pg 15)

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O Progresso!... progresso?

"Deve-se ir além, deve-se ir além." Este impulso de ir além é algo muito antigo. Heráclito, o obscuro, que depositou seus pensamentos em seus escritos e seus escritos no Templo de Diana, Heráclito, o obscuro, disse "Não se pode passar duas vezes no mesmo rio". Heráclito, o obscuro, tinha um discípulo que não parou aí, ele foi além: "Não se pode passar nem mesmo uma vez!". Pobre Heráclito, pobre Heráclito por ter tal discípulo! Ao ir além, a tese de Heráclito foi tão melhorada a ponto de se tornar uma tese Eleática que nega o movimento, e porém este discípulo desejava somente ser um discípulo de Heráclito... e ir além - não para trás, voltando a uma posição que Heráclito mesmo havia abandonado.

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Fear and Trembling", In: "Fear and Trembling and The Book on Adler", Alfred Knopf - Everyman's Library, 1994, pg 110)

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Os privilégios espirituais

"Todos privilégios do espírito só são pagos com profundo sofrimento"

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Fear and Trembling", In: "Fear and Trembling and The Book on Adler", Alfred Knopf - Everyman's Library, 1994, pg 72)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Quando o que é grátis custa caro

"Vivemos a era do conhecimento. A produção do conhecimento é fundamental para o avanço de qualquer país. E esse tipo de produção tem de ser incentivada, e não minada. As empresas, ou pessoas, que defendem a pirataria online, ou a cópia irrestrita online, estão minando a produção do conhecimento nos seus respectivos países. Da mesma forma que não existe o milagre da multiplicação dos peixes, não existe o milagre da multiplicação do conhecimento. Sua produção exige formação, trabalho, investimento, e tudo isso tem de ser remunerado. Ninguém imagina que uma pessoa possa entrar numa livraria, pegar uma dúzia de livros e sair sem pagar. Mas algumas pessoas argumentam que na internet você pode e deve fazer isso."


Roberto Faith
(Em entrevista ao Estadão nesta última sexta-feira)

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Justiça social brazuca

" - (...) Agora eu tenho certeza de que, quando passar esse negócio do mensalão, eles vão adotar cota para tudo. Eu tive um professor, naquele tempo em que tinha professor, que dizia: "senhores, a sábia mão do homem ainda vai destruir o universo!" É verdade, é verdade!
- Mas não vai ser agora, podemos pedir uns pasteizinhos. 
- Aí é que você se engana, já está começando agora e vai se estender a tudo. Ao futebol mesmo, por exemplo. Futebol rende muitos problemas por falta de proporcionalidade em vários aspectos e falta de oportunidades para todos. Primeiro eles vão regulamentar as escalações: tem que ter cota racial. Cada jogador declara sua raça e aí a escalação mantém o equilíbrio racial através das cotas. Poderemos ver o Wagner Love declarando que se chama Wagner porque é de família alemã de pai e mãe e o Loco Abreu alegando que é zulu. Mas aí isso não resolve a desproporção entre as torcidas, de maneira que eles vão implantar as cotas de torcida. Cada torcedor será cadastrado numa torcida, devendo apresentar seu cartão de torcedor juntamente com o ingresso. Quando uma torcida ultrapassar o número de torcedores previsto pela cota, o torcedor tem de escolher outro time, em benefício de paz social e, em última análise, em seu próprio benefício. É um assunto complexo, mas nós temos parlamentares à altura das necessidades. Uma coisa é certa: não será permitida uma desproporção gritante, como existe hoje, por exemplo, entre a torcida do Flamengo e a do Olaria, a lei garantirá a todos os times o direito de ter torcedores. E digo mais. Não tem crime de falsidade ideológica? Pois vai ter crime de falsidade clubista. O camarada que for pegado torcendo por um time, mas portando a carteira de outro, perde o registro e não pode mais frequentar estádios, precisamos de leis severas. 
 - Você está delirando outra vez, eu nunca sei quando você está falando sério. 
 - Eu não estou delirando nada. Nem falei sobre as outras cotas dos times de futebol. Uma das primeiras a entrar na pauta vai ser a cota dos originários de comunidades carentes, logo seguida das dos jovens infratores em recuperação, dos homossexuais, da terceira idade, dos nativos do Estado onde fica a sede do time e por aí vamos, inclusive na Seleção. 
 - Você não acabou o segundo chope e já está de porre. Não está vendo que esse tipo de coisa nunca vai dar certo? 
 - Eu estou. Mas eles não, é por isso que eu me apavoro. Vai ter cota de mulher, pode escrever. Pra cada cinco gatas com quem você sair, vai ter que encarar uma dragonete, é a justiça social."

João Ubaldo Ribeiro
(Em sua coluna no Estadão de 19/08/2012)

domingo, 26 de agosto de 2012

Chafurdar na blogosfera pra quê?

"Com 40.000 novos livros publicados a cada ano pelas melhores casas do ramo - um número que a maioria das editoras admitiria ser demasiado - nós realmente precisamos chafurdar em esforços embaraçosos de centenas de milhares de novelistas, historiadores e memorialistas não publicados ou auto-publicados? De acordo com John Sutherland, chefe do comitê Man Booker Prize de 2005, "levaria aproximadamente 163 vidas para se ler toda a ficção disponível, ao click do mouse, na Amazon.com". E estes são apenas os romances selecionados profissionalmente, editados e publicados. Ora, realmente precisamos surfar nessa enorme onda de trabalhos de autores amadores que nunca foram selecionados para nenhuma publicação?"

Andrew Keen
(Traduzido livremente de "The cult of the amateur - How today's internet is killing our culture", Doubleday, 2007, pg 56)

sábado, 25 de agosto de 2012

Um pequeno fato

"O amor das letras em Alípio era o único bem que estava a ponto de o tentar. Poderia com os lucros de pretor mandar transcrever códices. Porém, sempre que consultava a justiça, deliberava pelo melhor, persuadido de que a integridade de que lhe proibia esta ação era muito melhor que o poder que a permitia a ele. Pequeno fato este, mas, 'quem é fiel no pouco, também o é no muito'; e de modo nenhum são vãs aquelas palavras que saíram da boca da vossa verdade: 'se, pois, não fordes fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras? E se não fordes fiéis nas alheias, quem vos dará o que é vosso?' "

Agostinho de Hipona
(Em "Confissões", J. Oliveira Santos (tradutor), Vozes - edição de bolso - 2011, pg 131)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Brave New World

"O que é fantástico sobre a Internet é que qualquer um, até mesmo uma menininha solitária de 16 anos, pode publicar seus pensamentos e atrair uma multidão. O que é assustador sobre a Internet é que ela pode não estar sozinha, nem ter 16 anos..."

Howard Kurtz
(Traduzido livremente de "Loneliness, Lies, and Videotape," Washington Post, September 18, 2006.)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Um conselho aos internautas

"Eu quero dizer: Você tem que ser alguém antes de publicar a sua vida."

Jaron Lanier
(Traduzido livremente do prefácio de "You are not a gadget", Alfred Knopf, 2010)

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A nova armadilha

"Ao viver mais e mais em público nas redes sociais, estamos enfraquecendo nosso lado humano, banalizando nosso eu interior, transformando nossos sentimentos e emoções em mercadorias. Quanto mais nos expomos publicamente, mais narcisistas nos tornamos. Como Foucault argumentou, a visibilidade é uma armadilha. E em nossa era de hipervisibilidade, ela é uma hiperarmadilha."

Andrew Keen
(Em entrevista ao "Link" no último domingo)

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Rios de otários

"Na internet só tem otário."

Diogo Mainardi
(Em entrevista ao programa Roda Viva desta segunda-feira)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Incontinência contemporânea

"Uma vez enviado pelos dedos e pelo teclado ao computador e à blogosfera, o conteúdo que de fato deveria ter continuado na mente da pessoa como uma possibilidade inexplorada, e portanto vaga, torna-se algo objetivo, público e irreversivelmente feio e doloroso. Nova e preocupante é, acima de tudo, a presença objetiva e a irreversibilidade de algo que teria permanecido um evento individual, transitório e, mesmo assim muito desagradável, no mundo anterior à eletrônica. Já a presença objetiva e a irreversibilidade do Twitter produzirão um efeito surpreendente de incontinência. Imaginar que, num futuro indefinido, os usuários do Twitter poderão (e até certo ponto serão encorajados a) reagir a ofensas e provocações que nunca deveriam ter sido pronunciadas é puro pesadelo."


Hans Ulrich Gumbrecht
(Em artigo intitulado de "Boquirrotismo Irreversível", traduzido por Ana Capovilla no Estadão)

domingo, 19 de agosto de 2012

O Efeito Paralisador

"O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida da sua época e dos seus contemporâneos. Até mesmo uma pessoa inclinada a julgar absolutas e naturais as bases gerais e ultrapessoais da sua existência, até uma pessoa assim pode facilmente sentir o seu bem-estar moral um tanto diminuído pelos defeitos inerentes a essas bases. O indivíduo pode visar a numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe deem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda atividade e todo esforço - então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapasse a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta "Para quê?", é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heroico, ou então uma vitalidade muito robusta."

Thomas Mann
(Em "A Montanha Mágica", traduzido por Herbert Caro, Círculo do Livro 1952, pg. 42)

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O valor do arrependimento

"É um sinal de uma infância bem-comportada quando a criança está disposta a pedir permissão sem perder-se em profundos questionamentos sobre se a ação está correta ou errada; e do mesmo modo é sinal de um homem magnânimo com uma alma profunda quando ele está disposto a arrepender-se sem maiores disputas. Sem o arrependimento a vida não é nada, não passa de fumaça na água. Sim, garanto-lhe que se minha própria vida, por alguma falta que não é minha, fosse tão carregada de tristezas e sofrimentos que eu pudesse nomear a mim mesmo como o maior dos heróis trágicos, bradar a minha dor, e apelar ao mundo chamando atenção a ela, minha escolha estaria assim feita; eu dispo-me desta vestimenta de herói e da paixão trágica, não sou o aflito que pode se orgulhar dos seus sofrimentos, sou o humilde que é consciente de seu pecado! Eu tenho somente uma expressão para aquilo que sofro - culpa; uma expressão para minha dor - arrependimento; uma esperança diante aos meus olhos - perdão; e se acho isto difícil, ah! Tenho apenas uma prece, jogarei-me ao chão e implorarei ao poder eterno que governa o mundo por uma graça, cedo ou tarde: que ele me permita arrepender-me. Pois conheço somente uma tristeza que pode levar-me ao desespero e carregar tudo mais comigo - a tristeza diante a possibilidade de que meu arrependimento seja uma ilusão, uma ilusão não em relação ao perdão que ele busca, mas em relação à responsabilidade que ele pressupõe."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 9050 - Cap. 2 volume II) 

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A vida da razão

"Admitir que a vida da humanidade possa ser dirigida pela razão é negar toda possibilidade de vida."

 Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz" - volume II, tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 533)

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Sonho de Morte

"Sonhou que estava deitado naquele mesmo quarto, em que repousava naquele momento, mas que, em lugar de estar ferido, achava-se de boa saúde. Muitas pessoas indiferentes e insignificantes desfilavam diante dele. Falava-lhes, discutia com elas a respeito dum assunto sem importância. Dispunham-se elas a partir para alguma parte. O Príncipe André percebia confusamente que tudo aquilo era vão, que tinha em mente preocupações bem mais graves e entretanto continuava a espantá-las falando com espírito de coisas fúteis. Pouco a pouco, imperceptivelmente, todos aqueles personagens começaram a desaparecer e só restou uma questão: a da porta a fechar. Levanta-se, aproxima-se da porta, é disso que TUDO depende. Vai, apressa-se, e seus pés não o transportam, sabe que não terá tempo. E entretanto, tende todas as suas forças, dolorosamente. E uma angústia o constringe. E essa angústia é a da morte: AQUILO está do outro lado da porta. E enquanto que, canhestro e impotente, se esforça por fechá-la, algo de espantoso, do outro lado, faz força e a arromba. Alguma coisa que nada tem de humano - a morte - arromba a porta e vai entrar. Retém ele a porta com todas as suas forças - pois que ela já não pode ser fechada, vai ele pelo menos impedir que a morte entre; mas é demasiado desastrado e demasiado fraco e, sob a pressão exterior tremenda, a porta se abre e depois torna a fechar-se. Um derradeiro empurrão faz-se sentir de fora. Um derradeiro esforço sobre-humano, inútil, e os dois batentes cedem ao mesmo tempo sem ruído. Entrou."

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz" - volume II, tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 381)

domingo, 22 de julho de 2012

A água da felicidade

"Eis o que é, meu caro. O destino escolheu sua cabeça. E estamos nós sempre aí a julgar: isto, isto não está bem, isto é mau. Nossa felicidade, meu caro, é como a água na massa: a gente a arrasta, ela se enche; a gente a tira, ela se esvazia. É assim!"

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz" - volume II, tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 368)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Quando o homem não presta para nada

"O homem não presta para nada enquanto teme a morte. Tudo pertence àquele que não tem medo dela. Sem o sofrimento, o homem não conheceria os seus limites. Não se conheceria a si mesmo."

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz" - volume II, tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 241)

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O que realmente importa

"O que eu realmente preciso é de ser claro sobre o que devo fazer, não sobre o que devo conhecer - exceto na medida em que o conhecimento precede toda ação. Trata-se aqui de entender o meu destino, de compreender o que a divindade realmente quer de mim; trata-se de encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar uma ideia pela qual estou disposto a viver e a morrer. E a que serviria se eu descobrisse alguma - assim dita - verdade objetiva? Ou se eu percorresse os sistemas dos filósofos e fosse capaz de apontar inconsistências em cada particular vírgula? E qual seria o uso de desenvolver uma teoria do estado, e colocar todas partes de tantos distintos lugares em um único todo, construir um mundo que, novamente, eu mesmo não o habitasse, mas meramente o erguesse para que os outros pudessem vê-lo? A que serviria ser capaz de propor o significado da cristandade, explicar muitos fatos separados, se isto não tivesse um significado mais profundo para mim e para a minha vida? Certamente não negarei que ainda aceito o imperativo do conhecimento, e que se pode também ser influenciado por ele, mas ele deve ser tomado e tornado vivo em mim, e isto é o que eu agora vejo como o ponto principal. (...) Porém para encontrar esta ideia, ou, mais propriamente, para encontrar a mim mesmo, de nada serviria jogar-me ainda mais no mundo. É isto que não percebi nestes anos, ao levar uma vida completamente humana, não apenas uma vida de conhecimento, evitando basear meu desenvolvimento somente em - sim, em algo que as pessoas chamam de objetivo - algo que no fim não é meu propriamente, mas tentando baseá-lo também em algo que estaria emaranhado com as mais profundas raízes da minha existência, algo através do qual seria como se permeado do divino e ao qual me agarraria mesmo se o mundo inteiro fosse acabar. (...) Isto, veja, é isto o que eu preciso e pelo qual anseio, é uma ação interna do homem, este lado divino do homem, que realmente importa, e não simplesmente um montante de informação. Pois em vão busquei uma âncora externa, não só nas profundezas do conhecimento, mas também no mar sem fim do prazer. O que encontrei? Não o meu "eu", pois isso era o que queria encontrar. (...) Antes de qualquer coisa deve-se aprender a conhecer a si mesmo. E com relação à rotina ordinária dos homens, não ganhei nem perdi nada. Meus amigos exerceram, com poucas exceções, nenhuma influência marcante em mim. E então vejo-me mais uma vez no ponto de partida, onde devo começar tudo novamente. Agora resta-me voltar calmamente para mim mesmo e começar a agir internamente; pois somente deste modo serei capaz de chamar-me "eu" em um sentido profundo. (...) Então que os dados sejam lançados - estou atravessando o Rubicão! Esta estrada sem dúvida levar-me-á à batalha, mas não desistirei jamais!"

O jovem Soren Kierkegaard, escrevendo em seu diário, aos 22 anos.
(Traduzido livremente de passagem de "Papers and Journals", 1 Agosto de 1835, como citado por John Caputo em "How to read Kierkegaard", WWNorton, 2008, pgs 9-10)


quarta-feira, 18 de julho de 2012

Ex-covardes: uni-vos!

"Nelson Rodrigues definiu-se um dia como um ex-covarde. Dizia o sábio Nelson que houve tempos em que também ele seguia a cartilha do medo: o medo que começa nos lares, passa para a Igreja, contamina as universidades e desagua na cultura popular. O medo que os pais sentem dos filhos. O medo dos professores perante os alunos. O medo dos artistas em geral, que preferem obras nulas ou sentimentais - e não a "contemplação carinhosa da angústia", para usar uma expressão da escritora Agustina Bessa-Luís. É esse medo de enfrentar a verdade, por mais difícil e insuportável que seja, que faz com que os homens deixem de ser "indivíduos", no sentido mais nobre da palavra. Para o covarde moderno, melhor diluir a individualidade na estupidez confortável das massas."

João Pereira Coutinho
(Em sua coluna desta segunda-feira no Estadão)

terça-feira, 17 de julho de 2012

Esperança de ação

"Ou o mundo não merece que nos acomodemos a ele. Ou o mundo merece que não nos acomodemos a ele. A esperança não é o fruto da ação. A esperança é a causa da ação."

Roberto Mangabeira Unger
(Em entrevista ao Roda Viva nesta segunda-feira 16 de julho).

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Concepções de vida: o conquistador e o possuidor

"Você afirma ser por natureza um conquistador e não alguém que pode possuir. Ao dizer isto, considero que você não está dizendo nada depreciativo sobre si mesmo; ao contrário, você sente-se maior que os outros justamente por tal ímpeto. Vamos examinar isto com mais calma. O que é mais difícil, escalar uma montanha ou descê-la? Quando a montanha é muito íngreme claramente é descer que requer mais força. Há uma disposição inata em quase todas as pessoas para subir, enquanto a maioria fica apreensiva em ter de descer. Assim também acredito que há um número muito maior de pessoas que são formadas para conquistar do que para possuir. (...) Mas a verdadeira arte, como regra, vai na direção oposta à natureza, sem porém a aniquilar, e portanto a verdadeira arte é a arte de quem possui, não de quem conquista. Em tais expressões podemos já ver como a arte e a natureza são opostas. Uma pessoa que possui, sim, ele também tem algo que conquistou; de fato, em sentido estrito é somente quando se possui que verdadeiramente se conquistou. E assim você também acredita que possui, pois você de fato atinge o instante da posse; mas não há verdadeiramente posse, pois não há uma apropriação profunda. Se fôssemos imaginar um conquistador que conquistou países e reinos, então ele de fato possuiria as províncias que tomou; teria então largas posses; e porém este príncipe da guerra seria descrito como um conquistador e não como um possuidor. Somente quando ele governasse todas essas terras em seus próprios interesses, somente então ele as possuiria. Ora, isto é muito raro em alguém que por natureza é um conquistador; como regra falta-lhe a humildade, a religiosidade, a verdadeira humanidade que é essencial à posse. (...) Para conquistar, é necessário orgulho; para possuir, humildade. Para conquistar, é necessário ser violento; para possuir, ter paciência. Para conquistar, ganância; para possuir, contentamento. Conquistar pede por comida e bebida; possuir por reflexão e abstinência. (...) Na conquista, esquece-se de si mesmo; na posse, tem-se a lembrança constante de si mesmo, não como um passado vazio mas com toda sua possível seriedade. Quando escalamos a montanha, temos apenas o externo em vista; quando descemos, devemos cuidar de nós mesmos, da relação correta entre o nosso ponto de suporte e nosso centro de gravidade." 

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 7710 - Cap. 1 volume II)

sábado, 14 de julho de 2012

Pecar é humano

"Desejar que o pecado não tivesse sobrevindo no mundo é degradar a humanidade a algo menos perfeito. O pecado sobreveio, mas ao reconhecê-lo e ao nos rebaixarmos diante dele, elevamo-nos acima do que éramos antes."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 7215 - Cap. 1 volume II)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O Truque do Esteta

"A capacidade de se esquecer depende sempre do modo como se lembra, mas isto, por sua vez, depende de como se experiencia a realidade. A pessoa que se joga ao fato cheia de esperança irá lembrar-se de tudo de uma maneira que a impossibilitará de esquecer. Nil admirari é portanto a verdadeira sabedoria da vida. Toda situação de vida deve possuir menos importância que aquela que pode ser esquecida quando assim se quiser; e toda situação de vida deve ter importância suficiente para que se possa dela lembrar quando assim se quiser. Quanto mais poético for o modo em que algo é lembrado, mais facilmente será esquecido, pois lembrar poeticamente é apenas uma expressão de esquecimento. Ao lembrarmos poeticamente, o que foi experimentado na verdade já sofreu uma modificação, de tal modo que toda dor foi perdida. Para lembrar assim, deve-se atentar para o modo em que se vive, especialmente em como se goza o mundo. Se o gozo é sem reservas, se se desfruta sempre de todo o prazer possível até o fim, então será impossível tanto lembrar quanto esquecer. Pois não haverá nada mais para ser lembrado senão uma superfície que se quer esquecer mas que, por sua vez, só golpeará a lembrança com uma memória involuntária. Por isso, quando começares a perceber que estás sendo levado pelo gozo de uma situação além do limite, pare por um momento e tente lembrar. Nada mais poderá produzir gosto tão amargo por teres ido tão longe. É preciso segurar as rédeas do gozo já desde o início e não largar o barco com as velas içadas para qualquer vento que se apresente.  Deve-se manter um certo nível de desconfiança; só então pode-se desmentir o provérbio que diz que ninguém pode ter seu bolo e também comê-lo. Carregar armas secretas é proibido pela polícia, é verdade, mas nenhuma arma é tão perigosa como este truque de ser capaz de controlar a memória. É um sentimento peculiar quando, no meio do gozo, olha-se ao redor com a intenção de se lembrar."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 3893-3906 - Cap. 6)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Crimes e Pecados



"Durante toda a nossa vida, enfrentamos decisões penosas, escolhas morais. Algumas delas têm grande peso. A maioria não tem tanto valor assim. Mas definimos a nós mesmos pelas escolhas que fazemos. Na verdade, somos feitos da soma total das nossas escolhas. E tudo se dá de maneira tão imprevisível, tão injusta, que a felicidade humana não parece ter sido incluída no projeto da Criação. Somos nós, com nossa capacidade de amar que atribuímos sentido a um Universo indiferente. E apesar dessa indiferença, a maioria dos seres humanos parece ter a habilidade de continuar lutando e até de encontrar prazer nas coisas simples como sua família, seu trabalho, retendo a esperança de que as futuras gerações alcançarão uma compreensão maior."

Do filme "Crimes e Pecados" (1989) de Woody Allen.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

As pessoas-espelho

"Ainda me não viu; estou na outra ponta do balcão, muito longe, à parte. Na parede oposta está suspenso um espelho; ela não repara, mas o espelho sim. Com que fidelidade soube ele captar a sua imagem; é como um escravo humilde que prova a sua dedicação pela fidelidade, um escravo para quem ela tem importância mas que nenhuma importância possui para ela, que pode ousar compreendê-la, mas não tomá-la. Este infortunado espelho que tão bem sabe captar a sua imagem, mas não captá-la, este infortunado espelho que não pode guardar a sua imagem no segredo do seus esconderijos furtando-a ao olhar do mundo inteiro, mas antes apenas sabe revelá-la a outros como, neste momento, a mim! Que suplício não seria para um homem se fosse assim a sua natureza. E contudo, não é certo que há muitas pessoas que assim são, que nada possuem a não ser no momento em que mostram aos outros a sua posse, que apenas captam a aparência das coisas e não a sua essência, que tudo perdem no momento em que esta se pretende mostrar, tal como este espelho perderia a sua imagem ao primeiro sopro com que ela pretendesse abrir-lhe o coração?"

Soren Kierkegaard
(Em "O Diário de um Sedutor", Carlos Grifo (tradutor), Coleção "Os Pensadores", Abril Cultural 1974, pg 15)

terça-feira, 10 de julho de 2012

O tédio e a ociosidade na visão estética de mundo

"É sempre mais prudente guardar as próprias regras de prudência para si mesmo. Discípulos, portanto, não os quero, mas se talvez alguém estiver presente no meu leito de morte, e se eu estiver certo do meu fim, talvez acabe em um surto delirante de filantropia por sussurrar-lhe meus ensinamentos, sem saber se com isso fiz-lhe um serviço ou um desserviço. Há tanta falação sobre o homem ser um animal social; basicamente ele não passa de uma besta predadora, como se pode assegurar considerando-lhe os dentes.

Então, toda essa balela de sociabilidade é, em parte, só hipocrisia herdada, em parte, um engano calculado. As pessoas são, sem exceção, chatas, entediantes. A palavra em si indica porém a possibilidade de uma subdivisão. 'Entediante' pode ser dito daquela pessoa que entedia os outros assim como pode ser dito daquele que entedia a si mesmo. Quem entedia os outros são os plebeus, a grande massa, o trem sem fim da humanidade em geral. Quem entedia a si mesmo são os nobres, os eleitos; e - que curioso - quem não entedia a si mesmo entedia aos outros e quem entedia a si mesmo diverte aos outros. Aqueles que não se entediam são aqueles que estão ocupados no mundo de um jeito ou de outro, e que justamente por isso são tão entediantes, os mais chatos de todos. Esta espécie de vida animal com certeza não é fruto do desejo do homem ou do prazer da mulher. Como todas as outras formas de vida inferior, é caracterizada pelo alto grau de fertilidade e multiplica-se sem limite. É inconcebível também que a natureza precise de nove meses para produzir tais criaturas que se poderia supor serem produzidas a granel. A outra classe de seres humanos, os eleitos, são aqueles que entediam a si mesmos. Normalmente eles divertem ao povo: quanto mais profundo o seu tédio consigo mesmo, mais poderoso se torna uma fonte de diversão para os outros; até que o tédio atinge seu ápice, seja por se morrer de tédio (forma passiva) ou por enfiar-se uma bala na cabeça só por curiosidade (forma ativa).

Diz-se que a ociosidade é a causa de todo mal. Para preveni-la recomenda-se o trabalho. Porém é fácil ver, do remédio prescrito e da causa temida, que todo este ponto de vista é completamente plebeu. A ociosidade em si não é de nenhuma forma a fonte do mal; pelo contrário, a ociosidade é verdadeiramente um modo de vida divino, desde que não seja corrompida pelo tédio. Certamente a ociosidade pode levar-lhe à falência, mas de tais coisas o homem de natureza nobre não tem medo; o que ele teme é o tédio. Os deuses do Olimpo não eram entediados, eles prosperavam em feliz ociosidade. Uma bela jovem que não dança, nem cozinha, nem lê, nem produz música, é feliz em sua ociosidade porque não é entediada. Então, longe da ociosidade ser a raiz de todo mal, ela é o verdadeiro bem. A fonte do mal é o tédio, e é ele que deve ser mantido longe. Pode-se dizer que aquele que não aprecia a ociosidade ainda não se elevou a nível humano. Há um tipo de atividade sem descanso, que mantém a pessoa longe do mundo do espírito, colocando-a em uma mesma classe com os animais, na qual por instinto ele deve sempre seguir marchando em frente. Assim, encontram-se essas pessoas com um dom extraordinário para transformar tudo em negócio, cuja própria vida é um negócio, que se apaixonam e casam e escutam uma piada e admiram uma obra de arte com o mesmo sentimento zeloso de negociante que possuem quando estão no escritório. O proverbio latino otium est pulvinar diaboli [a ociosidade é o travesseiro do diabo] é perfeitamente correto, mas quando não se está entediado, o diabo não tem tempo de agarrar tal travesseiro. Na medida em que as pessoas pensam que é característico do homem o trabalho, a ociosidade e a produção são propriamente opostas a si mesmas. Minha própria assunção é que a característica do homem é divertir a si mesmo; meus opostos são portanto não menos corretos."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 3810 - Cap. 6)



segunda-feira, 9 de julho de 2012

Prisoner of Life!



"If you're looking for a rainbow
You know there's gonna be some rain
One minute
you're filled with happiness
Next minute there's nothing but pain


When you're a prisoner
And I'm a prisoner
I'm a prisoner of life


One day your man is here
The next day
he's walked out and gone
But no matter what happens
You simply somehow
gotta carry on


When you're a prisoner
And I'm a prisoner
I'm a prisoner oflife


Life's good
It's bad
It's somewhere in between
But it's the unexpected
and the uncertainty
That keeps us goin'
You know what I mean


Yesterday you owned the world
The next day the world owns you
One day everything's a lie
The next day
you swear it's all true


That's what happens
when you're a prisoner
And I'm a prisoner
I'm a prisoner of life


Life's good
It's bad
It's somewhere in between
But it's the unexpected
and the uncertainty
That keeps us goin'
You know what I mean


Yesterday you owned the world
The next day the world owns you
One day everything's a lie
The next day
you swear it's all true


when you're a prisoner
And I'm a prisoner
Yeah, I'm a prisoner of life!"

Annie Ross cantando "Prisoner of Life" no filme de Robert Altman "Short Cuts" (1993).

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Quando o apoio moral é tiro no pé

"Tal é o caso do matrimônio, de modo que não é nada surpreendente que ele seja enrijecido de tantas formas com apoio moral. Quando um marido quer se divorciar, as pessoas gritam "Ele é desprezível, um canalha!", etc. Que estupidez, e que ataque indireto ao matrimônio! Ou o matrimônio tem valor em si, e neste caso o marido é suficientemente punido por desistir dele; ou ele não tem valor em si, e neste caso é absurdo acusá-lo desta forma por agir sabiamente. Se um homem se cansa do seu dinheiro e joga tudo pela janela, ninguém irá chamá-lo de canalha; pois ou o dinheiro tem valor, e então ele é suficientemente punido por privar-se dele, ou não tem valor, e ele é sábio."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 3957 - Cap. 5)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

O difícil na filosofia

"A experiência mostra que não é nem um pouco difícil para a filosofia começar. Longe disso: ela começa com nada e pode assim sempre começar. O que parece ser muito difícil à filosofia e aos filósofos é parar."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 945 - Cap. 1)


terça-feira, 3 de julho de 2012

O bloco desforme

"Assim como se passou com Parmeniscus, que conta-se ter perdido, na caverna de Trophonius, a habilidade de rir e depois tê-la recuperado em Delos ao ver um bloco desforme que supostamente era a imagem da deusa Leto, assim passou-se também comigo. Quando eu era muito jovem, esqueci na caverna de Trophonius como rir; quando me tornei mais velho e abri os olhos para a realidade comecei a rir e não parei desde então. Eu vi que o sentido da vida era encontrar meios de sobreviver, que o objetivo maior era um cargo de titular, que o desejo supremo do amor era assegurar-se para si alguma "garota de bem", que a benção da amizade era a ajuda financeira em tempos de dificuldade, que a sabedoria era aquilo decidido pela maioria, que o entusiasmo era proferir um discurso, que a coragem era arriscar dez dólares, que a cordialidade consistia em dizer "sejam bem-vindos" em um jantar, que temer a Deus era comungar uma vez por ano. Isto foi o que eu vi, e eu ri."

Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 871 - Cap. 1)

segunda-feira, 2 de julho de 2012

O Amor e a Angústia

"Oderint, dum metuant [que me odeiem, contanto que me temam], como se o temor e o ódio fossem conexos, e o temor e o amor estranhos um ao outro, como se não fosse o temor que torna o amor interessante. Que é afinal o nosso amor pela natureza? Não existirá nele um misterioso fundo de angústia e horror, por que por trás da sua bela harmonia se encontram a anarquia e uma desenfreada desordem, por trás da sua segurança, a perfídia? Mas é precisamente essa angústia que mais encanta, e o mesmo sucede ao amor, quando se pretende que este seja interessante. Por trás dele deve incubar a noite profunda, cheia de angústia, de onde desabrocham as suas flores. É assim que a nymphea alba, com a sua corola em forma de taça, repousa na superfície das águas, enquanto a angústia se apodera do pensamento que pretende mergulhar nas trevas profundas onde ela tem as suas raízes."

Soren Kierkegaard
(Em "O Diário de um sedutor", na edição de "Os Pensadores",  Carlos Grifo (trad.), Abril Cultural 1979, pg 165)

domingo, 1 de julho de 2012

Reinvenção do real

"De Cézanne a Picasso, chegou-se à desintegração da linguagem da pintura. Picasso esteve no limite, com suas figuras pateticamente desfiguradas. Já Marcel Duchamp, radical e niilista, embora continuasse a pintar, inventou o "ready-made" que, como o nome está dizendo, dispensa o fazer artístico. Noutras palavras, pintar seria desnecessário, pois o objeto real diria mais do que sua imagem pintada. Pura bobagem. A imagem pintada não diz mais nem menos do que o próprio objeto: diz outra coisa, porque o que a pintura diz o mundo real não diz. Por isso mesmo, afirmei certa vez que, se a arte existe, é porque a vida, a realidade, não basta. A arte não copia, e sim reinventa o real."

Ferreira Gullar
(Em sua coluna de hoje na Folha)

sábado, 30 de junho de 2012

A vida é uma linha

"A vida é uma linha. Ela começa no nascimento, passa por um longo período de consolidação física e ética; segue para uma aliança conjugal cuja consequência é geralmente a criação de novas vidas e a responsabilidade de transformá-las em pessoas e, finalmente, ela nos leva a um ponto sem futuro (toda mudança na velhice é problemática porque não se mexe em time que está ganhando), que antecede a saída deste dramalhão barato e belo do qual tomamos parte sem termos sido convidados. 

 Não obstante essa implacável linearidade, cada fase da vida tem seus impulsos, seus dilemas e suas regressões. Uma nova etapa não acaba automaticamente com a outra. Exceto nos rituais, e, por isso, eles são tão importantes, essas fases todas se confundem e criam dilemas dentro de dilemas e regressões (bem como saltos e rompimentos) em meio aos retornos. Continuar crescendo (dizendo não a nós mesmos) ou voltar à irresponsabilidade da infância? Caminhar sozinho na tempestade ou desistir? Como saber se o Brasil vai dar certo se ele continua e nós, um dia, partiremos? 

 No meio do jardim podado da velhice encontramos o menino inseguro ou o adolescente moleque; na juventude tentamos viver o idoso que fala pausadamente e imagina que sabe tudo. As fases da vida seguem como um trem de ferro, mas a composição não é fixa. Muitas vezes a locomotiva é empurrada por vagões vazios..."

Roberto DaMatta
(Em sua coluna desta última quarta-feira no Estadão)