quarta-feira, 24 de outubro de 2012

A bandeira da vida

"Os sábios da Idade Média afirmavam que o tempo era uma ilusão, que seu curso, entre causa e efeito, não passava do produto de um dispositivo dos nossos sentidos, e que o verdadeiro ser das coisas era um presente imutável. Terá passeado à beira-mar aquele doutor que foi o primeiro a conceber esse pensamento, saboreando nos seus lábios a leve amargura da eternidade? Seja como for, repetimos que aqui se falou de liberdades tais como a gente se permite nas férias, de fantasias inspiradas pelo ócio da vida, e das quais o espírito decente se farta tão depressa como um homem forte, do repouso na areia cálida. Criticar os meios e as formas do conhecimento humano, pôr em dúvida a sua validade objetiva, seria absurdo, desprezível e hostil, se tal atitude se baseasse numa outra intenção além da de designar à nossa razão limites que ela não pode transpor sem incorrer em negligência para com suas próprias funções. Devemos a nossa gratidão a um homem como o Sr. Settembrini, por ter tachado a metafísica de o "mal", ao instruir com a intransigência de um pedagogo o jovem cujo destino nos preocupa, e que ele mesmo, em certa ocasião, qualificara acertadamente de "filho enfermiço da vida". E a melhor maneira de honrarmos a memória de determinada pessoa a quem queremos muito é declarar que o sentido, o objetivo, o fim do princípio crítico não devem nem podem ser outros senão a ideia do dever e a lei da vida. Sim, a sabedoria do legislador, traçando criticamente os limites da razão, içou, nesses mesmos limites, a bandeira da vida e proclamou como um dever militar do homem servir sob essa bandeira."

Thomas Mann
(Em "A Montanha Mágica", Herbert Caro (trad.), Círculo do livro 1952, pg 661)