"É sempre mais prudente guardar as próprias regras de prudência para si mesmo. Discípulos, portanto, não os quero, mas se talvez alguém estiver presente no meu leito de morte, e se eu estiver certo do meu fim, talvez acabe em um surto delirante de filantropia por sussurrar-lhe meus ensinamentos, sem saber se com isso fiz-lhe um serviço ou um desserviço. Há tanta falação sobre o homem ser um animal social; basicamente ele não passa de uma besta predadora, como se pode assegurar considerando-lhe os dentes.
Então, toda essa balela de sociabilidade é, em parte, só hipocrisia herdada, em parte, um engano calculado. As pessoas são, sem exceção, chatas, entediantes. A palavra em si indica porém a possibilidade de uma subdivisão. 'Entediante' pode ser dito daquela pessoa que entedia os outros assim como pode ser dito daquele que entedia a si mesmo. Quem entedia os outros são os plebeus, a grande massa, o trem sem fim da humanidade em geral. Quem entedia a si mesmo são os nobres, os eleitos; e - que curioso - quem não entedia a si mesmo entedia aos outros e quem entedia a si mesmo diverte aos outros. Aqueles que não se entediam são aqueles que estão ocupados no mundo de um jeito ou de outro, e que justamente por isso são tão entediantes, os mais chatos de todos. Esta espécie de vida animal com certeza não é fruto do desejo do homem ou do prazer da mulher. Como todas as outras formas de vida inferior, é caracterizada pelo alto grau de fertilidade e multiplica-se sem limite. É inconcebível também que a natureza precise de nove meses para produzir tais criaturas que se poderia supor serem produzidas a granel. A outra classe de seres humanos, os eleitos, são aqueles que entediam a si mesmos. Normalmente eles divertem ao povo: quanto mais profundo o seu tédio consigo mesmo, mais poderoso se torna uma fonte de diversão para os outros; até que o tédio atinge seu ápice, seja por se morrer de tédio (forma passiva) ou por enfiar-se uma bala na cabeça só por curiosidade (forma ativa).
Diz-se que a ociosidade é a causa de todo mal. Para preveni-la recomenda-se o trabalho. Porém é fácil ver, do remédio prescrito e da causa temida, que todo este ponto de vista é completamente plebeu. A ociosidade em si não é de nenhuma forma a fonte do mal; pelo contrário, a ociosidade é verdadeiramente um modo de vida divino, desde que não seja corrompida pelo tédio. Certamente a ociosidade pode levar-lhe à falência, mas de tais coisas o homem de natureza nobre não tem medo; o que ele teme é o tédio. Os deuses do Olimpo não eram entediados, eles prosperavam em feliz ociosidade. Uma bela jovem que não dança, nem cozinha, nem lê, nem produz música, é feliz em sua ociosidade porque não é entediada. Então, longe da ociosidade ser a raiz de todo mal, ela é o verdadeiro bem. A fonte do mal é o tédio, e é ele que deve ser mantido longe. Pode-se dizer que aquele que não aprecia a ociosidade ainda não se elevou a nível humano. Há um tipo de atividade sem descanso, que mantém a pessoa longe do mundo do espírito, colocando-a em uma mesma classe com os animais, na qual por instinto ele deve sempre seguir marchando em frente. Assim, encontram-se essas pessoas com um dom extraordinário para transformar tudo em negócio, cuja própria vida é um negócio, que se apaixonam e casam e escutam uma piada e admiram uma obra de arte com o mesmo sentimento zeloso de negociante que possuem quando estão no escritório. O proverbio latino otium est pulvinar diaboli [a ociosidade é o travesseiro do diabo] é perfeitamente correto, mas quando não se está entediado, o diabo não tem tempo de agarrar tal travesseiro. Na medida em que as pessoas pensam que é característico do homem o trabalho, a ociosidade e a produção são propriamente opostas a si mesmas. Minha própria assunção é que a característica do homem é divertir a si mesmo; meus opostos são portanto não menos corretos."
Soren Kierkegaard
(Traduzido livremente de "Either/Or: A Fragment of Life", Alastair Hannay (trad.), Penguin Classics 2004, Kindle Location 3810 - Cap. 6)