segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O sonho de Winston

"Winston sonhava com sua mãe. (...) 

Ela estava sentada à frente dele, num lugar fundo, com a filha mais jovem nos braços. Winston não lembrava da irmã senão como um bebê fraco, sempre calado, de olhos grandes e vigilantes. Ambas o fitavam. Encontravam-se em algum lugar subterrâneo - no fundo de um poço, ou numa caverna  profunda - mas era um lugar que, apesar de já ser bem mais baixo, submergia cada vez mais. Estavam no salão de um navio que naufragava, e olhavam para ele através da água que escurecia. Ainda havia ar no salão, elas podiam vê-lo e ele podia vê-las, mas todo tempo as duas continuavam afundando, baixando nas águas verdes que, em instantes, ocultariam ambas para sempre. Ele se encontrava no claro enquanto elas eram absorvidas pela morte. Elas estavam no fundo porque ele estava a salvo. Ele sabia disso, assim como elas sabiam, via-se em seus olhos. Mas não havia censura, nem na fisionomia nem no coração das duas, apenas a certeza de que deviam morrer para que ele continuasse vivo, e que aquilo era parte da ordem inevitável das coisas.

Não podia lembrar-se do que sucedera, mas sabia no sonho que de alguma forma a vida de sua mãe e de sua irmã tinham sido sacrificadas pela dele. Era um desses sonhos que, embora retenham o cenário onírico característico, são a continuação da vida intelectual do indivíduo e no qual se toma conhecimento de fatos e idéias que mesmo depois de acordar ainda parecem valiosos. A coisa que agora impressionava Winston era que a morte de sua mãe, quase trinta anos atrás, fora trágica de um modo que não seria hoje possível. A tragédia pertencia a um tempo antigo, à época em que ainda havia vida privada, amor e amizade, e em que os membros de uma família amparavam uns aos outros sem indagar por razões. A lembrança de sua mãe  atingia seu coração porque ela morrera amando-o, enquanto ele era jovem e egoísta demais para corresponder-lhe e porque de certo modo ela se sacrificara a uma concepção de lealdade particular e inalterável. Ele percebia que tais coisas não mais podiam acontecer. Hoje o que havia era medo, ódio, dor, mas nenhuma dignidade, nenhum sentimento profundo ou complexo. Tudo isto lhe pareceu ver lá, nos grandes olhos de sua mãe e sua irmã, olhando-o através da água verde em que afundavam, centenas de braças abaixo de onde ele estava."

George Orwell
(Traduzido livremente de "1984", Penguin Books, 2000, pg 29-30