segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A era do Homem-Vespa

"Novamente deitado, olhando para o teto, relembrava os últimos anos transcorridos, e os via correr de outonos a páscoas, de aquilões a asfaltos amolecidos, sem ter o tempo de vivê-los - sabendo, de repente, pelos oferecimentos de um restaurante noturno, da volta dos patos selvagens, do fim da proibição da pesca de ostras, ou do reaparecimento das castanhas. Às vezes, também, minha informação sobre o passar das estações devia-se aos sinos de papel vermelho que se abriam nas vitrines das lojas, ou à chegada de caminhões carregados de pinheiros cujo perfume deixava a rua como que transfigurada durante alguns segundos. Havia grandes lacunas de semanas e semanas na crônica do meu próprio existir; temporadas que não me deixavam uma lembrança válida, o rastro de uma sensação excepcional, uma emoção duradoura; dias em que todo gesto me produzia a obsedante impressão de tê-lo feito antes em circunstânciass idênticas - de ter sentado no mesmo canto, de ter contado a mesma história, olhando o veleiro preso no cristal de um pesa-papéis. Quando se festejava meu aniversário em meio às mesmas caras, nos mesmos lugares, com a mesma canção repetida em coro, assaltava-me invariavelmente a ideia de que isto só diferia do aniversário anterior na aparição de uma vela a mais sobre um bolo cujo sabor era idêntico ao da vez precedente. Subindo e descendo a encosta dos dias, com a mesma pedra no ombro, sustinha-me por obra de um impulso adquirido à força de paroxismos -, impulso que cederia cedo ou tarde, numa data que casualmente figurasse no calendário do ano em curso. Mas escapar disto, no mundo que me fora dado pela sorte, era tão impossível como tratar de reviverr, nestes tempos, certas gestas de heroísmos ou de santidade. Caíramos na era do Homem-Vespa, do Homem-Nenhum, em que as almas não se vendiam ao Diabo, mas ao Contador ou ao Comitre. Por entender que era vão rebelar-se, após um desarraigamento que me fez viver duas adolescências - a que ficava do outro lado do mar e a que aqui se contivera -, não via onde achar alguma liberdade fora da desordem de minhas noites, em que tudo era bom pretexto para me entregar aos mais reiterados excessos. Minha alma diurna estava vendida ao Contador - pensava, debochando de mim mesmo -; mas o Contador ignorava que de noite eu empreendia estranhas viagens pelos meandros de uma cidade invisível para ele, cidade dentro da cidade, com moradas para esquecer o dia."

Alejo Carpentier
("Os Passos Perdidos", Martins Fontes 2008, pg 11)