sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Vida de Mula

"Uma volta atrás da outra, interminavelmente, ia a mula, colocando delicadamente suas patas estreitas como as de uma corça sobre o farfalhante leito de bagaço, seu pescoço meneando dócil como um pedaço de mangueira de borracha na coelheira, com os flancos arranhados e as orelhas pendentes e sem vida, e os olhos semicerrados dormitando malevolamente atrás de pálidas pálpebras, aparentemente embaladas pela monotonia de seu próprio movimento. Algum Homero das plantações de algodão deveria cantar a saga da mula e de sua importância para o Sul. Foi ela, mais do que qualquer outra criatura ou coisa, que, fiel à terra quando todo o resto cedia diante da onda inexorável dos acontecimentos, impermeável às condições que abateram os corações humanos devido a sua rancorosa e paceiente preocupação com o presente imediato, resgatou o Sul prostrado de sob o tacão de ferro da Reconstrução e voltou a infundir-lhe orgulho por meio da humildade quase impossível, a despeito de dificuldades desesperadoras, graças a uma paciência absoluta e vingativa. Não se assemelha nem à mãe e nem ao pai e jamais terá filhos e filhas; vingativa e paciente (é fato comprovado que é capaz de labutar de bom grado e com paciência durande uma década, em troca do privilégio de escoicear uma única vez o seu dono); solitária mas sem altivez, autônoma, mas sem vaidade; até sua voz é um escárnio. Proscrita e pária, não tem amigo, esposa, amante ou namorado; solitária e imaculada, não habita coluna nem gruta no deserto, tampouco é atormentada por tentações, flagelada por sonhos ou assaltada por visões; a fé, a esperança e a caridade não fazem parte de seu mundo. Misantrópica, ela se esfalfa durante seis dias da semana em prol de uma criatura que odeia, atada com correias a outra criatura que despreza, e passa o sétimo dia dando e recebendo coices de seus companheiros. Mal compreendida até mesmo por aquela criatura, o negro que a conduz, a mula realiza ações incompreensíveis em ambientes estranhos; ela proporciona alimento não apenas para um raça, mas para toda uma forma de comportamento; dócil, seu legado é cozido e descolado de si, juntamente com sua alma, em uma fábrica de cola. Feia, incansável e perversa, não é movida por razão nem adulação, tampouco pela promessa de recompensa; ela realiza suas tarefas humildes e monótonas sem se queixar, e tem como paga apenas pancadas. Em vida, é arrastada pelo mundo, alvo da zombaria geral; não é chorada, nem honrada, nem cantada; seu esqueleto desajeitado e acusador se desfaz alvacento em meio a latas enferrujadas, cacos de louça e pneus velhos em encostas solitárias enquanto suas carne é levada para as alturas azuladas nas garras dos abutres."

William Faulkner
("Sartoris", Cosac Naify 2010, pg  301-302)