segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A Felicidade não é assunto nosso

"A divisão kantiana entre fatos e valor é felizmente complicada pela particularidade do dever. A razão é uma faculdade universal, é a mesma para todos, mas cada indivíduo está situado no mundo em um lugar distinto e produz o espírito particular de seu próprio mundo ao vê-lo sob a luz da razão. Deus não aparece nessa história, ele está velado, é um objeto de fé: aquela fé para qual as limitações da razão kantiana e seu agnosticismo racional deixam espaço. Nós somos fontes morais, capazes de ter certezas morais e ser juízes confiantes da nossa vida espiritual. A metafísica de Kant é um modelo de demitologização, onde Deus, se presente, é segregado, isolado. O "Grundlegung" aponta para isso: da existência da lei moral podemos intuir um legislador supremo que irá introduzir a felicidade como um bonus final, mas de fato esta crença deve ser considerada como um deslize moral. Kant teme a felicidade assim como Platão. A busca pela felicidade aqui embaixo seria para Kant a entrega aos desejos egoístas. O amor feliz pode ser nada mais que uma ingênua trapaça moral. A felicidade não é assundo nosso, e especulações sobre o que Deus poderia de fato fazer a respeito não são só vazias, como elas ainda podem enganar-nos no atribuir à felicidade seu devido valor."

Iris Murdoch
(Traduzido livremente de "Metaphysics as a Guide to Morals", Penguin 1992, pg 438)