segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Os cavalos da alma, o vazio, as fantasias e a verdade

Um trecho do diário de Simone Weil:

"Perdoar. É-se incapaz de perdoar. Quando alguém nos faz mal, as reações são já estabelecidas. O desejo pela vingança é o desejo por equilíbrio. Aceitar a falta de equilíbrio. Encontrar lá dentro a essencial falta de equilíbrio."

Após citar esta passagem, escreve-nos Murdoch:

"Consolamo-nos com fantasias. Ao invés de render-nos a esta necessidade natural, devemos  segurar-nos ao que realmente aconteceu, sem cobrir os fatos com imagens de como poder-se-ia voltar atrás. O vazio (a angústia, a dor, a perda) faz-nos perder o senso de realidade. Pois não pense em atingir o equilíbrio da situação, viva mesmo próximo à dolorosa realidade e tente relacioná-la ao que é bom. O que é necessário aqui (no vazio, na angústia), e é tão difícil de atingir, é uma nova orientação dos nossos desejos, uma re-educação dos nossos sentimentos instintivos. Podemos pensar na imagem platônica da alma como um cocheiro de uma biga levada por um cavalo bom e um cavalo mau, que luta com o cavalo mau, puxando-o violentamente, 'cobrindo suas mandíbulas de sangue'. (...) Temos um impulso natural para fantasiar nosso mundo, encher o que está a nossa volta de fantasias. Simplesmente parar com isso, impedindo que se encha vazios com mentiras e falsidade, é já progresso. Da mesma forma, nos maiores labirintos das relações humanas, muitas vezes pode ser necessário fazer um movimento que traga o vazio à tona. "

Iris Murdoch
(Traduzido livremente de "Metaphysics as a Guide to Morals", Penguin 1992, pg 503)

ps.: O mito do cocheiro de biga está no diálogo Fedro, em que Platão compara a alma a um cocheiro que possui dois cavalos em sua biga. O cavalo da direita é branco, de olhos escuros, tem porte imponente, descendência nobre, ama a honra, a humildade e a temperança, segue a verdade e é guiado pela palavra. O outro é um cavalo baixo, curvo, de pescoço curto e grosso, cor escura, com olhos cinzas e cabelos vermelhos,  ignóbil,  insolente e orgulhoso, é surdo e só pode ser governado pelo chicote. O caminho do bem e da verdade é uma luta constante contra o cavalo ignóbil, que tende a desobedecer e atormentar o andar da biga, mordendo e atacando o cavalo branco. A alma assim oscila: quando o cocheiro puxa com força os freios do cavalo ignóbil e o açoita, este se acalma e o obedece, o cocheiro então abranda sua fúria e o cavalo ignóbil volta a desviar a alma de seu percurso. O cocheiro deverá então castigar o ignóbil com maior força, puxando o freio a ponto de arrancar os dentes do animal, cobrir sua língua e mandíbulas com sangue, forçar suas pernas ao chão e puní-lo com o chicote violentamente. Só depois de tamanha violência ser muitas vezes repetida, o cavalo negro irá então rebaixar-se de medo diante ao outro, e a alma poderá traçar seu caminho pela verdade, com humildade e temperança.