sábado, 22 de janeiro de 2011

Ciência, Linguagem comum, realidade (...e porque a filosofia e a ciência da segunda metade do século XX foram pelo caminho errado...)

"Estes novos resultados [da física moderna] devem antes de tudo ser considerados como uma séria advertência contra a aplicação um tanto forçada de conceitos científicos a domínios nos quais eles não pertencem. A aplicação de conceitos da física clássica, por exemplo, na química, foi um erro. Portanto, devemos estar menos inclinados a assumir que conceitos da física, mesmo aqueles da teoria quântica, possam ser certamente aplicados em todas as áreas da biologia ou de outras ciências. Ao contrário, devemos manter as portas abertas para a entrada de novos conceitos mesmo naquelas partes da ciência em que os velhos conceitos foram úteis para a compreensão dos fenômenos. Especialmente nos pontos em que a aplicação dos velhos conceitos era um tanto forçada ou parecia não totalmente adequada aos problemas, devemos evitar qualquer conclusão apressada.

Além disso, uma das características mais importantes do desenvolvimento e da análise da física moderna é a experiência que conceitos da linguagem comum, vagamente definidos como são, parecem ser mais estáveis ao longo da expansão do conhecimento que os termos precisos da linguagem científica, derivados como idealizações a partir de grupos de fenômenos muito limitados. Este é até um fato não surpreendente, já que os conceitos da linguagem comum são formados a partir do contato imediato com a realidade; eles representam a realidade. É verdade que não são muito bem definidos e podem, portanto, também sofrer mudanças ao longo dos séculos, assim como a própria realidade sofreu, mas eles nunca perdem a conexão imediata com o real. Por outro lado, os conceitos científicos são idealizações; eles são derivados de experiências obtidas por equipamentos sofisticados e são definidos precisamente através de um sistema de axiomas. Somente por tais definições precisas é possível conectar estes conceitos com um esquema matemático e derivar matematicamente a infinita variedade de possíveis fenômenos em tal campo de estudo. Mas por tal processo de idealização e definição precisa, a conexão imediata com a realidade é perdida. Os conceitos ainda correspondem estreitamente ao real naquela parte da natureza que foi objeto da pesquisa. Porém a correspondência pode ser perdida nas partes que contêm outros grupos de fenômenos.

Ao manter em mente a intrínseca estabilidade dos conceitos da linguagem comum no processo do desenvolvimento científico, vê-se que - depois da experiência com a física moderna - nossa atitude com relação a conceitos como a mente, ou a alma humana, ou a vida, ou Deus, devem ser diferentes daquela atitude do século XIX, pois estes conceitos pertencem à linguagem comum e têm portanto alguma conexão com o real. É verdade que tais conceitos não são bem definidos em termos científicos e suas aplicações podem levar a várias contradições, no momento talvez tenhamos que tomar tais conceitos como são, sem podermos analisá-los; mas ainda assim eles tocam a realidade. Pode ser útil lembrar que mesmo na parte mais precisa da ciência, a matemática, não podemos evitar o uso de conceitos que envolvem contradições. Por exemplo, é muito bem conhecido que o conceito do infinito leva a contradições já analisadas, mas é impraticável construir a maior parte da matemática sem tal conceito.

A tendência geral do pensamento humano no século XIX foi em direção a um aumento de confiança no método científico e em termos racionais precisos, levando a um ceticismo com relação aos conceitos da linguagem comum que não se encaixam no modo restrito do pensamento científico - por exemplo, aqueles da religião. A física moderna pode, em diversos modos, ter aumentado tal ceticismo; mas ao mesmo tempo ela virou-o contra a superestima dos conceitos científicos precisos, contra a visão excessivamente otimista com relação ao progresso em geral, e finalmente contra o próprio ceticismo. O ceticismo contra conceitos científicos não implica que deve haver um limite definido para a aplicação do pensamento racional. Ao contrário, podemos dizer que o homem talvez tenha uma habilidade para entender, em um certo sentido, ilimitada. Mas os conceitos científicos existentes cobrem sempre somente uma parte muito limitada da realidade, e a outra parte  que não foi ainda entendida é infinita. Sempre que procedemos do conhecido para o desconhecido devemos esperar compreender, mas também podemos ter que aprender ao mesmo tempo um novo sentido de "compreender". Sabemos que qualquer compreensão deve ser baseada, em última análise, na linguagem comum porque somente com ela podemos estar certos de tocar a realidade e, portanto, devemos ser céticos sobre o ceticismo com relação à tal linguagem e a seus conceitos essenciais. Devemos usar tais conceitos como sempre foram usados. Deste modo a física moderna talvez tenha aberto a porta a uma forma mais ampla de olhar a relação entra a mente humana e a realidade."

Werner Heisenberg
(Traduzido livremente de "Physics and Philosophy", Harper and Brothers 1958, pg 199-202)