sábado, 6 de abril de 2013

Onde estais?

"Quando se ganha o que se pensa difícil, o pensamento se desorienta. Assim ficou o povo de Argemiro, dando-se conta de como tudo se aquietou em tão pouco tempo. Todos tinham lutado menos do que esperavam, até mesmo Alarico, que viu sumirem da frente, engolidos pelo ar e pelo chão, os inimigos. Então era isso o que acontecia, quando se tinha companhia para a luta e se tinha o equipamento. Então era assim a face do vitorioso de antes, agora confundida com a poeira do chão e pronta a ser esquecida. É verdade que todo homem que já viveu nunca se apaga de todo, porque aqui e ali há uma grama que ele pisou e lá o ar se agitou com a sua falta ou seu gesto. Cada um pois deixa qualquer marca, mas também deixam marcas as plantas e as pedras e tudo o que já modificou a paisagem. Louvado seja Deus, disse o padre Bartolomeu, sentindo arrepios e a carne fazendo ondas nos músculos da barriga. Devia vomitar e estrabar todas as dúvidas e devia estar longe e fazendo penitência e não devia estar aqui com as bochechas bolsadas pela náusea da violência e pela comida que o corpo enjeitou. Mas não se achava melhor homem do que os outros e então buscou rezar em companhia de todos os outros e maldisse o livre-arbítrio que lhe tinham dado, desde quando possuía consciência. Pois seria melhor que houvesse cordões que mexessem seus braços e todo o seu corpo e que houvesse um livro onde olhasse as respostas completas. Entretanto, não era assim, porque o livro que existe tem muitos discursos e cada olho que se assenta sobre ele vê uma luz diversa. Padre Bartolomeu quis que existisse uma resposta, mas, sabendo que ela não estava a seu alcance, lembrou que as sementes do chão hão que render frutos para todos os viventes. Recordou que no livro são contadas mortes e batalhas. Exurge, quare obdormis, Domine? - pensou o padre, com vontade de chorar. Na sebe de tiriricas, os corpos de sangue empedrado. Em toda parte, um cheiro de defuntos frescos. E aqui uma solidão, nesta cabeça sem cabelos. Onde estais, Senhor? A coisa mais difícil é escolher."

João Ubaldo Ribeiro
(Em "Vila Real", Objetiva (3.ed), 2012, pg. 94)