terça-feira, 15 de maio de 2012

Carlos Fuentes, você sobreviverá


"Você sobreviverá: tornará a sentir o toque dos lençóis e saberá que sobreviveu, apesar do tempo e do movimento que a cada instante encurtam-lhe a sorte: entre a paralisia e o desenfrear está a linha da vida: a aventura; imaginará a maior das seguranças, não mexer nunca: imaginar-se-á imóvel, resguardado do perigo, do acaso, da incerteza; sua quietude não deterá o tempo que corre em você, apesar de você inventá-lo e medi-lo, o tempo que nega a sua imobilidade e submete você a seu próprio perigo de extinção: aventureiro, medirá a sua velocidade com a do tempo:

o tempo que inventará para sobreviver, para fingir a ilusão de uma permanência maior na terra: o tempo que seu cérebro criará à força de perceber essa alternância de luz e de trevas no quadrante do sonho; à força de reter essas imagens da placidez ameaçada pelos cúmulos concentrados das nuvens, o anúncio do trovão, a posteridade do raio, a descarga torrencial da chuva, a aparição certa do arco-íris; à força de escutar as chamadas cíclicas dos animais na montanha; à força de gritar os sinais do tempo: ganido do tempo da guerra, ganido do tempo do luto, ganido do tempo da festa; à força, por fim, de dizer o tempo, de falar o tempo, de pensar o tempo inexistente de um universo que não o conhece porque nunca começou e jamais terminará: não teve princípio, não terá fim e não sabe que você inventará uma medida do infinito, uma reserva de razão:

você inventará e medirá um tempo que não existe

você saberá, discernirá, julgará, calculará, imaginará, preverá, acabará pensando que não terá outra realidade senão a criada por seu cérebro e aprenderá a dominar sua violência para dominar seus inimigos: aprenderá a esfregar duas madeiras até incendiá-las porque precisará jogar uma teia à entrada de sua cova para espantar os animais que não o distinguirão, que não diferenciarão a sua carne da carne de outros animais e terá que construir mil templos, ditar mil leis, escrever mil livros, adotar mil deuses, pintar mil quadros, fabricar mil máquinas, dominar mil povos, romper mil átomos para tornar a jogar sua teia acesa na entrada da caverna, 

e fará tudo isso porque pensa, porque terá desenvolvido uma congestão nervosa no cérebro, uma rede espessa capaz de obter informação e transmiti-la de frente para trás: sobreviverá, não por ser o mais forte, mas por esse acaso escuro de um universo cada vez mais frio, no qual só sobreviverão os organismos que saibam conservar a temperatura do corpo ante as mudanças do meio, os que concentrarem essa massa nervosa frontal e possam predizer o perigo, buscar o alimento, organizar seu movimento e dirigir seu nado no oceano redondo, proliferante, atestado das origens; ficarão no fundo do mar as espécies mortas e perdidas, suas irmãs, milhões de irmãs que não emergiram na água com suas cinco estrelas contráteis, seus cinco dedos cravados na outra margem, na terra firme, nas ilhas da aurora; emergirá com a ameba, o réptil e o pássaro atravessados: as aves que se atirarão dos novos cumes para estatelar-se nos novos abismos, aprendendo com o fracasso, enquanto os répteis voam e a terra esfria; sobreviverá com as aves protegidas pelas penas, vestidas pela velocidade de seu calor, enquanto os répteis frios dormem, hibernam, e por fim morrem e você fincará as garras na terra firme, nas ilhas da aurora, e suará como um cavalo, e trepará nas árvores novas com sua temperatura constante e descerá com suas células cerebrais diferenciadas, suas funções vitais automatizadas, suas constantes de hidrogênio, açúcar, cálcio, água, oxigênio: livre para pensar além dos sentidos imediatos e das necessidades vitais 

descerá com seus dez milhões de células cerebrais, com sua pilha elétrica na cabeça, plástico, mutável, para explorar, satisfazer sua curiosidade, propor-se metas, realizá-las com o mínimo esforço, evitar as dificuldades, prever, aprender, esquecer, lembrar, unir idéias, reconhecer formas, somar pontos à margem deixada livre pela necessidade, subtrair sua vontade às atrações e rejeições do meio físico, buscar condições favoráveis, medir a realidade com o critério do mínimo, desejar secretamente o máximo, não expor-se, apesar de tudo, à monotonia da frustração; 

acostumar-se, moldar-se às exigências da vida em comum: 

desejar: desejar que seu desejo e o objeto desejado sejam a mesma coisa; sonhar com a realização imediata, na identificação sem separações do desejo e do desejado: 

reconhecer-se a si mesmo: 

reconhecer os outros e desejar que eles o reconheçam: e saber que se opõe a cada indivíduo, porque cada indivíduo é mais um obstáculo para alcançar seu desejo: 

escolherá, para sobreviver escolherá, escolherá entre espelhos infinitos um só, somente um que refletirá irrevogavelmente, que encherá de uma sombra negra os outros espelhos, você os matará antes de dar-se, mais uma vez, esses caminhos infinitos para a escolha: 

decidirá, escolherá um desses caminhos, sacrificará os outros: sacrificar-se-á ao escolher, deixará de ser todos os outros homens que poderia ter sido, quererá que outros homens - outro - cumpra por você a vida que mutilou ao escolher: ao escolher sim, ao escolher não, ao permitir que não seu desejo, idêntico à sua liberdade, mas seu interesse, seu medo, seu orgulho, lhe indicassem um labirinto: 

temerá o amor, nesse dia: 

mas poderá recuperá-lo: descansará com os olhos fechados, mas não deixará de ver, não deixará de desejar, porque assim fará sua a coisa desejada: 

a memória é o desejo satisfeito
hoje que sua vida e seu destino são a mesma coisa"



Carlos Fuentes  (11/11/1928 - 15/05/2012)
(Em "A morte de Artemio Cruz", Inez Cabral (trad.), Record 1964, pg 156-159)