terça-feira, 29 de maio de 2012

A (nossa) Fuga

"Cada vez que Pedro raciocinava dessa maneira, essa hipocrisia geral, aceita por todos, o enchia de estupefação, malgrado o hábito, como se a descobrisse pela primeira vez. 'Sinto essa hipocrisia, esse dédalo moral em que nos perdemos - dizia a si mesmo - mas como explicar aos outros tudo quanto sinto? Tentei e sempre verifiquei que no fundo de suas almas eram de minha opinião, mas recusavam-se ver essa mentira. Sem dúvida será preciso ser assim? Mas eu, onde encontrarei eu um refúgio?' 

Tinha o triste privilégio, comum a muita gente e particularmente aos russos, de crer na possibilidade do verdadeiro e do bem, mas ao mesmo tempo de ver demasiado distintamente o mal e a mentira espalhados em torno de si e isso o impedia de tomar seriamente parte da vida. Todo gênero de atividade estava a seus olhos maculado de mal e de mentira. Empreendesse o que empreendesse, o mal e a mentira logo o faziam desgostar-se; todas as estradas se achavam assim fechadas diante dele. E, no entanto, era bem preciso viver, era preciso ainda assim ocupar-se. Essas questões insolúveis eram tão opressivas que se entregava a seus antigos arrebatamentos, unicamente para esquecê-las. Frequentava toda a qualidade de pessoas, bebia bastante, colecionava quadros e, sobretudo, mergulhava-se na leitura. 

Lia tudo quanto lhe caía nas mãos; de volta à sua casa, ainda bem não havia seu criado acabado de tirar-lhe a roupa, já estava ele de livro na mão, a ler. Da leitura passava ao sono, do sono às tagarelices dos salões e do clube, das tagarelices às orgias, e das orgias de novo às tagarelices, à leitura e ao vinho. Beber tornou-se cada vez mais para ele uma necessidade física e moral. Debalde lhe advertiam os médicos que, com a sua corpulência, o vinho lhe era perigoso; continuava a beber muito. Só se sentia realmente à vontade depois de ter, quase inconscientemente, derramado na sua vasta boca alguns copos de vinho; experimentava então por todo o corpo um agradável calor, um sentimento de ternura para com seu próximo, uma disposição a aflorar todas as questões sem aprofundar nenhuma. Depois de haver ingerido uma ou duas garrafas, percebia vagamente que esse nó tão complicado da existência, que comumente o enchia de terror, não era tão terrível quanto o imaginava. Porque, em meio das tagarelices, como no curso de suas leituras após as refeições, esse nó fatal enchia-lhe sempre a cabeça latejante. E só a influência do vinho o levava a dizer a si mesmo: 'Não é nada. Hei de desmanchá-lo. Eu mesmo tenho uma explicação prontinha; mas o momento está mal-escolhido; pensarei nisso mais tarde.' Mas esse 'mais tarde' não vinha nunca. 

No dia seguinte de manhã, quando os fumos do vinho se haviam dissipado, as mesmas questões se lhe apresentavam da mesma maneira insolúveis, da mesma maneira temíveis; apressava-se então em pegar dum livro e mostrava-se encantado quando aparecia alguma visita. 

Por vezes lembrava-se de lhe terem contado que os soldados nos postos avançados, sob o fogo do inimigo, tratam de arranjar uma ocupação, a fim de esquecer mais facilmente o perigo. E todos os homens lhe pareciam então agir como esses soldados: escapavam à vida uns pela ambição, outros pelo jogo, outros pelas mulheres, outros pelas diversões, outros pelos cavalos, outros pela caça, outros pelo vinho, estes elaborando as leis e aqueles ocupando-se com negócios públicos. 'Em definitivo - pensava Pedro, - nada é negligenciável, nada tampouco é importante, tudo é indiferente. Pudesse eu ao menos subtrair-me à mentira da vida, furtar-me a essa odiosa visão!' "

Leon Tolstoi
(Em "Guerra e Paz", tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 585)