segunda-feira, 7 de maio de 2012

O parafuso

"Cada qual por sua vez, o chefe da posta, sua mulher, o criado de quarto, um negociante de marroquinarias vieram oferecer-lhe seus serviços. Pedro, de pernas no ar, olhava um e outros através de seus óculos, sem mudar de posição e sem compreender nem o que eles desejavam, nem como tinham podido viver sem resolver os problemas que o atormentavam a ele. Estes não tinham, de resto, variado desde que, de volta do duelo no parque dos Falcoeiros, se lhe tinham posto durante sua primeira e cruel noite de insonia; o isolamento da viagem tinha-os somente tornado mais prementes. Por qualquer atalho que procurasse escapar-lhes, voltavam à carga, sem que pudesse jamais encontrar solução para eles. Era como se, na sua cabeça, tivesse afrouxado o parafuso principal que coordenava sua existência. Aquele parafuso, não penetrando mais adiante, não saía, mas girava, sempre no mesmo lugar, sem nada aferrar e era impossível detê-lo.

O chefe da posta veio pedir humildemente a Sua Excelência que tivesse a bondade de esperar duas pequenas horas, depois das quais procuraria, a seus riscos e perigos, cavalos de correio para Sua Excelência. Era aquela uma mentira evidente; o sujeito sonhava antes de tudo em arrancar do viajante o mais de dinheiro possível.

'Age ele mal ou bem?' - perguntou a si mesmo Pedro. - 'No que me diz respeito, tem razão; mas se vier outro viajante, não a terá. Quanto a ele, não saberia conduzir-se diferentemente, porque nada tem a comer. A crer nele, um oficial, ao qual recusara cavalos, tê-lo-ia espancado; se isso era verdade, é que o oficial tinha necessidade de ir depressa. É verdade que atirei em Dolokhov porque me acreditava ofendido por ele. E Luís XVI, não o executaram porque o consideravam um criminoso? Um ano mais tarde guilhotinaram aqueles que o tinham feito perecer; sem dúvida tinham igualmente razões para isso. Que é o mal, que é o bem? Que é preciso amar, que é preciso odiar? Por que é preciso viver e que é o eu? Que é a vida, que é a morte? E qual é a força que dirige tudo?'

Só encontrava para todas essas perguntas uma resposta, que não era uma, aliás. 'Morrerás um dia e tudo acabará. Morrerás e saberás de tudo, ou cessarás de fazer perguntas a ti mesmo'. Mas morrer era também uma coisa terrível.

Com sua voz estridente, a boa mulher propunha sua mercadoria e principalmente pantufos de couro de cabrito. 'Tenho centenas de rublos com os quais não sei que fazer, e essa mulher de peliça rasgada está aí a implorar-me timidamente - pensava Pedro. - Mas tem ela verdadeiramente necessidade de dinheiro? Poderá o dinheiro obter-lhe uma onça de felicidade, de tranquilidade moral? Não. Nada no mundo pode fazer que ela ou eu sejamos menos submetidos ao mal ou à morte, essa morte que terminará tudo, que virá hoje ou amanhã, pouco me importa. Será apenas um instante em relação com a eternidade'. De novo, tropeçava no parafuso que girava em vão e que prosseguia na sua rotação inútil."

Leon Tolstoi,
(Em "Guerra e Paz", tradução Oscar Mendes, Itatiaia 1997, pg 370)