sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A Ausência (bala, relógio ou faca)

"Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;


assim como uma bala 
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;


qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo


igual ao de um relógio
submeso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,


relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;


assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;


qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto


de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.


Seja bala, relógio,
ou lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.


Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.


Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.


Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.


Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):


porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,


nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,


que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente."

João Cabral de Melo Neto
(Trecho do poema "Uma faca só lâmina", retirado de "Morte e vida severina - e outros poemas", Objetiva 2007, pg 139-141)