domingo, 17 de julho de 2011

O Guspe de Deus

"Agora cada um está raspando atentamente com a colher o fundo da gamela em busca dos últimos restos de sopa, e emerge um rumor metálico a significar que o dia terminou. Pouco a pouco prevalece o silêncio e então, do meu beliche no terceiro nível, vê-se e ouve-se o velho Kuhn rezar, em alta voz, com a touca na cabeça e oscilando o copo com violência. Kunh agradece a Deus por não ter sido escolhido. Kuhn é um insensato. Não vê, no beliche ao lado, Beppo, o grego, que tem vinte anos e depois de amanhã irá ao gás, e sabe disso, não o vê lá estendido olhando fixamente a lâmpada sem dizer nada e sem pensar em nada?  Não sabe Kuhn que a próxima será a vez dele? Não compreende Kuhn que o que aconteceu é um abomínio que nenhuma reza propiciatória, nenhum perdão, nenhuma expiação dos culpados, nada que seja em poder do homem poderá jamais redimir? Se eu fosse Deus, guspiria na terra a reza de Kuhn."

Primo Levi
(Traduzido livremente de "Se questo è un uomo", Einaudi Tascabili 1989, pg 116)