sábado, 18 de junho de 2011

O Preço


"- O que você está fazendo?
- Estou lendo.
- Você me compra uma bebida?
- Se quiser.
- Você vem bastante aqui?
- Não, às vezes. Hoje, por sorte.
- Por que você lê?
- É meu trabalho.
- É engraçado. De repente eu não sei o que dizer, isso acontece muito comigo. Eu sei o que quero dizer. Eu reflito sobre o que quero dizer. Mas no momento de dizer, eu não consigo.
- Sim, claro. Você leu os três mosqueteiros?
- Eu vi o filme. Por quê?
- Porque nele, Porthos - isso se passa na verdade no "Vinte Anos Depois" - Porthos, o grande, o forte, um pouco estúpido, ele nunca pensou em sua vida, compreende? Então, uma vez ele tem de implantar uma bomba numa adega, para explodí-la. Ele o faz. Ele coloca a bomba, acende-a e sai correndo, naturalmente. Mas de golpe ele começa a pensar. Ele pensa no quê? Ele se pergunta como ele é capaz de colocar um pé após o outro. Você já deve ter pensado nisso também. Então ele pára de correr. Ele não pode mais, não pode avançar. Tudo explode, a adega cai sobre ele. Ele a segura com seus ombros, ele é forte, mas depois de um dia, ou dois, ele cede e morre. A primeira vez que ele pensa, ele morre.
- Por que me conta essa história?
- Sem razão, só por falar.
- E por que a gente precisa sempre falar? Muitas vezes devíamos nos calar, viver em silêncio. Quanto mais se fala, menos as palavras significam.
- Talvez, mas como se pode?
- Eu não sei.
- Eu acho que não podemos viver sem falar.
- Então é isso. Eu gostaria de viver sem falar.
- Sim, isso seria bom, não? Seria bom. É como se não amássemos mais. Mas não é possível, nunca vai ser.
- Mas por quê? As palavras deveriam significar exatamente o que queremos... Elas nos traem?
- Mas nós as traímos também. Nós devíamos poder dizer o que queremos, como já foi feito com a boa escrita. É mesmo extraordinário que um homem como Platão... que a gente ainda possa compreendê-lo, e a gente o compreende. Mesmo que ele tenha escrito em Grego, há 2500 anos. Ninguém realmente sabe a língua daquela época, ao menos exatamente. Mas ainda assim passa alguma coisa... então nós devemos poder nos expressar.
- E por que devemos? Para nos compreendermos?
- Nós precisamos pensar, e para pensar, é preciso falar. Não há outro jeito. E para comunicar, deve-se falar: é a vida.
- Sim, mas ao mesmo tempo é muito difícil. Eu acho que a vida devia ser fácil... Você sabe, a sua história dos Três Mosqueteiros pode ser muito boa, mas é terrível!
- Sim, porém é uma indicação. Eu creio que aprendemos a falar bem quando renunciamos à vida por algum tempo. É quase... o preço.
- Então, falar é morrer?
- Falar é quase uma ressurreição em relação à vida. Quando falamos é uma outra vida de quando não falamos. Então, para viver falando, deve-se passar pela morte da vida sem falar. Eu talvez não esteja sendo claro, mas há uma certa regra ascética que nos impede de falar bem até olharmos a vida com desapego.
- Mas não se pode viver a vida com... Eu não sei...
- com desapego.,, Sim, mas nós balanceamos, é por isso que devemos passar do silêncio às palavras. Movemo-nos entre os dois porque esse é o movimento da vida. Da vida cotidiana nos elevamos a uma vida que chamamos de superior, é a vida do pensamento. Mas essa vida pressupõe a morte da vida cotidiana, da vida elementar.
- Mas então pensar e falar se parecem?
- Eu acredito, eu acredito. Platão o disse; é uma idéia antiga. Não podemos distinguir do pensamento o que é pensamento e o que são as palavras que o exprimem. Analisando a consciência, você não consegue separar o momento de pensar das palavras que exprimem o pensamento.
- Falando, então, a gente arrisca a mentir?
- Sim porque mentiras são também parte de nossa busca. Há pouca diferença entre o erro e a mentira. E não quero dizer mentiras comuns como quando eu prometo ir amanhã, mas não vou porque não queria. Entende, esses são truques. Mas uma mentira sutil é pouco distante de um erro. A gente procura, e não consegue achar as palavras certas. É por isso que você não conseguia antes saber o que dizer. Você tinha medo de não achar a palavra certa. E eu acho que é isso.
- Sim, mas como ter a certeza de ter encontrado a palavra certa?
- Deve-se trabalhar. É necessário um esforço. Deve-se falar num modo que é certo, um modo que não machuque, diga o que pode ser dito, faça o que tem de fazer, sem machucar nem ferir.
- Sim, deve-se tentar ter boa fé. Uma vez alguém disse "A verdade está em tudo, mesmo no erro".
- Isso é verdade. Isso não foi visto na França no século XVII. Eles achavam que podiam evitar o erro e ainda mais que isso, que podia-se viver na verdade diretamente. Creio que não é possível. Por isso há Kant, Hegel, a filosofia alemã: para nos conduzir à vida e nos fazer ver que devemos passar pelo erro para chegar na verdade.
- O que você pensa do amor?
- O corpo tinha que chegar nisso. Leibnitz introduziu o contingente. Verdades contingentes e necessárias fazem a vida cotidiana. Aos poucos chegamos na filosofia alemã onde pensamos, na vida, com os erros da vida, com as servitudes da vida. E deve-se lidar com isso, é verdade.
- O amor não deve ser a única verdade?
- Mas para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não. Quando você tem vinte anos não sabe o que ama. Você sabe migalhas, agarra-se só à experiência própria, você diz "amo isso", é sempre uma mistura. Mas para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso maturidade. Isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro."



Do filme "Vivre Sa Vie" de Jean Luc Godard, 1962.