sexta-feira, 3 de junho de 2011

A Civilização do Espetáculo

 [Contrariando a praxe deste blog, traduzo um artigo inteiro, por sua relevância em tempos de irrelevâncias.]



"As horas perderam o seu relógio"
Vicente Huidobro


A Civilização do Espetáculo

Este ensaio foi nascendo ao longo dos últimos anos sem que eu me desse conta, provocado pela incômoda sensação que costumava assaltar-me enquanto visitava exposições, assistia alguns espetáculos, via certos filmes, obras de teatro ou programas de televisão, lia certos livros, revistas e artigos, que estavam todos tomando-me por idiota sem que eu pudesse defender-me diante a esta devastadora e sutil conspiração para fazer-me sentir um inculto, um estúpido.

Este livro é minha alegação de defesa. Quando comecei a escrevê-lo, descobri que há tempos estive tocando alguns de seus temas de maneira fragmentária em outros artigos, e isso explica que cada capítulo tenha como nota final uns "antecedentes" que reproduzem os textos tal como eles foram publicados (com a ocasional correção de uma errata ou uma falta de pontuação). Mas utilizei também, em alguns capítulos, partes, por vezes muito longas, de ensaios, introduzindo em tais textos, nestes sim, emendas importantes. Apesar de todas essas colagens, creio que o livro tenha se tornado um ensaio organizado que foi elaborado ao longo de anos em torno de um único tema inquietante e fascinante: como a cultura na qual nos movemos foi-se banalizando até converter-se em um pálido remendo daquilo que nossos pais e avós entendiam por esta palavra. Parece-me que tal transformação significa uma deterioração resumida na nossa crescente confusão resultante de um mundo sem valores estéticos, no qual as artes e as letras - as humanidades - tenham se tornado pouco mais que formas secundárias de entretenimento, do tipo que provém ao grande público os grandes meios audio-visuais, e sem maior influência na vida social. Esta, a vida social, resolutamente orientada por considerações pragmáticas, transcorre então ao ser dirigida por especialistas e técnicos, em busca essencialmente da satisfação e das necessidades materiais e animada pelo espírito do lucro, motor da economia, valor supremo da sociedade, medida exclusiva do fracasso e do êxito, e, pelo mesmo, razão de ser dos destinos individuais.

Pois este não é um pesadelo à la Orwell, mas uma realidade perfeitamente possível à que, insensivelmente, foram-se aproximando as nações mais avançadas e livres do planeta, as do Ocidente democrático e liberal, na medida em que os fundamentos da cultura tradicional entravam em bancarrota, iam-se desintegrando, e sendo substituídos por umas farsas que afastavam cada vez mais do grande público as criações artísticas e literárias, as idéias filosóficas, os ideais cívicos, os valores e, em suma, toda aquela dimensão espiritual chamada antigamente de cultura, que, mesmo confinada principalmente a uma elite, transbordava sobre o conjunto da sociedade e influía nela, dando um sentido à vida e uma razão de ser à existência que transcendia o mero bem-estar material do cidadão. Nunca antes vivemos como agora, em uma época tão rica em conhecimentos científicos e invenções tecnológicas, nem melhor equipada para derrotar as enfermidades, a ignorância e a pobreza e, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão desconcertados e perdidos com relação a certas questões básicas como o que fazemos aqui neste astro sem luz própria no qual nos toca viver, se a mera sobrevivência é o único norte que justifica a vida, se palavras como espírito, ideais, prazer, amor, solidariedade, arte, criação, alma, transcendência, significam algo ainda, e, caso a resposta seja positiva, quais são exatamente seus significados. Antes, a razão de ser da cultura era dar uma resposta a este tipo de pergunta, mas o que hoje entendemos por cultura está exonerada completamente de tal responsabilidade, já que dela temos feito algo muito mais superficial e volúvel, ou uma forma de diversão ligeira do grande público ou um jogo retórico, exotérico e obscurantista para grupinhos vaidosos que viram as costas para o resto da sociedade.


A ideia de progresso é enganosa. Quem, sem ser cego ou fanático, poderia negar que uma época na qual os seres humanos pudessem viajar às estrelas, comunicar-se instantaneamente, saltando todas as distâncias, graças à Internet, clonar os animais e os homens, fabricar armas capazes de volatizar o planeta e destruir com nossas prodigiosas invenções industriais o ar que respiramos, a água que bebemos e a terra que nos alimenta, tenha alcançado um desenvolvimento sem precedentes na história da humanidade? Pois ao mesmo tempo, nunca esteve menos segura a sobrevivência da espécie pelos riscos de um confronto atômico, pela loucura sanguinária do fanatismo religioso e pela erosão do meio ambiente, e também nunca vimos, junto às extraordinárias oportunidades e condições de vida de que gozam os privilegiados, tamanho contraste com a pavorosa miséria e as atrozes condições de vida de que ainda padecem, neste mundo tão próspero, centenas de milhões de seres humanos, não só no Terceiro Mundo, também em esquinas de horror e vergonha do seio das cidades mais opulentas do planeta.


No passado, a cultura teve sempre que tratar destes temas e foi sempre o melhor meio de chamar a atenção a tais problemas, uma consciência que impedia as pessoas cultas de voltar suas costas à realidade crua e rude de seu tempo. Agora, bem, o que chamamos de cultura é apenas um mecanismo que permite ignorar os assuntos problemáticos, distrair-nos do que é sério, submergir-nos em um momentâneo "paraíso artificial", pouco menos que o sucedâneo de uma tragada de maconha ou de uma linha de coca, a saber, umas férias de irrealidade.


Todos estes são temas profundos e complexos que não cabem nas pretensões, muito mais limitadas, deste livro. Este só quer ser um testemunho pessoal, em que aquelas questões se refratam em experiências de alguém que, desde que descobriru, através dos livros, a aventura espiritual, teve sempre por modelo aquelas pessoas cultas, que se moviam com desenvoltura no mundo das ideias e que tinham mais ou menos claros alguns valores estéticos que os permitiam opinar com segurança sobre o que era bom e mau, original ou epígono, revolucionário ou rotineiro, na literatura, artes plásticas, filosofia, música. Conhecendo bem as deficiências da minha formação escolar e universitária, durante toda a minha vida procurei preencher esses vazios estudando, lendo, visitando museus e galerias, frequentando bibliotecas, conferencias e concertos. Não havia nisso nenhum sacrifício. Mas sim o imenso prazer de, pouco a pouco, ir descobrindo que se alargava o meu horizonte intelectual, que entender Nietzsche, Popper, ler Homero, decifrar o Ulisses de Joyce, saborear a poesia de Góngora, de Baudelaire, de T. S. Eliot, explorar o universo de Goya, de Rembrandt, de Picasso, de Mozart, de Mahler, de Bartók, de Chéjov, de O'Neil, de Ibsen, de Brecht, enriquecia extraordinariamente minha fantasia, meus apetites e minha sensibilidade.


Até que, de repente, comecei a sentir que muitos artistas, pensadores e escritores contemporâneos estavam-me tomando por idiota. E que este não era um feito isolado, casual e temporário, mas um verdadeiro processo do qual pareciam cúmplices, além de criadores, seus críticos, editores, produtores e um público de babacas inconscientes manipulados ao gosto daqueles que fazem-nos comprar gato por lebre, por razões de bem-estar às vezes e, em outras vezes, por pura frivolidade.


Quero deixar registrado meu protesto, pelo que este possa valer, que, sei, não será muito. Há muitos interesses neste meio, pronto! Provavelmente, o fenômeno que este ensaio descreve não tenha remédio, porque já forma parte da maneira de ser, de viver, de fantasiar e de crer da nossa época, e aquilo que este livro anseia seja só pó e cinzas, sem ressurreição possível. Mas poderia ser, também, já que nada está quieto no mundo em que vivemos, que esse fenômeno, a civilização do espetáculo, pereça sem pena nem glória, por obra de sua própria inanidade e ninharia, e que outro o substitua, talvez melhor, talvez pior, na sociedade que virá. Confesso que tenho pouca curiosidade pelo futuro, nele que, tal como vão as coisas, tendo a descrer. Ao contrário, interessa-me muito o passado, e muitíssimo o presente, que seria incompreensível sem aquele. Neste presente há inumeráveis coisas melhores do que aquelas vistas pelos nossos ancestrais, desde logo: menos ditaduras, mais democracias, uma liberdade que alcança mais países e pessoas como nunca antes, uma prosperidade e uma educação que chegam a muitas pessoas e oportunidades para um grande número de seres humanos que jamais existiram antes, exceto para ínfimas minorias.


Mas, em um campo específico, mesmo com suas fronteiras voláteis - o da cultura - creio que retrocedemos, sem advertir-se nem querer, por culpa fundamental dos países mais cultos, aqueles da vanguarda do desenvolvimento, aqueles que marcam as pautas e as metas e que pouco a pouco vão contagiando os que vêm atrás. E por isso mesmo creio que uma das consequencias que poderia ter a corrupção da vida cultural por obra de frivolidade poderia ser esta: que aqueles gigantes tenham se revelado com pés de barro e tenham perdido seu protagonismo e seu poder, por terem dissipado com tanta velocidade a arma secreta que os fez o que chegaram a ser, essa delicada matéria que dá sentido, conteúdo e ordem ao que chamamos de civilização."

Mario Vargas Llosa
(Minha tradução livre do ensaio em El País entitulado "La Civilización del Espectáculo")