quarta-feira, 23 de março de 2011

Quando a criança era criança...

"Quando a criança era criança,
andava com os braços balançando.
Queria que o córrego fosse um rio,
o rio uma torrente
e que esta poça fosse o mar.
Quando a criança era criança,
não sabia que era uma criança.
Tudo era cheio de vida,
e a vida era única.
Quando a criança era criança,
não tinha opinião sobre nada.
Não tinha hábitos.
Sempre sentava com as pernas cruzadas,
Saía correndo, os cabelos eram desarrumados,
e não fazia pose quando fotografada.


Quando a criança era criança,

era o tempo destas perguntas:
Porque eu sou eu, e não você?
Porque estou aqui, e não ali?
Quando o tempo começou, e onde o espaço termina?
A vida abaixo do sol é apenas um sonho ?
Não seria o que vejo, escuto e cheiro apenas uma visão do mundo antes do mundo?
O diabo e pessoas que são realmente más existem ?
Como pode ser que eu, que sou eu, antes de chegar a sê-lo, não fosse?
E que eu, sendo quem sou, algum dia não serei eu mesmo?


Quando a criança era criança,

engasgava com espinafre, ervilhas pudim de arroz e couve-flor cozido
E agora ela come tudo isso e não porque é obrigada a fazê-lo.
Quando a criança era criança,
uma vez acordou numa cama estranha,
mas agora o faz toda hora.
Naquele tempo, achava muitas pessoas belas,
mas agora raramente.
A criança imaginava claramente o Paraíso,
e agora só consegue suspeitar como seria.
Não podia imaginar o vazio,
e hoje se estremece com a idéia.
Quando a criança era criança,
brincava com entusiasmo
e agora tal entusiasmo só acontece com o trabalho.


Quando a criança era criança, era o momento das seguintes perguntas:

Por que eu sou eu e não você?
Por que estou aqui e não ali?
Quando começou o tempo, e onde acaba o espaço?
A vida sob o sol é apenas um sonho?


Quando a criança era criança,

pães e maçãs eram suficientes para se alimentar
E segue sendo assim.
Quando a criança era criança,
As sementes que caíam em suas mãos eram apenas sementes.
E segue sendo assim.
As nozes deixavam sua língua áspera.
E segue sendo assim.
No topo de cada montanha
desejava uma montanha mais alta.
Em cada cidade, desejava uma cidade maior.
E segue sendo assim.
No alto da árvore, colhia cerejas com tanto entusiasmo
quanto hoje em dia.
Era tímido com os estranhos,
e ainda o é.
Esperava sempre a primeira neve,
e segue sempre fazendo assim.
Quando a criança era criança,
jogou um pau contra uma árvore como se fosse uma lança,
e ainda continua ali, vibrando.
"
Peter Handke - "Lied Vom Kindsein"
(Do filme de Wim Wenders, "Der Himmel über Berlin" (1987), traduzido para o Português como "Asas do Desejo")