sexta-feira, 18 de março de 2011

A Maior Lição do Século XX

(Na medida do possível, este texto deveria ser lido no tempo da música de Beethoven. Uma parte por movimento. Assim como certamente foi composto por seu autor, dando-se o devido tempo, esperando a música avançar solitária, para que a sinfonia ressoe as palavras com a força que elas merecem. Aqui, nas palavras de Carpentier, na música de Beethoven, no subterrâneo da nossa história ocidental, esconde-se, talvez, a maior lição do século XX para toda humanidade.)


"Pouco tempo depois de ficar sozinho diante do fogo ouvi algo como um murmúrio de vozes num canto da sala. Alguém deixara ligado um aparelho de rádio, que parecia ser velhíssimo, entre as espigas de milho e pepinos de uma mesa de cozinha. Ia desligá-lo quando soou, dentro daquela caixa maltratada, uma quinta e trompas que me era muito familiar. Era a mesma que me fizera fugir de uma sala de concertos não fazia muitos dias.

Nona Sinfonia - Primeiro Movimento: Allegro ma non Troppo


"Mas esta noite, próximo da lenha que estalava em fagulhas, com os grilos soando entre as vigas pardas do teto, essa remota execução adquiria um misterioso prestígio. Os executantes sem rostos, desconhecidos, invisíveis, eram como que expositores abstratos do escrito. O texto, caído ao pé destas montanhas, depois de voar por sobre os cumes, vinha-me de não se sabia onde com sonoridades que não eram de notas, mas sim de ecos encontrados em mim mesmo. Aproximando o rosto, escutei. A quinta de trompas era agora esvoaçada em tresquiálteras pelos segundos violinos e pelos violoncelos; desenharam-se duas notas em descenso, como que caídas dos primeiros arcos e das violas, com um tédio que logo se fez angústia, obrigação de fuga, ante uma força subitamente desatada. E foi, num despedaçamento de sombras tormentosas, o primeiro tema da Nona sinfonia. Acreditei respirar de alívio numa tonalidade afirmada, mas um rápido apagar-se das cordas, desmoronamento mágico do edificado, devolveu-me ao desassossego da frase em gestação. Ao cabo de tanto tempo sem querer saber de sua existência, a ode musical me era devolvida com o caudal de lembranças que em vão tratava de separar do crescendo que agora se iniciava, vacilante ainda e como que inseguro do caminho. Cada vez que a sonoridade metálica de um corne apoiava um acorde, acreditava ver meu pai, com sua barbicha pontiaguda, avançando o perfil para ler a música aberta diante de seus olhos, com essa peculiar atitude do trompista que parece ignorar, quando toca, que seus lábios se aderem à embocadura da grande voluta de cobre que dá um aspecto de capitel coríntio a toda sua pessoa. Com esse mimetismo singular que costuma tornar magros e secos os oboístas, alegres e bochechudos os trombones, meu pai acabara por ter uma voz de sonoridade acobreada, que vibrava nasalmente quando, sentando-me em uma cadeira de vime, a seu lado, mostrava-me gravuras em que eram representados os antecessores de seu nobre instrumento: olifantes de Bizâncio, buzinas romanas, anafis sarracenos e as tubas de prata de Frederico I Barba-Roxa. Segundo ele, as muralhas de Jericó só poderiam ter caído ao chamado terrível do horn, cujo nome, pronunciado com fluido erre, adquiria um peso de bronze em sua boca. Formado em conservatórios da Suíça alemã, proclamava a superioridade do corne de timbre bem metálico, filho da trompa de caça que ressoara em todas as Florestas Negras, opondo-o ao que, com tom pejorativo, chamava em francês le cor, pois considerava que a técnica ensinada em Paris assimilava seu instrumento másculo às femininas madeiras. (...) Meu pai fora supreendido pelo atentado de Sarajevo no melhor de uma temporada wagneriana do Teatro Real de Madri, e, encolorizado pelo inesperado arrojo bélico dos socialistas alemães e franceses, renegava o velho continente apodrecido, aceitando o atril de primeira trompa numa excursão que Anna Pavlova levava às Antilhas. Um matrimônio cuja elaboração sentimental me parecia obscura fez com que eu engatinhasse minhas primeiras aventuras num pátio sombreado por um grande tamarindo, enquanto minha mãe, atarefada com a cozinheira negra, cantava o conto do Senhor Dom Gato, sentando em cadeira de ouro, a quem perguntam se quer se casar com uma gata montesa, sobrinha de um gado pardo. O prolongamento da guerra, a escassa demanda de um instrumento que só se empregava em temporadas de ópera, quando sopravam os nortes do inverno, levou meu pai a abrir uma pequena loja de música. Às vezes, tomado pela nostalgia dos conjuntos sinfônicos em que havia tocado, tirava uma batuta da vitrine, abria a partitura da Nona Sinfonia e punha-se a dirigir orquestras imaginárias, arremedando os gestos de Nikisch ou de Mahler, cantando a obra inteira com as mais tremebundas onomatopeias de percussão, baixos e metais. Minha mãe fechava apressadamente as janelas para que não o considerassem louco, aceitando, entretanto, com velha mansidão hispânica, que tudo o que fizesse esse esposo, que não bebia nem jogava, devia-se tomar por bom, embora pudesse parecer um tanto extravagante. De fato meu pai era muito aficionado a frasear nobremente, com sua voz abaritonada, o movimento ascendente, ao mesmo tempo lamentoso, fúnebre e triunfal, da coda que agora se iniciava sobre um tremor cromático na profundidade do registro grave. Duas rápidas escalas desembocaram no uníssono de um exórdio arrancado à orquestra como que a socos. E fez-se silêncio. Um silêncio logo reconquistado pelo alvoroço dos grilos e o crepitar das brasas. Mas eu esperava, impaciente, o sobressalto inicial do scherzo.

Nona Sinfonia - Segundo Movimento: Scherzo


"E já me deixava levar, envolver, pelo endiabrado arabesco que os segundos violinos desenhavam, alheio a tudo o que não fosse a música, quando o "dobrado" de trompas, de tão peculiar sonoridade, imposto por Wagner à partitura beethoveniana para corrigir um erro de escrita, voltou a me sentar ao lado de meu pai nos dias em que já não estava junto a nós, com sua caixa de costura de veludo azul, aquela que tanto me tinha cantado a história do Senhor Dom Gato, o romance de Mambrú e o pronto do Alfonso XII pela morte de Mercedes: Quatro duques a levavam, pelas ruas de Aldaví. Mas então os serões se consagravam à leitura da velha Bíblia luterana que o catolicismo de minha mãe mantivera oculta, por tantos anos, no fundo de um armário. Ensombrecido pela viuvez, amargurado por uma solidão que não sabia encontrar remédios na rua, meu pai rompera com tudo o que o prendesse à cidade cálida e buliçosa de meu nascimento, partindo para a América do Norte, onde voltou a iniciar seu negócio com muito pouco sucesso. A meditação do Eclesiastes e a dos Salmos associavam-se em sua mente a inesperadas saudades. Foi então que começou a me falar dos operários que escutavam a Nona Sinfonia. Seu fracasso neste continente traduzia-se, cada vez mais, na saudade de uma Europa contemplada em cimos e alturas, em apoteoses e festivais. Isto, que chamavam o Novo Mundo, tornara-se para ele um hemisfério sem história, alheio às grandes tradições mediterrâneas, terras de índios e de negros, povoado de refugos das grandes nações europeias, sem esquecer as clássicas rameiras embarcadas para Nova Orleans por gendarmes de tricórnio, despedidas por marchas de pífano - detalhe, este último, que me parecia muito devido à lembrança de uma ópera do repertório. Por contraste evocava as pátrias do continente velho com devoção, edificando ante meus olhos maravilhados uma Universidade de Heidelberg que só podia imaginar enverdecida de heras veneráveis. Ia eu, pela imaginação, das teorbas do concerto angélico às insignes lousas da Gewandhause, dos concursos de minnesangers aos concertos de Potsdam, aprendendo os nomes de cidades cuja mera forma gráfica promovia em minha mente miragens em ocre, em branco, em bronze - como Bonn -, em penugem de cisne - como Siena. Mas meu pai, para quem a afirmação de certos princípios constituía o bem supremo da civilização, insistia, sobretudo, no respeito que lá se tinha pela sagrada vida do homem. Falava-me de escritores que fizeram tremer uma monarquia, da calma de seu escritório, sem que ninguém se atrevesse a importuná-los. As evocações do "Eu acuso", das campanhas de Rathenau, filhas da capitulação de Luís XVI ante Mirabeau, desembocavam sempre nas mesmas considerações acerca do progresso irrefreável, da socialização gradual, da cultura coletiva, chegando-se ao tema dos operários ilustrados que lá, em sua cidade natal, junto a uma catedral do século XIII, passavam seus ócios nas bibliotecas públicas, e aos domingos, em vez de se embrutecerem em missas - pois lá o culto da ciência estava substituindo as superstições - levavam suas famílias a escutar a Nona Sinfonia. E assim os tinha visto eu, desde a adolescência, com os olhos da imaginação, esses operários vestidos de blusa azul e calça de veludo côtelé, nobremente comovidos pelo sopro genial da obra beethoveniana, escutando talvez este mesmo trio, cuja frase tão cálida, tão envolvente, ascendia agora pelas vozes dos violoncelos e das violas. E fora tal o sortilégio dessa visão que, ao morrer meu pai, consagrei o escasso dinheiro de sua magra herança, o fruto de um leilão de sonatas e partituras, ao empenho de conhecer minhas raízes. Atravessei o Oceano, um belo dia, com o convencimento de não retornar. Mas ao cabo de uma aprendizagem do assombro que eu qualificara mais tarde, por brincadeira, de adoração das fachadas, houve o encontro com realidades que contrariavam singularmente os ensinamentos de meu pai. Longe de olhar para a Nona Sinfonia, as inteligências estavam como que ávidas de marcar o passo em desfiles que passavam sob arcos de triunfo de carpintaria e mastros totêmicos de velhos símbolos solares. A transformação do mármore e do bronze das antigas apoteoses em gigantescos esbanjamentos de pinho, tábuas de um dia, e emblemas de cartão dourado, teria deixado mais desconfiado a quem escutava palavras muito amplificadas pelos auto-falantes, pensava eu. Mas não parecia que assim fosse. Cada qual se acreditava investido de tremendo poder, e havia muitos que se sentavam à direita de Deus para julgar os homens do passado pelo delito de não terem adivinhado o futuro. Eu já tinha visto, certamente, um metafísico de Heidelberg fazendo de tambor-mor de uma parada de jovens filósofos que marchavam, mexendo os quadris, para votar por quem fazia escárnio de tudo o que pudesse ser qualificado de intelectual. Eu tinha visto os casais subirem, em noites de solstício, ao Monte das Bruxas para acender velhos fogos votivos, desprovidos já de todo sentido. Mas nada havia me impressionado tanto como essa citação em juízo, essa ressurreição para o castigo e profanação da tumba de quem rematara uma sinfonia com o coral da Confissão de Augsburgo, ou daquele outro que clamara, com uma voz tão pura, ante as ondas verde-cinza do grande Norte:"amo o mar como minha alma!". Cansado de ter de recitar o intermezzo em voz baixa e de ouvir falar de cadáveres recolhidos nas ruas, de terrores próximos, de êxodos novos refugiei-me, como quem se acolhe num abrigo, na penumbra consoladora dos museus, empreendendo longas viagens através do tempo. Mas quando saí das pinacotecas as coisas iam de mal a pior. Os periódicos convidavam à degola. Os crentes tremiam, sob os púlpitos, quando seus bispos elevavam a voz. Os rabinos escondiam a Torah, enquanto os pastores eram jogados de seus oratórios. Assistia-se à dispersão dos ritos e ao quebrantamento do verbo. De noite, nos lugares públicos, os alunos de insignes Faculdades queimavam livros em grandes fogueiras. Não se podia dar um passo naquele continente sem ver fotografias de meninos mortos em bombardeios de povoados abertos, sem ouvir falar de sábios confinados em salinas, de sequestros inexplicados, de perseguições e defenestrações, de camponeses metralhados em praças de touros. Eu me assombrava - despeitado, profundamente ferido - com a diferença que existia entre o mundo evocado nostalgicamente por meu pai e o que me fora dado conhecer. Onde buscava o sorriso de Erasmo, o Discurso do Método, o espírito humanístico, o fáustico desejo e a alma apolínea, topava com o auto-de-fé, o tribunal de algum Santo Ofício, o processo político que não era senão ordálio de novo gênero. Já não se podia contemplar um tímpano ilustre, um campanário, uma gárgula ou um anjo sorridente sem se ouvir dizer que aí já estavam previstas as facções do presente e que os pastores de Nascimentos adoravam algo que não era, em suma, o que cabalmente iluminava o presépio. A época me cansava cada vez mais. E era terrível pensar que não havia fuga possível, fora do imaginário, naquele mundo sem esconderijos, de natureza domada fazia séculos, onde a sincronização quase total das existências centrara as lutas em torno de dois ou três problemas postos em carne viva. Os discursos haviam substituído os mitos; as ordens, os dogmas. Enfastiado do lugar-comum fundido em ferro, do texto expurgado e da cátedra abandonada, aproximei-me novamente do Atlântico com o ânimo de cruzá-lo agora em sentido inverso. E, dois dias antes de minha partida, peguei-me contemplando uma esquecida dança macabra que desenvolvia seus motivos sobre as vigas do ossário de São Sinforiano, em Blois. Era uma espécie de pátio de granja, invadido pelas ervas, de uma tristeza de séculos, em cima de cujos pilares se conjugava, uma vez mais, o inesgotável tema da vaidade das pompas, do esqueleto encontrado sob a carne luxuriante, das costelas apodrecidas sob a casula do prelado, do tambor atroado com duas tíbias em meio a um xilofonante concerto de ossos. Mas aqui, a pobreza do estábulo que rodeava o eterno Exemplo, a proximidade do rio revolto e turvo, a cercania de granjas e fábricas, a presença de porcos grunhindo como o cerdo de Santo Antão, ao pé das caveiras esculpidas numa madeira acinzentada por séculos de chuvas, davam uma singular vigência a esse retábulo do pó, da cinza, do nada, situando-o dentro da época atual. E os timbales que tanto percutem no scherzo beethoveniano cobravam uma fatídica contundência, agora que os associava, em minha mente, à visão do ossário de Blois, em cuja entrada me supreenderam as edições da tarde com a notícia da guerra.

 Nona Sinfonia - Terceiro Movimento: Adagio


"A lenha já era rescaldo. Numa ladeira, mais acima do telhado e dos pinheiros, um cão uivava na bruma. Afastado da música pela própria música, regressava a ela pelo caminho dos grilos, esperando a sonoridade de um si bemol que já cantava em meu ouvido. E já nascia, de uma tênue instigação de fagote e clarinete, a frase admirável do Adágio, tão funda dentro do pudor de seu lirismo. Essa era a única passagem da Sinfonia que minha mãe - mais acostumada à leitura de habaneras e seleções de ópera - conseguia tocar às vezes, por seu tempo pausado, numa transcrição para piano que tirava de uma gaveta de loja. No sexto compasso, placidamente rematado em eco pelas madeiras, acabo de chegar do colégio, depois de muito correr para deslizar sobre as pequenas frutas dos álamos que cobrem as calçadas. Nossa casa tem um largo átrio de colunas caiadas, situado como um degrau de escada, entre os átrios vizinhos, um mais alto outro mais baixo, todos atravessados pelo plano inclinado da rua que sobe para a igreja de Jesús del Monte, que se ergue lá, no alto dos telhado, com suas árvores plantadas sobre um aterro fechado por grades. A casa foi antigamente de família nobre; conserva grandes móveis de madeira escura, armários profundos e um lustre de cristais biselados que se enche de pequenos arco-íris ao receber rum último raio de sol descido das vidraças azuis, brancas, vermelhas, que fecham o arco do saguão como um grande leque de vidro. Sento-me de pernas esticadas no fundo de uma cadeira de balanço, muito alta e larga para um menino, e abro o Epítome de gramática da Real Academia, que esta tarde tenho de repassar. Estes, Fábio, ai dor! que vês agora... reza o exemplo que há pouco retornou a minha memória. Estes, Fábio, ai dor!, que vês agora... A negra, lá na fuligem de suas panelas, canta algo em que se fala dos tempos da Colônia e dos bigodes da Guarda Civil. A tecla do fá sustenido já emperrou, como de costume, no piano que minha mãe toca. No fundo da casa há um quarto em cuja grade trepa um caule de abóbora. Chamo María del Carmen, que brinca entre as arecas em vasos, as roseiras em caçarolas, as sementeiras de cravos, de copos-de-leite, os girassóis do quintal de seu pai, o jardineiro. Desliza pela brecha da cerca de cactos e se deita a meu lado, na cesta de lavanderia em forma de barca que é a barca de nossas viagens. Envolve-nos o odor de esparto, de fibra, de feno, dessa cesta trazida, toda semana, por um gigante suarento, que devora enormes pratos de favas, a quem chamam Baudilho. Não me canso de estreitar a menina entre meus braços. Seu calor me infunde uma preguiça gozosa que queria prolongar indefinidamente. Como se aborrece de estar assim, sem se mover, acalmo-a dizendo-lhe que estamos no mar e que falta pouco para chegar ao cais; que será aquele baú de tampa redonda, coberta de lata de muitas cores, em cujo cabo se amarram os navios. No colégio me falaram de sujas possibilidades entre machos e fêmeas. Rejeitei-as com indignação, sabendo que eram porcarias inventadas pelos grandes para enganar os pequenos. No dia em que me disseram isso não me atrevi a olhar minha mãe de frente. Pergunto agora a María del Carmen se quer ser minha mulher, e como responde que sim, aperto-a um pouco mais, imitando com a voz, para que não se separe de mim, o ruído das sirenes de barcos. Respiro mal, encho-me de palpitações, e este mal-estar é tão agradável, no entanto, que não compreendo por que, quando a negra nos supreende assim, zanga-se, tira-nos da cesta, joga-a sobre um armário e grita que estou muito grande para essas brincadeiras. No entando, nada diz a minha mãe. Acabo por me queixar a ela, e me responde que é hora de estudar. Volto ao Epítome de gramática, mas me persegue o odor de fibra, de vime, de esparto. Esse odor cuja lembrança retorna do passado, às vezes, com tal realidade que me deixa todo estremecido. Esse odor que volto a encontrar esta noite; junto ao armário das ervas silvestres, quando o Adágio termina sobre quatro acordes pianissimo, o primeiro arpejado, e um estremecimento, perceptível através da transmissão, inquieta a massa coral cuja entrada se aproxima. Adivinho o gesto enérgico do diretor invisível, pelo qual se entra, de repente, no drama que prepara o advento da Ode de Schiller. 

Nona Sinfonia - Quarto Movimento: Presto - parte I


"A tempestade de bronze e de timbales que se desata para encontrar, mais tarde, um eco de si mesma, enquadra uma recapitulação dos temas já ouvidos. Mas esses temas aparecem quebrados, rasgados, feitos farrapos, jogados a uma espécie de caos que é gestação do futuro, cada vez que pretendem elevar-se, afirmar-se, voltar a ser o que foram. Essa espécie de sinfonia em ruínas que agora se atravessa na sinfonia total, série de dramático acompanhamento - penso eu, com deformação profissional - para um documentário realizado nos caminhos que me coubera percorrer como intérprete militar, no final da guerra. Eram os caminhos do Apocalipse, traçados entre paredes esburacadas de tal maneira que pareciam os caracteres de um alfabeto desconhecido; caminhos de covas preenchidas com pedaços de estátuas, que atravessavam abadias sem teto, balizavam-se por anjos decapitados, desviavam diante de uma Última Ceia deixada à intempérie pelos obuses, para desembocar no pó e na cinza do que fora, durante séculos, o arquivo máximo do canto ambrosiano. Mas os horrores da guerra são obra do homem. Cada época deixou os seus, burilados no cobre ou sombreados pelas tintas da água-forte. O novo aqui, inédito, o moderno, era aquele antro de terror, aquela chancelaria do horror, aquele território proibido do horror que nos coube conhecer em nosso avanço: a Mansão do Calafrio, onde tudo era testemunho de torturas, extermínios em massa, cremações, entre muralhas salpicadas de sangue e excrementos, montões de ossos, dentaduras humanas empilhadas num canto a pazadas, sem falar das mortes piores, obtidas a frio, por mãos com luvas de borracha, na brancura asséptica, nítida, luminosa, das câmaras de operações. A dois passos daqui, uma humanidade sensível e cultivada - sem fazer caso da fumaça abjeta de certas chaminés, pelas quais haviam brotado, um pouco antes, preces uivadas em iídiche - seguia colecionando selos, estudando as glórias da raça, tocando pequenas músicas noturnas de Mozart, lendo A pequena sereia de Andersen aos meninos. Isto também era novo, sinistramente moderno, pavorosamente inédito.

Nona Sinfonia - Quarto Movimento: Presto - parte II


"Algo desabou em mim na tarde em que saí do abominável parque de iniquidades que me esforçara em visitar para me certificar de sua possibilidade, com a boca seca e a sensação de ter engolido pó de gesso. Jamais poderia ter imaginado uma quebra tão absoluta do homem do Ocidente como que se estampara aqui em resíduos de espanto. Quando menino ficara aterrorizado com as histórias que então corriam acerca das atrocidades cometidas por Pancho Villa, cujo nome se associava em minha memória à sombra peluda e noturnal de Satanás. "Cultura obriga", costumava dizer meu pai ante as fotos de fuzilamentos que então a imprensa difundia, traduzindo, com esse lema de uma nova cavalaria do espírito, sua fé no ocaso da iniquidade por obra dos Livros. Maniqueísta à sua maneira, via o mundo como o campo de uma luta entre a luz da imprensa e as trevas de uma animalidade original, propiciadora de toda crueldade naqueles que viviam ignorante de cátedras, músicas e laboratórios. O Mal, para ele, estava personificado por quem, ao encostar seus inimigos no paredão de execuções, renovava, ao cabo dos séculos, o gesto do príncipe assírio cegando seus prisioneiros com uma lança, ou do feroz cruzado que emparedara os cátaros nas cavernas de Montségur. O Mal, de que estava já liberada a Europa de Beethoven, tinha seu último reduto no Continente-de-pouca-História... Mas depois de me ter visto na Mansão do Calafrio, nesse campo imaginado, criado, organizado por gente que sabia de tantas coisas nobres, os disparos dos Charros de Oro, as cidades tomadas à força, os trens decarrilados entre cactos e figueiras-da-índia, os tiroteios em noite de festa, pareciam-me alegres estampas de romance de aventura, cheias de sol de cavalgadas, de orgulhos viris, de mortes limpas sobre o couro suado das selas, junto ao rebuço das soldaderas recém-paridas nas margens do caminho. E o pior foi que na noite de meu encontro com a mais fria barbárie da história, os carrascos e guardas, e também os que levavam os algodões ensanguentados em baldes, e os que tomavam notas em seus cadernos forrados de oleado negro, que estavam presos em um hangar, puseram-se a cantar depois do rancho. Sentado em meu catre, retirado do sono pelo assombro, ouvia-os cantar o mesmo que, agora, incitados por um longínquo gesto do diretor, cantavam os do coro:

Freude, schöner Götterfunken,
Tochter aus Elysium!
Wir betreten feuertrunken,
Himmlische, dein Hiligtum.






"Por fim obtivera a Nona Sinfonia, causa de minha viagem anterior, embora não certamente onde meu pai a havia situado. Alegria! O mais belo fulgor divino, filha do Elísio. Ébrios de teu fogo penetramos, oh Celestial!, em teu santuário... Todos os homens serão irmãos onde paira teu voo suave.


Nona Sinfonia - Quinto Movimento: Allegro Assai - Chorus



"As estrofes de Schiller me laceravam com sarcasmo. Eram a culminação de uma ascensão de séculos durante a qual se caminhara sem cessar para a tolerância, a bondade, o entendimento do alheio. A Nona Sinfonia era o morno folhado de Montaigne, o azul da Utopia, a essência do Elzevir, a voz de Voltaire no processo Calas. Agora crescia, cheio de júbilo, o alle Menschen werden brüder wo dein sanfter Flügel weildt, como naquela noite em que perdi a fé em quem mentia ao falar de seus princípios, invocando textos cujo sentido profundo estava esquecido. Para pensar menos na Dança Macabra que me envolvia, assumi uma mentalidade de mercenário, deixando-me arrastar por meus companheiros de armas a suas tabernas e bordéis. Passei a beber com eles, mergulhando numa espécie de inconsciência mantida do lado de cá do tropeção, que me permitiu terminar a campanha sem me entusiasmar por palavras ou fatos. Nossa vitória me deixava vencido. Não conseguiu me surpreender sequer a noite passada no cenário do teatro de Bayreuth, sob uma wagneriana zoologia de cisnes e cavalos pendentes do teto, junto a um Fafner corroído pela traça, cuja cabeça parecia buscar amparo sob meu catre de invasor. E foi um homem sem esperança que retornou à grande cidade e entrou no primeiro bar para encouraçar-se de antemão contra qualquer propósito idealista. O homem que procurou sentir-se forte roubando a mulher alheia, para voltar, no fim das contas, à solidão do leito não compartilhado. O homem chamado Homem que, na manhã anterior, aceitava ainda a ideia de ludibriar com instrumentos de produção grosseira quem tivesse posto nele sua confiança... E, de repente, aborrece-me essa Nona Sinfonia com suas promessas não cumpridas, seus anseios messiânicos, sublinhados pelo feirante arsenal da "música turca" que tão popularescamente se desata no prestissimo final. Não espero o maestoso Tochter aus Elysium! Freude schöner Götterfunken do exórdio. Corto a transmissão, perguntando-me como pude escutar a partitura quase completa, com momentos de esquecimento de mim mesmo, quando as associações de lembranças não me absorviam demais. Minha mão procura um pepino cuja frieza parece sair-lhe de trás da pele; a outra sopesa o verdor de um pimentão que o polegar rasga para se banhar no sumo que a boca logo recolhe com deleite. Abro o armário das plantas e pego um punhado de folhas secas, que aspiro longamente. Na lareira pulsa ainda, em negro e vermelho, como algo vivo, um último rescaldo. Olho por uma janela: as árvores mais próximas perderam-se na névoa. O ganso do quintal desembainha a cabeça de sob a asa e entreabre o bico, sem despertar por completo. Na noite um fruto caiu."

Alejo Carpentier
("Passos Perdidos", trad. Marcelo Tápia, Martins Fontes 2009, pg 92-106)