segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Smile to life around you and carry on

"De lá não se sai. Nunca. Nem mesmo a luz do sol se vê. Nunca. As vidraças são cobertas de celofane negro. De fora não se deve ver nada. As janelas são sempre fechadas, no verão ou no inverno. É preciso fazer o mínimo de ruído. No ar, sobe e desce a fuligem produzida pelo algodão que passa  incessantemente pelas máquinas. Parece neve. Encontra-se em flocos sobre as máquinas de costura, no chão, sobre as roupas. Mas também nos cabelos dos operários, sobre suas peles. Respiram-no 24 horas por dia. Nas fábricas da maior Chinatown da Europa, os chineses vivem. São lugares inacessíveis aos outros. Monitorados de fora por câmeras de vídeo em circuito fechado. Se vocês baterem na porta, ninguém abrirá. E mesmo assim é possível escutar o trabalho frenético das pessoas. Se baterem com mais insistência, o maquinário desacelera, o rumor diminui. De trás verão surgir um grupo de dois ou três chineses. Não conseguirão entender bem de onde saem. Eles não farão nada, só lhes observarão. E continuarão a observar-lhes enquanto vocês não forem embora. Em alguns casos lhes acompanharão e lhes conduzirão para fora até que vocês estejam suficientemente longe.

Nós participamos de um blitz noturno do comando provincial da Guardia di Finanza de Prato. De 6500 companhias têxteis, 3500 são chinesas. Entre a noite e o dia, não há diferença para eles. Aqui trabalha-se sempre, não existem turnos, festividades, dias de repouso, doença. Ao menos não para os novos escravos chineses. Os chefes, ao contrário, fazem a festa com a Mãe China. Durante o carnaval, ficam por lá por um mês inteiro. Chegam na fábrica em Porsches, levam consigo malas cheias de dinheiro. Depois vão embora. É passado das duas da madrugada quando os funcionários da Guardia di Finanza bloqueiam duas fábricas. Encontram-se na periferia da cidade. Há muitos locais de trabalho, um ao lado do outro, montanhas de tecido. Quando entramos, estão virados de costas. Todos ao trabalho. Por um dos perímetros do pavilhão, há placas de reboco com uma porta de madeira no centro. São os "locais". Ao invés de parecerem quartos, lembram mais nichos de cemitérios: pequenos, estreitos, baixos, sem ventilação. Alguns não possuem nem mesmo uma entrada de luz. Ou então são feitos de pedaços de papelão. Aqueles mais desintegrados estão escondidos. Cada pavilhão esconde um espaço intermediário que leva ao andar superior. No nosso caso, uma estante de livros falsa escondia o acesso às escadas. O que se vê lá é algo de brutal. Seres humanos amassados uns contra os outros entre paredes de papelão e um piso de asbesto. De dentro de um armário de três pés apoiado em uma parede do corredor partem ruídos. Pensando que se tratavam de ratos, abrimos o armário para encontrar um jovem dormindo. Está tão encolhido pelo pequeno espaço e aturdido pelo pouco oxigênio que não consegue se levantar. Muitos deles se deitam vestidos. Devem estar operativos, sempre. Prontos a trocar de turno. Não há serviços higiênicos para todos. Há somente um banheiro por andar. Deve servir a cerca de trinta pessoas. Ao lado de cada colchão (sem rede, mas apoiado no solo) há penicos para se urinar e fazer as necessidades. Comem em um ângulo onde a ausência de janelas contribui para deixar tudo gordo e negro. As paredes são untadas e em torno dos sacos de alimentos (sobretudo arroz e ovos)  há um tipo de cola negra. Explicam-nos que serve para capturar as baratas. Não há portas. Substituíram-nas por véus, lençóis, telas. No chão, entre um quarto e outro, há tábuas de compensado com cerca de um metro de altura. Servem para impedir os ratos de passar para onde estão as crianças. 

É sim, as crianças. Fazem a mesma vida dos pais. Aqueles com maior sorte vão à escola. Os outros trabalham na fábrica. Bem ao lado de um maquinário, tenta cochilar uma menina de viso meigo. Está sentada em meio ao leito, sem sono. Com o ruído das máquinas em ação é difícil de ouvir o vizinho falar. Mas pedimos à mãe quantos anos tem. Não entende o italiano. A menina sim. Alça as mãozinhas e forma o número 8. Tem oito anos. Nos dois pavilhões que cruzamos saem tantíssimos deles. Todos muito pequenos. Uma delas fala italiano. A luz da câmera de vídeo se acende. Conta-nos de ir à escola pela manhã. O resto do dia passa na fábrica com os pais. Prato, Itália... para ela é aquele quarto de papelão e a estrada que faz para ir à escola. Os chineses em Prato, como em Florença ou em Livorno são tidos como os novos patrões. Mas daqueles que chegam em Ferrari ou pagam as contas dos hotéis super-luxuosos com maços de dinheiro em espécie, ou compram prédios inteiros no centro com sacos cheios de euros, destes esta gente não sabe nada. Sabem apenas que produzem uma coisa que chamam "pronto moda". Não tem nada do pret à porter das grandes marcas. E talvez nem mesmo saibam que eles mesmos são os novos escravos do terceiro milênio. Não sabem que produzem um volume de negócios estimado em 400 milhões de euro ao ano enviados à China e dos quais não vêem nem mesmo os farelos. Sobre uma mesa notamos uma espécie de livro contábil. Os agentes da Guardia di Finanza dizem que são as encomendas e os vencimentos para a entrega. Está escrito em chinês. Mas entendemos os números. Quando estávamos ali eles trabalhavam em um vestido para o próximo verão. Sobre o peito estava escrito, bem grande, "Smile to life around you and carry on" (sorria para a vida ao teu redor e siga adiante). Soa uma maldição, como aquele "O trabalho liberta" na entrada dos campos de concentração nazistas. Ao operário vão 40 centavos de euro por peça terminada. Ninguém sorri, ninguém chama isto de "vida". E há quem, por 40 centavos, deixe a própria pele. E isto aqui na Itália, não na China."

Antonio Crispino
(Traduzido livremente de sua coluna de hoje no Corriere della Sera) 

7 chineses morreram neste final de semana em um incêndio em um dos pavilhões da Chinatown localizada na cidade de Prato, na Toscana. Abaixo o video sobre a reportagem especial do Corriere.